quinta-feira, 24 de setembro de 2009

As Avós, as Bisas, e as ironias da vida...

Quase que ainda lhe sinto o cheiro da pele. Fazia anos um dia depois de mim. Breve, portanto. Era das que tinha coração gigante, onde cabiam, filhos, netos. As noras também mas não acreditavam, como quase todas as noras não acreditam. Era de tal forma espaçoso, que se podia dar ao luxo de ter vícios. Ninguém podia caminhar do seu lado esquerdo, que de imediato palpitava. Há parte disso, era perfeito.

Já só a conheci na imperfeição da idade. Tez escura, curtida pelo sol e pelo som da enxada que a perseguiu vida fora, e lhe sulcou a pele, tanto quanto a terra que manobrava. Mulher de força aquela. Não sei se lhe herdei qualquer coisa, mas em momentos específicos quase que acredito que sim, para logo em seguida perceber que não.

Eu ia para casa dela, quando a minha outra avó não podia tomar conta de mim. Passava o tempo entre baús de roupa antiga, campos de trigo, coelheiras e galinheiros. Não raras vezes, assisti a verdadeiros genocídios das espécies residentes. Hoje, uma situação desse calibre chegaria para desenvolver um qualquer processo numa qualquer Comissão, tal a atrocidade das imagens a que era sujeita. Mas na época soava a normalidade. Mais uma vez concluo que não traumatizo ás primeiras. De outra forma, sonharia agora com galinhas de pescoço cortado, ou coelhos de barriga aberta.

Tinha um oratório defronte ao qual rezava por toda a família, com fé e com alma. Era de madeira antiga, repleto de santos e fotografias, das pessoas a quem estes deveriam guardar. Era tapado por uma cortina de um branco imaculado, e estava sempre trancado a sete chaves. Eu tinha-lhe respeito, e, embora conhecesse o esconderijo da chave não ousava abri-lo sozinha. Fazem-me falta as rezas dela.

Fazia uns doces monumentais e uns molhinhos com arroz, daqueles feitos com buxo e atados com um cordel. Por aí fora, nunca encontrei mais nada que se assemelhasse. Qualquer coisa parecida, para o lado de Castelo Branco, de nome Maranhos. Mas ainda assim, não lhe chegam aos calcanhares. Engraçado como as memórias do paladar nos perseguem por anos, mesmo quando não mais lhe sentimos o gosto.

A morte levou-lhe um filho cedo de mais; a vida trouxe-lhe um com síndrome de nanismo. Teve de enviar um outro para casa alheia, porque cedo de mais se voltou a gerar vida no seu ventre. Os tempos eram difíceis, e os recursos parcos para alimentar tantas bocas. Esse, o relegado, abismou, tal o desgosto. Diz quem sabe que durante dias não comeu e não falou. Teve de regressar, não fosse o desgosto tão profundo, que lhe roubasse a vida. Alguma coisa se haveria de arranjar. Hoje é meu avô.
Filhas nem vê-las, o que muito desgostou o meu Biso F.

Tenho saudades dela. Tenho sempre saudades dela e da sua força, aguçadas nesta altura em que o dia do seu aniversário se aproxima. Exactamente no mesmo dia, em que perdi a outra avó mais querida. Ironias da vida...

5 comentários:

  1. Ainda hoje gosto de acariciar os cabelos brancos da minha avó, trocar frases que só nós entendemos, sorrir um para o outro apenas porque sim. E acredita que agradeço todos esses momentos.

    Beijo.

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  2. Deixo-te um sorriso, um bem hajas, porque esse amor transmite-se e transborda de respeito, e isso, hoje, faz tanta falta!

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  3. Lembrei-me da minha avó, que está num lar com o meu avô. Um lar bom. Pequeno. Mas não deixa de ser um lar. Todos os dias me convenço que não podia ser de outra forma. Que lá estão melhor...o meu avô com alzheimer, a minha avó porque não quer estar longe dele. As visitas são ao fim-de-semana. Tenho saudades...não deixa de ser um lar.
    (Terá mesmo de ser assim?)

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  4. Para a Sandra,e para quem me ler. Eu trabalho num Lar. E os "meus" velhinhos são felizes. E eu tenho a certeza disso. Espero que os teus avós também sejam. Porque quando há amor, pode-se ser feliz em qualquer lado. Os dias de hoje não são como os de outrora. Em muitas coisas é pena, mas enfim...

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  5. Um dos dias mais gratificantes que tive, foi numa noite em toquei baladas num lar de idosos.
    Comovi-me. Comovi-os. Revivi os meus avós. A velhice não tinha que ser assim...

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