Um dia sentiu-se cair por uma ravina a uma velocidade estonteante. Percebeu a fraqueza da sua vontade, pois por muito que quisesse estancar no caminho, mesmo até quando se agarrava a algum galho forte e sadio, as suas mãos sempre se abriam, sob uma vontade que lhe vinha forte de dentro do corpo, e o caminho continuava, sem nunca chegar ao fim. Caiu assim tempos infinitos, enquanto a pele lhe ganhava umas crostas fortes, quase impenetráveis. Sua avó falara-lhe em tempos que ganhara isso nos pés de tanto andar descalça nos campos, transportando cestas de comida para os irmãos que trabalhavam de sol a sol. Espinho que a atacasse caia sempre redondo no chão, perante a robustez dos seus pés, secos e amarelados. De quando em vez ao Domingo, dia da missa, do almoço em casa e do sossego ao sol da tarde, pegava numa faca e desbastava-os, com jeito, não fosse golpeá-los e deixa-los em sangue, perdendo assim a protecção do tempo, das corridas, da vida.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
sábado, 31 de março de 2012
sexta-feira, 30 de março de 2012
Livros
Na fila do correio encontro livros diversos. Um deles, de autora desconhecida pelo menos para mim, intitulava-se de qualquer coisa como "A melodia do Amor". Estava delicadamente envolvido por um tule azul bebé, com brilhantes incrustados. Não percebo, ou melhor, não concordo. O amor não é azul bebé, não é doce, nem fácil, nem sequer é delicado. O amor é intenso, uma mescla de sentires muito fortes, por vezes difíceis, quase que violentos. O amor de cores claras, cravejado de lacinhos e corações sorridentes que povoam os sonhos e os livros, imagina-se, ambiciona-se, cria-se dentro dos corpos carentes, mas não é verdadeiro. O verdadeiro é aquele que dói tanto como compensa, que nos dá o mundo enquanto nos tira o chão, mesmo quando tudo corre da melhor forma possível ( gosto desta expressão). Quem ama ou já amou, sabe exactamente do que falo. Quem somente sonha, lê estes livros enquanto se baba nas páginas, ao mesmo tempo que deixa cair nas entrelinhas umas lágrimas de sangue sofrido, apenas na imaginação. No final fecha-se e espera-se.
( Perdoo-lhe os brilhantes, apenas e só. Sim, o amor real também brilha)
( Perdoo-lhe os brilhantes, apenas e só. Sim, o amor real também brilha)
Corpo
Se calhar seria boa a consciencialização de que o nosso corpo é pertença nossa, de que podemos usufruir dele como de mais nada a nosso belo prazer e vontade, e que por isso nos proporciona prazeres indescritíveis, mas também, e consequência de muitas más escolhas e opções, sofrimentos atrozes. Ora isto aliado aos azares do mundo, ao que nos acontece sem imputações de culpas directas à nossa pessoa, faz com que a probabilidade do pobre vir a sofrer de maleitas pela vida fora seja considerável, sem recorrer a números e percentagens, sou má nisso. Portanto por vezes debruço-me sobre os cuidados que deveríamos ter e não temos, a protecção que deveríamos dar-lhe e não damos, a coerência sobre a qual nos deveríamos reger sem o fazermos. Mas se o fizéssemos, também sei disto, entraríamos provavelmente numa linha recta muito direita, sem graça e sem ânimo, mais ou menos como os amores que se celebram ao Sábado, sempre na mesma hora, no mesmo local, um sítio certo e infalível, que nunca deixa os protagonistas conhecerem outros territórios. No final da coisa e em consequência, pode até morrer-se tarde, mas morre-se enfadado, coisa que convenhamos, não deverá ter gracinha nenhuma.
( Pela parte que me toca procuro um equilíbrio. Procuro sempre um equilíbrio, uma palavra bonita, que me soa bem, e que dia ainda hei-de ver ao vivo. E se vir o George Clooney, também ficarei muito contente.)
( Pela parte que me toca procuro um equilíbrio. Procuro sempre um equilíbrio, uma palavra bonita, que me soa bem, e que dia ainda hei-de ver ao vivo. E se vir o George Clooney, também ficarei muito contente.)
Comboio
Gosto sempre de comboios. É um dos sítios que me transporta para memórias distantes, passeios longínquos e pessoas quase esquecidas. Tenho pessoas assim, quase esquecidas, que gosto de trazer comigo. São aquelas que habitam o meu corpo de forma discreta, encaixadas em algum recanto escondido, submerso nas corridas dos dias, nos afazeres inadiáveis, nas preocupações da minha vida cheia e atafulhada. Acordam em determinadas circunstâncias, certos lugares com cheiros específicos que têm o dom de me transportar e me deixar situada mesmo ao lado delas, nas horas exactas em que povoaram a minha existência. Obviamente que não posso encaixá-las nos terrenos das amizades actuais, podem tê-lo sido, mas hoje não estão presentes. Continuam porém a ser importantes, na medida de que fazem parte integrante da minha história e do meu passado. Algumas delas não vejo há anos, por motivos diversos e distintos. Umas por distância física, outras por evoluções divergentes, outras apenas porque a união não era suficiente para que os caminhos se seguissem próximos, havendo então o distanciamento. Mas nem só do presente, de pessoas próximas, de amizades profundas, vive o meu ser. Estas pequenas lembranças e memórias, que podem vir indexadas ao comboio, à praia da Nazaré, ao cheiro do pão quente com manteiga, à bicicleta pasteleira amarela e de cesto na frente, podem fazer muito pelos meus dias. São saudades, constructos internos, coisas minhas.
( O comboio estava minado de gente nova com música nos ouvidos que eu conseguia decifrar no outro lado da carruagem. Olhando a hoje, diria que daqui a um tempo ficarão surdos. Recuando no tempo, sei de fonte segura que só devido à música alta, provavelmente não ficarão. Os olhos e os ouvidos das mulheres mães ficam muito estranhos. Quase que apagam memórias.)
Sonhos
Em tempos perdi-me na interpretação de sonhos de Sigmund Freud. Encaixava tudo o que sonhava nos meandros das suas palavras, encontrava sentidos ocultos, pesquisava resquícios pulsionais, desejos implícitos, recalcamentos. Entretanto, e muito embora continue a respeitar e muito a essência do seu trabalho, entreguei-me com o tempo a outras correntes menos subjectivas, mais práticas, que me faziam mais sentido. Nelas os sonhos não são alvo de análise e de avaliação, constituindo meras projecções sem grande significado, reveladoras de alguma preocupação mais séria, algum receio. Fico feliz de ter feito este caminho. Caso contrário, e a avaliar pelas minhas últimas noites, mais descansadas por motivos de férias, teria de considerar a minha mente num estado sério de descompensação, coisa que convenhamos, não me parece nada ser verdade. Hoje, por exemplo, era um dia péssimo para o divã psicanalítico. Ia-se a ver e iria directa para um Júlio de Matos extinto, onde me dariam doses sérias de antipsicóticos, e me fariam lavagens ao cérebro de carácter profundo e irreversível.
quarta-feira, 28 de março de 2012
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Ainda me lembro da Mariana e do João, que me diziam em tempos, e inundados de boa vontade, que tudo na vida tinha um sentido divino. Eu, portadora de uma mochila equipada com tenda, saco de cama, lanterna e outros utensílios que levava nas costas, juntamente com uma ingenuidade que trazia dentro do corpo, que era bem capaz de atingir o tamanho do mundo, munia-me de boa intenção e julgava que tudo se geria sobre esse nobre princípio. E acreditava naqueles dois que me ensinaram a estar sempre alerta, a cuidar dos animais, das plantas e das pessoas, e considerava ainda a bondade das gentes.
Mas depois fui crescendo e a realidade que encontrei foi tramada. Um mundo a atirar para o estranho, onde a divindade como eu imaginava não encontrava cabimento e lugar, e onde o desconforto parecia por vezes encontrar-me e prender-me junto dele, o danado. Hoje por exemplo, quando encontro notícias, como em tantos outros dias, de pais que abusam de filhas, de mães que abusam de filhos, de adolescente que parem bebés escondidas do mundo e os colocam no lixo, dou voltas e procuro, juro que procuro, a divindade da situação. Viro-as do avesso, retorço-as por dentro, disseco-lhe as entranhas, volto a colocar tudo no exacto lugar, e consigo até encontrar alguns motivos ou justificações para que as coisas aconteçam de determinada forma. Só não consigo é encaixá-las dentro de um terreno divino, o que é uma pena, porque se tal coisa me fosse realmente possível o meu descanso seria muito maior, e eu estou mesmo a precisar de sossego.
segunda-feira, 26 de março de 2012
Férias
Parece que é mesmo verdade e que existem escolas a funcionar nos períodos lectivos, para que algumas crianças não passem por carências de apoio e de alimentação. A ideia faz todo o sentido, não fosse a carga negativa que acarta, e o que me reflecte a necessidade da medida. Não pertenço à classe que julga que os miúdos têm férias de mais. Pertenço à classe que acha que eles precisam de pausas, de tempos, que se não forem apoiados por um pai, que sejam pelo outro, ou pela avó, ou pela tia, sendo que apenas me parece plausível de aceitação a permanência ininterrupta no espaço escolar, quando não existe outra hipótese de escolha, coisa que eu sei existir e muito, por motivos de diversas ordens. Ainda assim e dada a conjuntura, a iniciativa faz-me todo o sentido. Sabedores que estamos de que muitas crianças comem na escola e pouco mais do que isso, seria um fechar de olhos criminoso, a ausência de uma resposta. E os crimes são coisas deploráveis, e quando toca a crianças são-o ainda mais.
Perdoem-me a fraqueza, mas a fome de alguém magoa-me o corpo. Já tentei imaginá-la, concebê-la, perdoá-la, mas não consigo. Travo em diversos pontos, estanco nos caminhos, perco-me em incompreensões.
Perdoem-me a fraqueza, mas a fome de alguém magoa-me o corpo. Já tentei imaginá-la, concebê-la, perdoá-la, mas não consigo. Travo em diversos pontos, estanco nos caminhos, perco-me em incompreensões.
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Decidi há muito não ter chocolates em casa. E quem diz chocolates, diz batatas fritas de pacote e diz amendoins com mel.
( E nos momentos de neura agarro-me agora ao Iogurte Grego, uma coisinha muito soft que nunca deveria ter chegado ao nosso País, e que escusava de ter sido inventada. Só por eles os Gregos mereciam vencer a crise. Qual Ilhas, qual carapuça. Iogurtes senhores, agarrem-se aos iogurtes.)
( E nos momentos de neura agarro-me agora ao Iogurte Grego, uma coisinha muito soft que nunca deveria ter chegado ao nosso País, e que escusava de ter sido inventada. Só por eles os Gregos mereciam vencer a crise. Qual Ilhas, qual carapuça. Iogurtes senhores, agarrem-se aos iogurtes.)
Influências
No centro da mesa escorrem palavras de um lado para o outro. Estancam numas bocas mais medrosas, fluem nas outras, enquanto uma mulher de olhos azuis, muito grandes e esbugalhados, parece coordená-las, armazená-las, torná-las em quase leis para depois as voltar a expelir, devidamente ordenadas e colocadas no sítio que pretende que tenham. A envolta submissa, quase feudal, absorve aquilo que é dito e venera, sem vénia ou sem aceno de cabeça, não chegamos a tanto, não existem regimes perfeitos. Por vezes surgem junções duvidosas. Palavras que se atropelam, ordens que nascem retorcidas e já ineficazes mal lhe saem da boca, meras dilatações que lhe escorrem do corpo, um local recheado de dúvidas que esconde, inseguranças que disfarça, medos que encobre com a pele. É agora que a plateia se levanta, penso meio à distância, uma distância muito estranha que não me protege da conversa alheia, da qual tento abstrair-me mas em vão, que a proximidade, o ouvido apurado, e até, quiçá, o excesso de curiosidade, não me permitem o sossego que esperava na tarde domingueira, para a qual o jornal não bastou para preencher. Não foi, não se levantou, e resolvi então comer um gelado. Poderia ser que enquanto o lambesse, enquanto me escorressem para a boca líquidos doces e frescos, o meu corpo descontraído e deliciado se distraísse daquele manuseamento de mentes, algo que não me é estranho, e com o qual já privei bem de perto, e que talvez por isso me deixou com uma espécie de urticaria assanhada, quase dolorosa. Verdadeiramente incómoda, pelo menos. O gelado, engolido depressa e em sofreguidão, não se verificou suficiente para me distrair os sentidos, demasiado cativados e espantados pela fixação da envolta, aturdida por aqueles olhos azuis esgazeados, poderosos, provavelmente possuídos por alguma grandeza diabólica, capaz de maquinar o mundo e transformá-lo numa aberração. Nisto comecei a sentir medo, e resolvi ir para a relva.
Não voltei a olhar para a mesa. Ia-se a ver e se o fizesse, talvez até incorresse em algum risco de alienação, podendo o meu corpo levantar-se, dirigir-se àquele centro e sentar-se, a fim de absorver as leis que ali se ditavam em forma de razão, pura, imaculada, grandiosa.
( E logo eu que não gosto nada de razões puras, severidades, ordens e verdades absolutas. Queria saber o que seria de mim depois daquilo, perdida no rigor da inexorabilidade.)
Não voltei a olhar para a mesa. Ia-se a ver e se o fizesse, talvez até incorresse em algum risco de alienação, podendo o meu corpo levantar-se, dirigir-se àquele centro e sentar-se, a fim de absorver as leis que ali se ditavam em forma de razão, pura, imaculada, grandiosa.
( E logo eu que não gosto nada de razões puras, severidades, ordens e verdades absolutas. Queria saber o que seria de mim depois daquilo, perdida no rigor da inexorabilidade.)
domingo, 25 de março de 2012
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Todos os dias o mundo perde pessoas interessantes. Resta-lhe sorver o que deixaram, ler os livros que escreveram, apreciar as obras que construíram. Não é nada pouco, nós é que queríamos sempre mais. Isto não é a vida a ser tramada, somos nós a sermos demasiado exigentes.
( A morte faz parte da vida, mas exigência faz parte de nós. A tentativa de preservar o que gostamos também. A perca é sempre uma perca, logo, nada disto faz muito sentido.)
( A morte faz parte da vida, mas exigência faz parte de nós. A tentativa de preservar o que gostamos também. A perca é sempre uma perca, logo, nada disto faz muito sentido.)
Vida
Ingenuamente deixou a vida engoli-lo. Um disparate, talvez até uma falha séria, que se há coisa que devemos fazer a cada dia que passa, em todos os minutos e todos os segundos que vêm ao mundo, é sorver a vida para nós, moldá-la aos nossos passos e necessidades, vivendo-a com os nossos tempos, as nossas vontades. Bem sei que é fácil dar-se o inverso. Bem sei que ela nos surge muitas das vezes torcida, deformada, tortuosa, um misto de tormentas que nos desfiguram o caminho e nos fazem adaptar ao que nos surge, quer essas circunstâncias tenham cabimento nas nossas projecções, quer não tenham, que a verdade verdadinha é que precisamos de nos sujeitar muitas das vezes, esquecer os nossos ritmos e abraçar os que nos são impostos, impingidos, forçados, não raras vezes muito mais rápidos, para noutras serem muito mais lentos, preguiçosos, aquém do que pretendíamos. Talvez então não tenha sido ingenuidade. Ingenuidade é uma palermice, um crer excessivo no que posteriormente nos engana, uma fraqueza diria até. O que ele fez não foi mais do que uma adaptação por ausência de opções, porque isto na vida também existe, muito embora me possam dizer, e por vezes em excesso de convicção, que a vida pode sempre alterar-se para onde nós queremos, como queremos e sempre que queremos. Ingénua fui eu em tempos, quando acreditei plenamente nesta leviandade que foge de certas bocas, que podem ser as sonhadoras, as exageradas, ou ainda as irresponsáveis. A facilidade de alterar rotas, rumos e escolhas, nunca deixou de ser uma opção na minha vida, mas é circunscrita, nunca totalmente livre. Por isso entendo-lhe os passos curtos, as entregas contraditórias aos sonhos e objectivos, a vida que o vive e o desfruta, sugando-lhe o corpo e a alma. É erudita a vida, senão sempre, muitas das vezes. Sorve menos os apagados, os preguiçosos, os irresponsáveis e os loucos, para se alimentar dos sagazes, dos cumpridores, dos que respondem nobremente pela categoria que tão bem representam.
sábado, 24 de março de 2012
Palavras
A tal da palavra surge de novo. Poderosa, certeira a quem a souber usar, mas por demais dúbia para grandes crenças. Lembro-me com frequência da prima Lídia. Uma beata de gema, que batia a mão no peito no acto da contrição. Que comungava aos Domingos e dias santos com uma devoção de suserana, e que, se a falta surgisse ao serviço religioso por um motivo de força maior, nunca por nunca ser voltaria a comungar sem primeiro se ajoelhar no confessionário do Padre António, a fim de ser perdoada de tamanho desdouro. A filha acendeu paixão por um pobre. Daqueles pelos quais ela rezava, que são gente, apregoa-se e reza a bíblia. Mas gente para a filha não era gente daquela. Gente para a filha seria gente de outra, embora as gentes diz-se serem iguais, com as tais das palavras que se deveriam engolir e provocar azia, mas não, que são fáceis de digerir. Fossem elas como a morcela que nos irrita o estômago, que nos acautelaríamos mais, que grande lacuna da natureza humana temos aqui. Arrumam-se clandestinas, aqui e acolá, logo após terem sido proferidas, manifestando bem alto o fraco poder da nobreza do Homem. A tal da palavra, surge como uma vanglória. Um poder que se tem sem se ter, um dito que não se sente, uma promessa que não se cumpre. Frouxa como só ela, assume-se com delicadeza numa sociedade que a usa em prol de si, num uso abusivo e falso, quase me fazendo crer, que falsa não é a palavra, mas quem tão mau uso faz dela. O que me dizes, a nada me vale se nada fizeres. A ti, que por contrário me fazes, ainda que em silêncio, um grande bem haja.
( Post de Junho de 2010. Continuo a sentir tudo isto. E talvez por isso cada vez mais aprecio o silêncio e até a solidão, em detrimento das palavras, das promessas, e de muitas pessoas. )
( Post de Junho de 2010. Continuo a sentir tudo isto. E talvez por isso cada vez mais aprecio o silêncio e até a solidão, em detrimento das palavras, das promessas, e de muitas pessoas. )
sexta-feira, 23 de março de 2012
Paredes, palavras e almas
Nas paredes que encontro leio ditos. Uns interessantes, outros banais, alguns profundos, outros ainda, meros desabafos. A nossa necessidade de expressão é de uma grandeza magnífica, jorra-nos do corpo de forma intensa, impossível de conter. Quanto mais concreta, melhor, daí as letras serem um suporte, ainda que dúbio, das opacidades e clarezas das almas.
( Mesmo na minha beira, na porta de casa, leio um amo-te Maria. A Maria pode até saber disso, mas por certo que assim ficou muito mais esclarecida. Concluo pois que sou estranha. Não preciso destas manifestações, chega-me um sussurro, um balbuciar, que se assume com a eternidade possível, ou seja, eternidade alguma.)
( Mesmo na minha beira, na porta de casa, leio um amo-te Maria. A Maria pode até saber disso, mas por certo que assim ficou muito mais esclarecida. Concluo pois que sou estranha. Não preciso destas manifestações, chega-me um sussurro, um balbuciar, que se assume com a eternidade possível, ou seja, eternidade alguma.)
Maria
Maria não suporta que lhe toquem no corpo. Um facto estranho, quase descabido, tendo em conta que o ser humano precisa do toque para que a alma lhe cresça, sendo muito dele que se alimenta, primeiramente numa relação materna, próxima, visceral, posteriormente em outros tipos de toques, de contactos, de ligações, todas elas fundamentais para um desenvolver saudável. Não suporta que lhe toquem no supermercado, indevida e casualmente, por considerar uma invasão de espaço. Não suporta que lhe toquem no autocarro, um sítio medonho, atafulhado de pessoas desconhecidas da vida, mas imediatas no sítio onde se encontram, na mesma hora, no mesmo local, na mesma direcção, um conjunto de circunstância propícias a uma aproximação desmedida das gentes, que lhe invadem a essência do seu respirar, um direito que é dela, mas que ninguém parece respeitar. Não suporta os apertos de mão que a cumprimentam. São sujas as mãos das gentes, sabe-se lá o que fizeram, o que podem acartar nos espaços enrugados, por debaixo das unhas, nas palmas lisas ou encrespadas, nos anéis que lhe ornamentam os dedos. Não suporta, e no seguimento, o toque no marido que a afaga e que tenta invadir aquilo que é seu, num achego que lhe cerca a alma em desassossego, e lhe prende o corpo que recusa entrega, pertence apenas a si e a mais ninguém. Por vezes tenta ceder, sente-se estranha, reage. Inunda-se de coragem, e tenta abstrair-se do roçar dos dedos pela sua pele, enquanto para isso profere palavras, seguidinhas umas nas outras, histórias que necessita de expulsar para fora sob pena de engasgar o corpo, cheio, envergonhado, entumecido de sentires fortes e intensos, que se expelem desgovernados. No final respira exausta e combalida. Sempre assim e até hoje.
( O espaço vital é um terreno estranho e ambíguo. Pode ser curto, pode ser longo, pode até ser quase inexistente. Nos casos de reservas intransponíveis reflectem-se questões internas de carácter profundo na organização do Eu. Freud, que eu amo de paixão, compreendeu e explicou isto como ninguém. Eu, mera curiosa, vou tendo sérios laivos de ambição.)
( O espaço vital é um terreno estranho e ambíguo. Pode ser curto, pode ser longo, pode até ser quase inexistente. Nos casos de reservas intransponíveis reflectem-se questões internas de carácter profundo na organização do Eu. Freud, que eu amo de paixão, compreendeu e explicou isto como ninguém. Eu, mera curiosa, vou tendo sérios laivos de ambição.)
quinta-feira, 22 de março de 2012
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Foram sempre unidos, sem filhos, como se a vida do próprio fosse apenas e só a vida do outro, quase uma receita de felicidade, embora haja quem possa considerar uma anulação. Não me pronuncio, abstenho-me, respeito muito. Foi há cerca de sessenta anos que escolheram este caminho, e a partir daí deram-se com umas mãos infinitas, um cuidado extremoso, uma cumplicidade forte, intercalada por um ou outro dia menos bom, onde provavelmente algum se lembrava de si mesmo. Esta noite ela resolveu deixá-lo. Foi perdendo a respiração devagarinho, de forma calma e tranquila, enquanto ele a segurava pela mão. No final de tudo, e já pela manhã, disse-me, componham-na, não quero que a vejam feia. Tapamos-lhe os orifícios do corpo, vestimos-lhe o que escolheu, pintamos-lhe o rosto e ornamentamo-la com o que nos pediu. Existem momentos, únicos, singulares, em que o nosso corpo verga e deixa de se poder dar. Acontece quando a vontade já não nos pertence, e o respirar se apaga aos poucos, tanto para o mundo como para nós mesmos.
quarta-feira, 21 de março de 2012
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Há demasiado tempo que não pego num livro apenas para o meu prazer. Entre obrigações e precisões, a leitura desprendida não tem encontrado lugar. Vou agora escolher um para mim. Para mim apenas. Vou lê-lo e sorvê-lo devagarinho, arrancar e parar quando me apetecer, sem pressas, metas ou objectivos.
( Continuo a apreciar o tempo desprendido de razão. O ritmo imposto pela vontade. A vontade, meu Deus, a vontade. Um dia entrego-me toda a ela e depois sucumbo, plena e exausta )
( Continuo a apreciar o tempo desprendido de razão. O ritmo imposto pela vontade. A vontade, meu Deus, a vontade. Um dia entrego-me toda a ela e depois sucumbo, plena e exausta )
terça-feira, 20 de março de 2012
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O Futebol é um desporto com o qual briguei há muito. Pensando bem, uma injustiça, que o verdadeiro culpado deste apartheid nem é o desporto em si, mas o que a sociedade fez dele. O poder social é de facto notável. Conseguimos transformar histéricos em ídolos, fantoches em divindades, entretenimentos em barbaridades. Entre outras, claro.
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Gosto do canto dos pássaros, das flores, do ar ameno e dos dias longos. Ainda para mais porque vêm após o cinzento das nuvens, o amarelo das folhas, o silêncio da natureza adormecida.
( Mas sou do Inverno, insisto. Isto são apenas saudades excessivas, que me entopem uma alma eternamente insatisfeita.)
( Mas sou do Inverno, insisto. Isto são apenas saudades excessivas, que me entopem uma alma eternamente insatisfeita.)
Caminhos
Uma das coisas de que fala o Padre Anselmo Borges é a eternidade da alma. A eternidade é um conceito particular, subjugado ao desconhecido, não temos forma de comprová-la. Ainda assim, e também por isso mesmo, desperta uma curiosidade intensa na humanidade, que pretende compreender e saber o que existe para além do corpo que finda. Não temos dificuldade alguma em sentir, enquanto inseridos numa forma e numa consistência que nos permite dar, receber, transmitir, integrar. Ao perdermos o corpo, ao deixarmos de ser pessoa andante, como ficaremos? Perco-me no tema, confesso, tento dissecá-lo, encará-lo de forma espiritual e de forma pragmática, ambicionava uma junção que me desse algumas luzes, precisava delas, gostava de tê-las. Não que não me reja tranquila nos meandros de que disponho, mas queria mais, sendo que há dias em que a minha mente se empenha e descompensa, na busca de respostas inexistentes, ambições desmedidas demais para a limitação com que me é dada a existência. A junção de perspectivas, a opinião da ciência conjuntamente com a opinião dos crentes e religiosos, assume-se, tal como em muitas outras vertentes, como uma súmula bastante válida para as dúvidas que nos assaltam a mente. Tal como em tudo onde o Homem participa, o absoluto é uma realidade impossível, reduzida às personalidades, às evoluções, aos crescimentos, às crenças e aos percursos. Nada me suscita mais interesse em termos de discussão, do que duas ou mais pessoas plenas do seu direito de liberdade, de respeito e de intenção, que orientam um discurso que pode ou não ser convergente, de onde emergem verdades ou meras possibilidades que nos fogem, mas que procuramos, intensamente, e através das quais podemos tentar crescer. A única certeza disponível, a de que sempre estaremos aquém, será importante na regulação dos ânimos, na castração dos acessos empolgados, na ilusão do absoluto. Mas o caminho senhores, esse, ninguém mo tira. Gosto de caminhos, mesmo que não saiba aonde me levam. Já lhes encontrei proveitos supremos, vidas novas e importantes, ninharias desprezíveis, em suma, encontro-lhes tudo, que são das poucas constantes que temos na vida. Só mudam as direcções.
segunda-feira, 19 de março de 2012
Padre
Li a entrevista ao Padre Anselmo Borges na revista de ontem do DN, e tive de me pôr de joelhos. Não partilho excertos, era uma ofensa declarada. Merece ser lida na íntegra, para sorver as palavras que profere em nome de um Deus bom, do amor e da liberdade. Os Padres que pensam e reflectem são muito mais interessantes do que os que só rezam.
( Perdoem-me os crentes, mas entre reza e pensamento, prefiro a segunda.)
( Perdoem-me os crentes, mas entre reza e pensamento, prefiro a segunda.)
Equilibrios
Ele não me lê e ainda bem, que existem dias tramados o que por certo o perturbaria. É dos grandes o meu. Pai, avô, e muitas outras coisas envolventes. É discreto mas presente, num equilíbrio quase perfeito. Gosto muito de equilíbrios e busco-os a toda a hora, aqui e ali, encontrando-os muito raramente. Ele é um dos mais sólidos e consistentes que me cerca. Herdei-lhe a melhor qualidade que encontro no meu corpo, e que trata a integridade. É muito verdade, não me incomoda dizê-lo, até porque vem a propósito de um reconhecimento, não de um glória por mim alcançada. Existem coisas que não são mérito nosso mas de quem nos educa, com persistência, carinho, dedicação e exemplo.
Lua
Saiu de casa entregue à lua. Estava grande, não havia como fugir-lhe, quase que pode jurar que ainda dentro das quatro paredes que a envolviam, a mesma já a guardava, ao longe, espreitando pelas frestas da porta e das janelas, por onde escorria em forma de luz ligeira, muito ténue. Lá fora a intensidade acentuou-se, sentiu que entrava para dentro do seu corpo e se aninhava no seu peito, calma, discreta, inundando-a de sentimentos fortes e seguros, que queria guardar para si.
Encostou-se na árvore do jardim e deixou que ela lhe falasse ao ouvido. Aguçou ainda todos os outros sentidos do corpo, colocou-se numa posição de conforto e atreveu-se a escutá-la, ainda que sabedora de que a lua poderia levá-la por caminhos intensos demais, para o seu magro ser suportar. Não a afligiu tal pensamento, não lhe causou sequer qualquer temor, que a vontade que tinha em escutá-la era de tal forma urgente, que abafava todos os sentimentos que pudessem tentar segurar-lhe os sentidos, absorvidos, manipulados, quase alienados por aquela imensidão que transformava a noite num local luminoso, tranquilo, apetecível. À medida que a escutava, conforme se fundia com as suas palavras doces, sentiu que o poder que emanava era qualquer coisa de transcendente, não podia sequer fugir-lhe, se naquele exacto momento o procurasse fazer. O seu bom senso, treinado a preceito durante anos a fio por uma vida irrequieta e travessa, dizia-lhe que voltasse para dentro, que se resguardasse, que ao menos se tentasse tapar minimamente sob a mísera protecção das paredes, mas ao invés disso deixava-se ir, cada vez mais profundamente, cada vez mais plenamente, sempre mais internamente.
Houve um momento em que abriu os olhos e resolveu olhar a lua de frente. Não era sensata aquela entrega exacerbada, como se a pertença fosse o único caminho e a vontade uma ninharia sumida, quase inexistente, uma réstia diminuída por qualquer coisa transcendente, absorvente, magnifica. Perante a imensidão que encontrou logo após abrir os olhos, diante da luz que a acolhia com desvelo, defronte do sossego encontrado, assumiu finalmente render-se.
A nossa rendição pode ser qualquer coisa de sublime. A lua, talvez a mereça.
Encostou-se na árvore do jardim e deixou que ela lhe falasse ao ouvido. Aguçou ainda todos os outros sentidos do corpo, colocou-se numa posição de conforto e atreveu-se a escutá-la, ainda que sabedora de que a lua poderia levá-la por caminhos intensos demais, para o seu magro ser suportar. Não a afligiu tal pensamento, não lhe causou sequer qualquer temor, que a vontade que tinha em escutá-la era de tal forma urgente, que abafava todos os sentimentos que pudessem tentar segurar-lhe os sentidos, absorvidos, manipulados, quase alienados por aquela imensidão que transformava a noite num local luminoso, tranquilo, apetecível. À medida que a escutava, conforme se fundia com as suas palavras doces, sentiu que o poder que emanava era qualquer coisa de transcendente, não podia sequer fugir-lhe, se naquele exacto momento o procurasse fazer. O seu bom senso, treinado a preceito durante anos a fio por uma vida irrequieta e travessa, dizia-lhe que voltasse para dentro, que se resguardasse, que ao menos se tentasse tapar minimamente sob a mísera protecção das paredes, mas ao invés disso deixava-se ir, cada vez mais profundamente, cada vez mais plenamente, sempre mais internamente.
Houve um momento em que abriu os olhos e resolveu olhar a lua de frente. Não era sensata aquela entrega exacerbada, como se a pertença fosse o único caminho e a vontade uma ninharia sumida, quase inexistente, uma réstia diminuída por qualquer coisa transcendente, absorvente, magnifica. Perante a imensidão que encontrou logo após abrir os olhos, diante da luz que a acolhia com desvelo, defronte do sossego encontrado, assumiu finalmente render-se.
A nossa rendição pode ser qualquer coisa de sublime. A lua, talvez a mereça.
domingo, 18 de março de 2012
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Existem pessoas que procuram bens no lixo, facto que apoquenta as autarquias do País. A responsabilidade da recolha e os possíveis lucros estão exclusivamente destinados ao Município, e por isso levantam-se questões importantes, dada a diminuição da quantidade de resíduos recolhidos. Parece-me a mim um contra-senso. A partir do momento em que deposito um saco de lixo num contentor, a propriedade sobre o que ali deixo já não é minha. Bem sei que o contentor é um local específico, abrigado por leis regulamentadoras, e que de facto os direitos são camarários. Mas tendo em conta a conjuntura onde se inserem os caixotes, um Pais descalço de condições básicas e de manutenção das necessidades fundamentais das pessoas, consegue chocar-me mais esta preocupação exagerada, ainda que inundada de fundamentos que eu não compreendo bem, do que o facto dos desperdícios poderem ser aproveitados por quem deles necessita. Não simpatizo, obviamente, com a imagem de gente que colhe lixo para proveito próprio e por necessidade. A necessidade extrema é sempre uma questão importante que me perturba o pensamento. Ninguém consegue coerência num estado extremo, seja ele qual for, e muito menos num estado de carência. O Ser Humano, e a bem ser, nunca deveria ser sujeito a derradeiras provações. Perde-se a dignidade, experimentam-se sofrimentos tremendos, contorna-se a vergonha e sobrevive-se.
(E no seguimento, leva-se lixo às escondidas, em hora marcada, não vão ser vistos. É bonito? Não. Deveria acontecer? Não. Mas por questões muito mais profundas do que o prejuízo camarário.)
(E no seguimento, leva-se lixo às escondidas, em hora marcada, não vão ser vistos. É bonito? Não. Deveria acontecer? Não. Mas por questões muito mais profundas do que o prejuízo camarário.)
Fado
O Fado cantado sem microfone tem sempre um efeito extraordinário. Mais ou menos como a dança descalça, a mais bela de todas.
( Os apetrechos que insistimos em usar em diversas circunstâncias, podem ser excessos. E falo também dos que utilizamos, todos os dias, para enfeitar sentimentos.)
( Os apetrechos que insistimos em usar em diversas circunstâncias, podem ser excessos. E falo também dos que utilizamos, todos os dias, para enfeitar sentimentos.)
sábado, 17 de março de 2012
Saberes
Soube ainda há pouco que um aparelho de clister era parte integrante do enxoval das noivas do antigamente. Julgo que se trataria portanto um uso comum, a instilação de líquidos por via rectal, que fariam o intestino teimoso funcionar de forma correcta e pontual, uma banalidade nos tempos antigos, igual a tantas outras. O dito era por norma dependurado por detrás da porta da casa de banho, e consistia num estranho objecto, normalmente feito em vidro, que se disfarçava com um vestidinho colorido a fim de passar despercebido, apesar de toda a gente ter um dependurado em algum local da habitação. Nunca me tinha ocorrido, tenho de o confessar, que tal artefacto pudesse ter uma essencialidade tão premente, que o fizesse parte integrante da lista do que vai com a noiva, em pé de igualdade com os lençóis, os atoalhados, as colchas de rendas e os panos de cozinha, os faqueiros e os conjuntos de loiça, todos eles em quantidade suficiente para que em governo durassem para a vida, e quiçá para a morte, a avaliar pelos números ideais considerados de referência.
Pela parte que me toca, confesso, tive uma experiência desastrosa com a palavra enxoval, que teve a ousadia de me perseguir desde tenra idade, em forma de muitos apetrechos considerados importantíssimos, e aos quais eu não via utilidade alguma. O maior investimento, posso dizê-lo sem incorrer em injustiças, foi feito pelas mãos da minha avó materna e pelas da minha mãe, que religiosamente frequentava reuniões de tupperware, onde me comprava caixinhas de todas as cores, onde eu guardaria alimentos e utensílios de costura, entre outros. O que eu mais apreciava nestas reuniões cravejadas de mulheres chatas, eram uns pequenos brindes que acompanhavam a compra, umas ninharias de formatos diversos que me faziam sempre aguardar ansiosamente pela chegada da caixa colorida, que de imediato se guardava dentro de um armário recheado delas e de outras inúmeras coisas, destinadas ao meu casamento. Não me apraz agora dissertar sobres as utilidades reunidas, umas terão sido úteis, outras nem tanto, que de entre a panóplia considerável e respeitadora da tradição, muito se usou e outro tanto já não. Apraz-me apenas dizer, que no meio de tanto utensílio reunido, me faltou aquele específico, que acompanhava as noivas preceituadas, que reuniam na sua posse tudo o que eu reuni e ainda um aparelho de clister feito de vidro, penduradinho com o devido vestido, na porta da casa de banho. Um enxoval como o meu merecia ter sido devidamente acabado.
Pela parte que me toca, confesso, tive uma experiência desastrosa com a palavra enxoval, que teve a ousadia de me perseguir desde tenra idade, em forma de muitos apetrechos considerados importantíssimos, e aos quais eu não via utilidade alguma. O maior investimento, posso dizê-lo sem incorrer em injustiças, foi feito pelas mãos da minha avó materna e pelas da minha mãe, que religiosamente frequentava reuniões de tupperware, onde me comprava caixinhas de todas as cores, onde eu guardaria alimentos e utensílios de costura, entre outros. O que eu mais apreciava nestas reuniões cravejadas de mulheres chatas, eram uns pequenos brindes que acompanhavam a compra, umas ninharias de formatos diversos que me faziam sempre aguardar ansiosamente pela chegada da caixa colorida, que de imediato se guardava dentro de um armário recheado delas e de outras inúmeras coisas, destinadas ao meu casamento. Não me apraz agora dissertar sobres as utilidades reunidas, umas terão sido úteis, outras nem tanto, que de entre a panóplia considerável e respeitadora da tradição, muito se usou e outro tanto já não. Apraz-me apenas dizer, que no meio de tanto utensílio reunido, me faltou aquele específico, que acompanhava as noivas preceituadas, que reuniam na sua posse tudo o que eu reuni e ainda um aparelho de clister feito de vidro, penduradinho com o devido vestido, na porta da casa de banho. Um enxoval como o meu merecia ter sido devidamente acabado.
sexta-feira, 16 de março de 2012
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E depois tem também a ver com a história da minha curiosidade doentia, sobre o que está do outro lado. Do outro lado do género, do outro lado da profissão (não morro sem me deitar num divã), do outro lado do mundo, do outro lado da vida.
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( Quando nascer outra vez nasço homem. Ou isso, ou dotada de paciência para fazer daquelas coisas que a maioria das mulheres fazem e das quais gostam muito, como por exemplo, e lembrei-me agora, passar duas horas de mãos estendidas a arranjar as unhas. Elas iam agradecer-me.)
( A sério, não me custará nada isso da barba, do desleixo charmoso, da cerveja na mão, da tampa da sanita teimosa e do mulherio dependente.)
( A sério, não me custará nada isso da barba, do desleixo charmoso, da cerveja na mão, da tampa da sanita teimosa e do mulherio dependente.)
Estendais
O estendal dela era sempre florido. Lembrei-me disso porque lembrei-me dela, lembro-me dela sempre. E lembrei-me do seu estendal porque hoje passei por muitos estendais floridos, intercalados com alguns outros de tons apagados, reveladores de tristezas que se vestem no corpo e não se guardam apenas dentro da alma. Não gosto do pressuposto. Não partilho da denúncia clara e eterna de uma alma negra, que é nossa, muito nossa e não do mundo. Há coisas que o mundo não precisa de saber, a não ser que seja o mundo próximo. O restante, o que não é nosso e no qual nos incluímos por força das circustâncias, não deverá ter acesso ao nosso interior, que há quem insista em transpirar, em deixar soltar, em perder por aí como se de uma banalidade se tratasse. O meu é muito valioso. Mau ou bom é o que me fez exactamente aquilo que eu sou hoje, faz parte de mim, é aquilo que alguém me dizia outro dia e bem, mas que sentido faz libertarmo-nos do sofrimento, se ele faz parte da nossa história? A essência está então em preservá-lo, tratá-lo com respeito e dedicação, permitir-lhe que se aloje no corpo que escolheu e que o percorra, de quando em vez, porque é ali que ele pertence, é ali a sua casa, o seu sítio, trancado com umas chaves eternas e fortes, que não lhe permitirão nunca o escape definitivo. Por isso o melhor remédio é a amável convivência, mais ou menos como os defeitos do nosso corpo, aos quais temos de nos habituar sob pena de criarmos desconfortos importantes.
Pois e continuando, lembrei-me. Ela vestia sempre cores fortes mas alegres, azuis, amarelos, flores e riscas, e talvez até tenha vindo dela este meu gosto pelos padrões poderosos. Não era viúva, é bem certo que não, mas não deixava por isso de ter motivos mais do que fortes para se entupir em trajos negros, lenços atados no pescoço curto, xailes pesados e fortes. Mas não. Ela e o seu estendal eram sempre floridos, e emanavam uma delicadeza saudosa, um zelo estranho, porque era distante. Não era propriamente dada a afagos, era isso, e foi a primeira pessoa a ensinar-me que as preocupações e os cuidados podem vir em forma discreta, nem sempre perceptível a olho nu. Mas que não era por isso que não vinham sempre. O olho nu pode por vezes ser traiçoeiro. Provavelmente, os estendais também.
Pois e continuando, lembrei-me. Ela vestia sempre cores fortes mas alegres, azuis, amarelos, flores e riscas, e talvez até tenha vindo dela este meu gosto pelos padrões poderosos. Não era viúva, é bem certo que não, mas não deixava por isso de ter motivos mais do que fortes para se entupir em trajos negros, lenços atados no pescoço curto, xailes pesados e fortes. Mas não. Ela e o seu estendal eram sempre floridos, e emanavam uma delicadeza saudosa, um zelo estranho, porque era distante. Não era propriamente dada a afagos, era isso, e foi a primeira pessoa a ensinar-me que as preocupações e os cuidados podem vir em forma discreta, nem sempre perceptível a olho nu. Mas que não era por isso que não vinham sempre. O olho nu pode por vezes ser traiçoeiro. Provavelmente, os estendais também.
quinta-feira, 15 de março de 2012
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As certezas absolutas da gente convicta, inundada de razões baseadas em si e nas suas experiências, sempre as mais válidas, sempre as mais nobres, sempre as mais certas, causam-me uma certa urticaria miudinha.
Saudades
Muitas das tardes de sol que me sorriam e me entravam no corpo, enquanto eu sonhava acordada uns sonhos muito doces que se perderam para sempre.
Muitas da esperança no futuro.
Muitas ainda da tranquilidade de ser só eu, não obstante a não reversibilidade da situação, que eu não faria se possível fosse, nunca e em momento algum da minha existência.
Talvez seja este amor o excesso que me aguça a desesperança, uma descrença num mundo que eu queria harmonioso, mas que ao invés ameaça todos os que nele habitam, a cada segundo que passa. Poderia ele tornar-se mais brando e acolher a humanidade em sossego? Ou apenas reage, também ele impotente, perante um mundo de interesses mesquinhos e inversos?
( Um dia, já prometi a mim mesma, salto do estado da desesperança. Nesse dia vou sentar-me num prado a comer pão caseiro com manteiga e a ouvir os pássaros cantar. E vou aproveitar todos os minutos da tarde, como se o mundo fosse um lugar mesmo bom para se morar)
Muitas da esperança no futuro.
Muitas ainda da tranquilidade de ser só eu, não obstante a não reversibilidade da situação, que eu não faria se possível fosse, nunca e em momento algum da minha existência.
Talvez seja este amor o excesso que me aguça a desesperança, uma descrença num mundo que eu queria harmonioso, mas que ao invés ameaça todos os que nele habitam, a cada segundo que passa. Poderia ele tornar-se mais brando e acolher a humanidade em sossego? Ou apenas reage, também ele impotente, perante um mundo de interesses mesquinhos e inversos?
( Um dia, já prometi a mim mesma, salto do estado da desesperança. Nesse dia vou sentar-me num prado a comer pão caseiro com manteiga e a ouvir os pássaros cantar. E vou aproveitar todos os minutos da tarde, como se o mundo fosse um lugar mesmo bom para se morar)
Evoluções
Não gosto de guerras, independentemente do que as mova. Não existem para mim motivos suficientes para conflitos extremistas, quer eles sejam religiosos, financeiros, ideológicos. Mantendo o hábito de saber o que corre no mundo, mesmo consciente dos riscos que a verdade me acarta, contrariamente à ignorância, protectora, guardadora de espíritos fracos e simples, incorro com frequência a revoltas internas, meras manifestações de fúria contida, impossíveis de ter efeitos concretos, reais, efectivos. Ainda que as sabendo limitadas, ainda que tendo presente que apenas a mim prejudicam, pela força nefasta e tenebrosa com que me chocalham a alma, impotente perante o poder das sociedades, não lhes consigo fugir totalmente. Li ontem torturas. Mortes impiedosas às mãos de outras gentes que se julgam capazes de governar um mundo ao ditame da violência. Leio de resto amiúde estas realidades dos dias que correm, e que, provavelmente, sempre irão decorrer de igual forma, seguindo a tendência histórica que conhecemos. Se sempre houve, o mais certo é que não venha nunca a deixar de haver, ainda que possamos considerar, em terrenos diversos de debruce sobre o comportamento humano, que nos encontramos em permanente evolução. Ora por evolução também gostaria de poder considerar evolução humana. Crescimento de princípios, conhecimento das diferenças, consciencialização de individualidades e respeito por tudo isso, mas não.
Orgulhamo-nos com muito orgulho dos progressos da ciência, dos avanços da tecnologia, do crescimento das potências mundiais, enquanto em locais específicos onde tememos entrar se mata gente devagarinho, por exemplo arrancando a pele que nos cobre o corpo, com uma pinça lenta e afiada.
Orgulhamo-nos com muito orgulho dos progressos da ciência, dos avanços da tecnologia, do crescimento das potências mundiais, enquanto em locais específicos onde tememos entrar se mata gente devagarinho, por exemplo arrancando a pele que nos cobre o corpo, com uma pinça lenta e afiada.
quarta-feira, 14 de março de 2012
Perguntas
http://oceupodeesperar.wordpress.com/
Ora espreitem, perguntem a vocês mesmos, respondam. Ainda que no fim persista a dúvida. As minhas persistem, muitas vezes...
Ora espreitem, perguntem a vocês mesmos, respondam. Ainda que no fim persista a dúvida. As minhas persistem, muitas vezes...
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Fico muito contente quando encontro em blogs robustos rasgos de sentimentos frágeis. Afinal, leio gente verdadeira. Ufa!!
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Pedem-me com uma frequência danada para ter paciência. Como se na vida tudo fosse aceitável, e eu tivesse que encarar as birras dos outros como encaro a do meu filho, que, sorte a minha, nem é dado a essas coisas. Paciência eu tenho de ter com a minha realidade e com as minhas pessoas, com o meu corpo quando ele reclama, com a minha mente quando ela se insurge, senhora de si como só ela sabe ser. Aos outros, apenas devo respeito. Pelas diferenças, pelas atitudes, pelas opiniões, e desde que, claro está, não me afrontem directamente as entranhas. Constato porém amiúde, uma indignação declarada dos que queriam sentir-se aceites e não apenas respeitados. O respeito por vezes não chega, o Homem carece de aceitação, uma grandeza que nos tranquiliza e nos apazigua a existência, nos dá um sítio, um lugar, uma pertença. De facto é uma pena eu não ser colaborante neste aspecto, não compactuar com esta necessidade suprema de conforto, não ceder perante argumentos válidos nascidos na boca de quem os profere, indignado. Esta minha paciência, considerada insuficiente, deveria chegar. E chega sempre, em casos de convicção. Nos outros, até percebo que seja fraca, debilitada, trémula. No fundo, nada sustentadora, uma linha que abanica, um ouvir sem opinar. Uma maçada, podem crer.
terça-feira, 13 de março de 2012
Faltas
A palavra saudade é uma palavra muito estranha. Julgo que todas as palavras poderão ter mais do que um significado, mais do que uma interpretação, sendo que o interior de quem a profere ou sente apresenta um papel preponderante à significância da dita. Mas ainda assim, esta assume-me um carácter muito peculiar. Por saudade costuma entender-se a falta de alguém que nos falta, que por motivos diversos se encontra longe. O estranho é quando ela se dirige a alguém que está muito perto, mais precisamente, exactamente ao nosso lado. Ai necessitamos obviamente de realizar aquele exercício íntimo e de extrema eficácia, que trata a análise interna dos que nos estão próximos e de nós mesmos. Proximidade externa, nem sempre significa proximidade interna. E o oposto também poderá ser verdade.
Virtudes
Fico sempre muito na dúvida quanto a algumas virtudes. O virtuoso, orgulhoso porque pode sê-lo (ainda que o não deva, obviamente), encaminha-se devagarinho para o seu local de descanso. Um sossego nunca alcançado, aturdido pelos dias, pelas provações, pelas situações a que terá de responder com cabeça erguida, coração sereno, corpo sensato. Do outro lado o desvirtuoso, orgulhoso sem poder sê-lo ( acresce então a vanglória, detestável, ufana), que enquanto se encosta e se deixa estar na berma da estrada, acolhe os despojos de quem passa, aproveita os restos de um mundo que gira e que por isso deixa desperdícios, e vive assim, à mercê.
Fico sempre na dúvida quanto a algumas virtudes, não obstante o facto de o virtuoso ser humanamente mais crescido, mais capaz. Em termos de ganhos efectivos fica muitas vezes a perder, que causa esta meu Deus, quando suporta o que o desvirtuoso relaxa, por inércia, incapacidade.
Fico sempre na dúvida quanto a algumas virtudes, que mais não parecem do que uma luta ausente de tamanho, contra um mundo que espera e que deixa correr os dias; pode ser que chova, pode ser que apareça, pode ser que caia, pode ser que aconteça.
Fico sempre na dúvida quanto a algumas virtudes, não obstante o facto de o virtuoso ser humanamente mais crescido, mais capaz. Em termos de ganhos efectivos fica muitas vezes a perder, que causa esta meu Deus, quando suporta o que o desvirtuoso relaxa, por inércia, incapacidade.
Fico sempre na dúvida quanto a algumas virtudes, que mais não parecem do que uma luta ausente de tamanho, contra um mundo que espera e que deixa correr os dias; pode ser que chova, pode ser que apareça, pode ser que caia, pode ser que aconteça.
segunda-feira, 12 de março de 2012
Imortalidades

O vinil afinal é uma paixão comum aos dois, sabe a ritual, a cumplicidade. Escolhe-se o disco de entre a fileira comprida, saca-se de dentro do cartão e da protecção, limpa-se com muito jeito no veludo de cor bordeaux destinado ao efeito, e coloca-se calmamente sobre o gira discos velhinho de marca Technics. De seguida, leva-se a agulha ao local exacto onde a música toca, e no sofá, ambos escutam o som. Não são sons de agora, são sons longínquos, daqueles que nos hão-de perseguir vida fora como nos persegue o cheiro do colo da nossa mãe, ou o cheiro do sono dos nossos filhos. Abba, Deep Purple, Queen (grandes), Pink Floyd, Elvis Presley, diversos, intemporais. Enquanto gira a música as conversas soltam-se enfiadas umas nas outras, intercaladas com silêncios faladores. Gosto muito de silêncios que falam, têm inerentes verdades escondidas, sentires profundos daqueles que circunscritos a palavras nem nexo chegam a ter. Perdem-se a falar de grandes mestres que cedo deixaram a vida, vozes que se cansaram de cantar ao mundo, ouvidos que por sua vez nunca deixarão de as ouvir para todo o sempre, uma perfeita incongruência. Uma confirmação pura, incontestável, da imortalidade das gentes.
Viajens
Corpos que não acompanham mentes fazem-me pensar. Chega-me sentado numa cadeira de rodas que empurra com umas mãos fortes e treinadas, e incita-me a uma conversa sem fim. Por entre um mundo que parece escorrer-lhe das palavras, deambula onde já passou, vive o que já viveu, conta-me os recantos claros e escuros de uma existência cortada ao meio por uma doença maldita. Na alma reúne as gentes de uma vida, as músicas ouvidas, a sensibilidade conseguida por um percurso notável e ambicioso. Embalo com ele, mas não resisto a inquiri-lo sobre as suas limitações, a minha curiosidade é tramada. Sorri e diz-me estar há muito consciente delas, ciente de que os anos lhe levariam as pernas, a força, a independência. Custou no inicio, depois habituou-se. Ouve música, lê, pensa. A maior parte dos que o cercam têm-no como uma pessoa limitada. Eu, há muito que descobri que viaja mais do que muitos andantes, todos os dias.
( Tratará este seu ver uma resignação sem sentido? Ou será antes uma aceitação quase perfeita aos limites da existência?)
( Tratará este seu ver uma resignação sem sentido? Ou será antes uma aceitação quase perfeita aos limites da existência?)
domingo, 11 de março de 2012
Eu
Simpatizo muito pouco ou nada com a expressão utilizada por quem deixa a vida em busca de outra, e afirma que nada tem a perder. Entendo que vão, eu própria já pensei ir, mas não fui exactamente porque perderia muito. Julgo que o conceito aparece ligado a percas financeiras, e é por isso mesmo que me agonia ainda mais. A minha vida, a minha família, os meus amigos, a minha rua, o meu jardim, o meu cão, as flores que cheiro e o ar que respiro, são apenas alguns dos exemplos do que eu perderia e que valem o que dinheiro algum pagaria. Vocês talvez não saibam, mas tudo isto que refiro também sou eu.
( Sou eu nas rotinas e nas minhas pessoas, no ladrar do meu cão, no perfume das flores e nas pedras do chão)
( Sou eu nas rotinas e nas minhas pessoas, no ladrar do meu cão, no perfume das flores e nas pedras do chão)
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Era bom que fosse mais fácil expulsar os segredos da alma. A alma é uma vacuidade que nos restringe a existência, e que quando carregada de nichos de vermes invisíveis mas eficazes no seu propósito, pode chegar a ser mesmo assustadora, inimiga, o lado oposto do serenidade. Já lhe disse um sem número de vezes que o único remédio é soltar cá para fora os desânimos. E com soltar cá para fora, quero apenas dizer soltar cá para fora, coisa que se for direccionada a alguém que escute, tanto melhor, receberá o conforto, a contingência, mas se não for, se lhe for penosa a libertação assistida, que o faça para o vento, para as paredes do quarto para o vazio da rua, mas que o faça, sob pena de se ir azedando devagarinho, a cada dia um bocadinho mais. Uma alma azeda e atrofiada é uma alma perdida para sempre.
Pequenos nadas.
Há quem se centre muito neles e quem não lhes deposite confiança alguma, como se constituíssem uma ninharia supérflua, dispensável. Tem directamente a ver com a nossa estrutura mental a valorização ou não destes pormenores da existência, que nos podem chegar em forma de flor, de agrado, ou de uma simples palavra ou gesto. Pela parte que me toca, ou não fora eu uma neurótica assumida, carente de controlar as atenções da envolta, preciso deles como do pão para a boca. Não me interessa nada o tamanho que trazem dentro, podendo ser qualquer coisa mensurável, ou ainda apenas e só um mísero detalhe quase imperceptível, mas que me inunda de qualquer coisa que não se vê, não se palpa, apenas se sente. Existem até por vezes algumas ocorrência de carácter maior, construídas com esforço e dedicação, que podem nem chegar aos calcanhares de algumas espontaneidades que por vezes me chegam, puras, imaculadas, acabadinhas de fabricar nos corpos e de me serem direccionadas. Não desvalorizo obviamente qualquer tipo de intenção, não sou ingrata ou isenta de reconhecimentos. São os meus sentidos, requintados, que gostam de despertar verdadeiramente pelas mãos das essências, das virgindades, das genuinidades do mundo. Nunca encontrei como contrariá-los.
sábado, 10 de março de 2012
Interiores e inconveniências
Causa-me sempre um enjoo profundo aquelas pessoas que entendem que podem penetrar dento dos meus pensamentos, e senti-los de igual para igual. Como se fosse fácil soltarmo-nos do nosso corpo e entrar dentro de outro que não nos pertence, que não é nosso é externo, vive outra vida, outras realidades, outras dores e outros prazeres, dos quais nunca nada sabemos. Já há muito que Homens estudiosos se perdem a compreender a imensidão do corpo, a explicar o sangue que nos corre nas veias, os ossos que nos seguram direitos, as doenças que nos atormentam e que nos podem atingir o coração, o estômago, o intestino, o fígado, entre outras milhentas partes que nos compõem e que nos permitem ser gente com vida que corre, que gira e que evolui. Tiro o chapéu a todas essas pessoas que me ajudaram a perceber os pormenores biológicos da minha existência, do meu nascimento, das minhas doenças, das minhas vitórias, da minha morte. Fico-lhes eternamente agradecida por me terem dado a saber que de acordo com a minha genética fico arqueada muito cedo, coisa que me mentalizou convenientemente para este sinal precoce de envelhecimento, e me preparou a tempo e a horas para o facto de que muito nova seria curvada, torta, vergada. Isto entre outras coisas de igual ou ainda maior interesse, que os caminhos da compreensão são os únicos sensatos de serem trilhados, a fim de conseguirmos prever algumas fatalidades, remediar alguns tormentos futuros, alterar várias condutas perigosas.
Com isto tudo não quero dizer que no que toca à mente as coisas deverão ser descuradas, esquecidas, quase como se de nós não fizessem parte. Até porque se existe particularidade humana que aprecio é essa mesmo, a que nos rege a vontade e a diligência, e nos torna muito diferentes uns dos outros, únicos, singulares, individuais. Mas ainda que admire quem na mente se debruça, ainda que eu própria tente, em abuso declarado, perceber o que nos move e o que nos direcciona, não posso deixar de considerar o quanto estou longe de toda a verdade, uma vez que ela nem sequer existe, assim, de forma pura e absoluta. O que poderá consistir uma certeza boa dentro de um corpo, alojado num cérebro único e pensante, poderá significar uma desprezivel falsidade para um outro corpo que albergue tal sentir, transformando as sensações em terrenos frágeis, de tão únicos e intransmissíveis. E é por isso mesmo que saíndo de nós para entrar em outros, mais não conseguiremos do que uma mísera análise, fraca e sem sentido, abusiva e trémula. Somos grandes cá por dentro. Eu própria, e em auto análise, encontro-me em busca incessante de recantos que não encontro, de frestas estreitas e buracos profundos, brotuejas doridas e imensidões. Por que raio ousei julgar que poderia perceber o outro ainda antes de me perceber a mim mesma, não sei. Sei apenas que nunca lá chegarei, e talvez seja por isso que o que faço me estimula tanto. Entro a pedido, que se entenda, o resto são puros devaneios, nunca conclusões inconvenientes.
Com isto tudo não quero dizer que no que toca à mente as coisas deverão ser descuradas, esquecidas, quase como se de nós não fizessem parte. Até porque se existe particularidade humana que aprecio é essa mesmo, a que nos rege a vontade e a diligência, e nos torna muito diferentes uns dos outros, únicos, singulares, individuais. Mas ainda que admire quem na mente se debruça, ainda que eu própria tente, em abuso declarado, perceber o que nos move e o que nos direcciona, não posso deixar de considerar o quanto estou longe de toda a verdade, uma vez que ela nem sequer existe, assim, de forma pura e absoluta. O que poderá consistir uma certeza boa dentro de um corpo, alojado num cérebro único e pensante, poderá significar uma desprezivel falsidade para um outro corpo que albergue tal sentir, transformando as sensações em terrenos frágeis, de tão únicos e intransmissíveis. E é por isso mesmo que saíndo de nós para entrar em outros, mais não conseguiremos do que uma mísera análise, fraca e sem sentido, abusiva e trémula. Somos grandes cá por dentro. Eu própria, e em auto análise, encontro-me em busca incessante de recantos que não encontro, de frestas estreitas e buracos profundos, brotuejas doridas e imensidões. Por que raio ousei julgar que poderia perceber o outro ainda antes de me perceber a mim mesma, não sei. Sei apenas que nunca lá chegarei, e talvez seja por isso que o que faço me estimula tanto. Entro a pedido, que se entenda, o resto são puros devaneios, nunca conclusões inconvenientes.
sexta-feira, 9 de março de 2012
Dulce
Passei hoje por ela, não a via há muito. O corpo vestido de preto parece desaparecer devagarinho, quase como se o tempo que lhe tem levado a alma lhe levasse também a carne, e a deixasse viver apenas de ossos e de pele, numa tez baça, cinzenta, já muito enrugada. Na boca segurava um cigarro espalmado pelos dedos e pelos dentes, partes dela que ainda existem em força, ao contrário das pernas, dos braços, do tronco, que abanicam ao vento, frágeis de meter dó. Estanquei-me na sua fronte e agucei os ouvidos. Quase que juraria que se o vento parasse, lhe conseguiria ouvir o bater dos ossos chincalhando uns nos outros, clic, clac, cloc. Olhou-me e sorriu-me com um rosto encovado, uma cara envelhecida apesar dos poucos anos pelos quais já passou. Vinte sete, vinte e oito, por aí. Não soube muito bem o que dizer-lhe, e fico aflita quando isto me acontece. Podem faltar-me muitas outras coisas, várias vezes ao dia, mas as palavras raramente me fogem. Quando tal coisa se me desaparece, sinto-me imprestável, fraca, mortiça, um farrapo de gente.
Mesmo atrás dela caminhavam os três que já trouxe ao mundo, todos saltitando alegremente enquanto chupavam uns chupa chupas vermelhos que pareciam deliciosos. Têm todos um ar limpo e cuidado, e contrastam com a mãe num contraste estranhamente exagerado. Não fosse eu saber que lhe pertencem e julgaria que aquelas três alminhas se encontravam sozinhas e perdidas no mundo, que dela não seriam com toda a certeza.
( Estes cenários, e não obstante a riqueza dos pequenos, afligem-me. Já não me afligem muitas coisas, mas existem algumas às quais não consigo imunidade. Afligem-me não só agora, mas daqui a muito tempo. Não me digam que a vida é hoje, e que o futuro não nos pertence. O futuro de três crianças pertence muito à mãe que lhes dá colo, todos os dias.)
Mesmo atrás dela caminhavam os três que já trouxe ao mundo, todos saltitando alegremente enquanto chupavam uns chupa chupas vermelhos que pareciam deliciosos. Têm todos um ar limpo e cuidado, e contrastam com a mãe num contraste estranhamente exagerado. Não fosse eu saber que lhe pertencem e julgaria que aquelas três alminhas se encontravam sozinhas e perdidas no mundo, que dela não seriam com toda a certeza.
( Estes cenários, e não obstante a riqueza dos pequenos, afligem-me. Já não me afligem muitas coisas, mas existem algumas às quais não consigo imunidade. Afligem-me não só agora, mas daqui a muito tempo. Não me digam que a vida é hoje, e que o futuro não nos pertence. O futuro de três crianças pertence muito à mãe que lhes dá colo, todos os dias.)
quinta-feira, 8 de março de 2012
E tantos que eles são...
O que me assusta nem são bem os números elevados, como por exemplo aquele que diz que no Porto vivem 33 mil idosos sozinhos. De entre esses, existirão por certo muitos ainda capazes de o estar. O que me assusta são os outros, e os outros também são muitos. São muitos os que me batem à porta sem poder ficar, porque o dinheiro que auferem não chega. São muitos os que nem chegam a vir, porque não têm como. São muitos os que habitam em habitações isoladas, sozinhos, não só na cidade, mas em aldeias distantes. São muitos os que racionam o que têm para o pão, a água, a luz que poupam ao infinito, e os fármacos, dos quais tomam só metade do que deveriam. São muitos os que por isto são entregues a cuidados duvidosos, sem condições dignas, como se já nada fossem, quando ainda são tanto. Serão sempre, até à morte, mas porque raio ainda existe quem possa achar que não? São muitos os que ficam esquecidos de um mundo um tanto ou quanto estranho, que parece centra-se no início para posteriormente esquecer o fim, como se este não fizesse parte do caminho.
Talvez até fosse bom, e na linha de conduta que encontro, definir um limite para a existência, altura em que, e se nada nos levasse até lá, alguém executaria a tarefa de libertar o mundo destes pesos medonhos, capazes de nos tirar sossego e de nos pedirem tanto, quando já nada nos dão. Esse limite poderia dar-se quando a fronteira da independência se ultrapassa, e quando a necessidade de cuidados se assume necessária. Viveria tudo muito mais em sossego, sem estas gentes já velhas que se atafulham cada vez mais em lares clandestinos e pestilentos, e que temos a obrigação moral de visitar de vez em quanto, em traje de Domingo, de preferência munidos com uma caixa de pastéis de nata quentes. Este fim por nós definido, libertar-nos-ia de tudo isto. Acabavam-se as estatísticas pessimistas das quais ninguém gosta, os hospitais recheados de gente que não tem quem a receba, os incómodos de olharmos para a miséria que nos entra para dentro do corpo e nos desconforta o estômago. As pessoas gostam mais de flores, alegria e gente que cheira a perfume. O resto, o melhor é esconder debaixo do tapete e fingir que não sabemos que existe, como existe, ou sequer se existe. Bemvindos, isto, e mesmo que não acreditem, somos muitos de nós.
Talvez até fosse bom, e na linha de conduta que encontro, definir um limite para a existência, altura em que, e se nada nos levasse até lá, alguém executaria a tarefa de libertar o mundo destes pesos medonhos, capazes de nos tirar sossego e de nos pedirem tanto, quando já nada nos dão. Esse limite poderia dar-se quando a fronteira da independência se ultrapassa, e quando a necessidade de cuidados se assume necessária. Viveria tudo muito mais em sossego, sem estas gentes já velhas que se atafulham cada vez mais em lares clandestinos e pestilentos, e que temos a obrigação moral de visitar de vez em quanto, em traje de Domingo, de preferência munidos com uma caixa de pastéis de nata quentes. Este fim por nós definido, libertar-nos-ia de tudo isto. Acabavam-se as estatísticas pessimistas das quais ninguém gosta, os hospitais recheados de gente que não tem quem a receba, os incómodos de olharmos para a miséria que nos entra para dentro do corpo e nos desconforta o estômago. As pessoas gostam mais de flores, alegria e gente que cheira a perfume. O resto, o melhor é esconder debaixo do tapete e fingir que não sabemos que existe, como existe, ou sequer se existe. Bemvindos, isto, e mesmo que não acreditem, somos muitos de nós.
Nós
Nasceu mulher, calhou-lhe assim em sorte. A mãe já tinha alguns outros, e surgiu então ela, já tardia, num descuido que não se remediou, não se foi a tempo, apenas por isso. A casa era mais ou menos abastada, os homens trabalhavam fora, ela não pode ir. Seu pai julgava as aprendizagens de leitura e de escrita demasiadas para ela, uma simples mulher, criada para ser esposa, para lidar a casa, bordar nos panos, educar os filhos. Nunca se insurgiu, nem sequer tinha como. Casou mais ou menos bem casada, com um homem mais ou menos fiel, que lhe permitiu uma vida mais ou menos sossegada, mais ou menos tranquila, desde que centrada nele e no serviço a ele, sem qualquer um outro tipo de préstimo reconhecido. Hoje está muito velhinha e já sem dentes. Não tem reforma, nunca trabalhou. Sempre cuidou dela com algum esmero e por isso mantém uma pele imaculada, branca e lisa, como se os anos não lhe tivessem passado pelo corpo, magro, direito, ainda um tanto ou quanto orgulhoso. Foi esposa, mãe e dona de casa, mas gostaria de ter sido mais coisas.
Eu sou sua neta. A minha vida de hoje não tem nada a ver com a dela, há uns anos, não assim tantos. É por isto também que nos admiro tanto. Precisamos de lutar contra um mundo que nos tentou anular, reduzir, limitar. Não que as tarefas que nos incumbiu fossem indignas, isentas de sentido, nada disso. Mas conseguimos muito mais, só tivemos que saber prová-lo. E soubemos, não tenho dúvidas de que soubemos.
( Existem pessoas, géneros, classes no mundo, que necessitam sempre de provar qualquer coisa. Depois existem as outras, que já nascem com tudo comprovado, a quem o esforço nunca é exigido. Quando nascemos caímos, e em diversos âmbitos, em um lado, ou em outro, depende. Não sei muito bem do que é que depende, mas depende)
Eu sou sua neta. A minha vida de hoje não tem nada a ver com a dela, há uns anos, não assim tantos. É por isto também que nos admiro tanto. Precisamos de lutar contra um mundo que nos tentou anular, reduzir, limitar. Não que as tarefas que nos incumbiu fossem indignas, isentas de sentido, nada disso. Mas conseguimos muito mais, só tivemos que saber prová-lo. E soubemos, não tenho dúvidas de que soubemos.
( Existem pessoas, géneros, classes no mundo, que necessitam sempre de provar qualquer coisa. Depois existem as outras, que já nascem com tudo comprovado, a quem o esforço nunca é exigido. Quando nascemos caímos, e em diversos âmbitos, em um lado, ou em outro, depende. Não sei muito bem do que é que depende, mas depende)
quarta-feira, 7 de março de 2012
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Tenho dias em que me perco a ouvir algum debate da Assembleia. Não por opção definida, mas porque calha ir no carro àquela hora, e calha ligar o rádio na Antena 1, e calham então assim um conjunto de circunstâncias propícias a tal ocorrência. Normalmente acabo a rir com o poder retórico manifestado pelos oradores. Eu, por exemplo, nunca poderia ter sido política. Aquela troca de galhardetes empanados e mal cheirosos, já me teria por certo entulhado as entranhas.
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Passamos por cá, deve ser isso. No meio do caminho tornamo-nos astutos, sobreviventes. Nos extremos, regra geral, somos inocentes. Hoje vi um casal de velhos que namoravam, intimidados. A pureza emanada era tão notória que apeteceu-me sentar-me ao lado deles, só para os olhar, e quiçá absorver a essência que escorriam dos olhos.
( Provavelmente enganaram-me, embora a minha perspicácia seja digna de referência. Ainda assim temo, que este mundo anda de tal forma entupido de interesses, que já ponho em questão as clarezas que lhe encontro. Um mau prognóstico, convenhamos.)
( Provavelmente enganaram-me, embora a minha perspicácia seja digna de referência. Ainda assim temo, que este mundo anda de tal forma entupido de interesses, que já ponho em questão as clarezas que lhe encontro. Um mau prognóstico, convenhamos.)
Nomes
Releio muitas vezes o que escrevo. Nada de narcisismos, atentem. Gosto de ler o que sinto, repensar os assuntos, apenas isso. Ali o António que não era António, por exemplo. Os nomes que nos colocam dizem tanto de nós. Hoje, nesta exacta hora, não consentiria a ninguém que por obra do acaso, ou até de alguma ordem de carácter supremo, me trocasse o nome, nem que fosse por outro mais agradável aos meus ouvidos, com maior força, como Madalena ou Constança. Não obstante o nosso nome, principalmente o primeiro, denominar-nos a nós tal como denomina muitos outros na terra, tratando pois uma banalidade que assumimos como pertença da nossa identidade, algo que nos deram à nascença, por vezes até por exclusão de partes. Em qualquer local, agradecemos sempre o reconhecimento e o respeito de nos chamarem pela nossa graça, e não por um outro qualquer adjectivo, que até pode surgir abonatório, mas não é nosso. O nome, por seu lado, é. É, e nesta usurpação que lhe fazemos ao longo da vida, encontramos essencialmente uma manifestação de cariz social, a forma como nos lemos nos lábios dos outros, o que nos chamam, como nos tratam. Não são determinantes, no sentido de nos fazerem escolher caminhos. Mas são-o na manutenção da nossa identidade.
terça-feira, 6 de março de 2012
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A idade traz rugas e outras inerências indesejadas. Leva-nos a juventude, uma maçada podem crer. Mas depois traz coisas boas e leva outras menos boas, que vamos sacudindo com os pés violentamente, como um animal que sacode a água fria do corpo. A minha, por exemplo, está a ser extraordinária na tarefa de me levar o medo. Não o medo no geral, sem o qual deixaria por certo de ser gente, sendo este um sentimento condicional para se ser humano, bicho ou qualquer outro ser vivo dotado de alguma capacidade cerebral, por fraca que seja. Mas o medo de falar, de sentir, de ser clara onde eu entendo, escura, se o preferir. Não respeito menos ninguém, dentro da razoabilidade, mas respeito-me muito a mim mesma e a quem me importa, coisa que convenhamos me interessa sobejamente mais do que a boa imagem que a vizinhança pode ter da minha existência. Ainda bem que ir ficando velha também é isto.
( Há uns anos atrás estava a ver que não lhe encontrava nada de bom. Se calhar estou também um bocadinho mais perspicaz, para além de enrugada, grisalha e corajosa.)
( Há uns anos atrás estava a ver que não lhe encontrava nada de bom. Se calhar estou também um bocadinho mais perspicaz, para além de enrugada, grisalha e corajosa.)
Beijinhos doces
Nasceu ali para os lados de Marvila. Dedicou-se desde muito cedo a contar o que o circundava, e que poderia ir das pedras da calçada às vigas do tecto, passando pelos carros que passavam na rua e que ele via da janela pequena e quadrada de onde espreitava o mundo. O seu mundo tinha uma cor muito estranha. Era de um tom acinzentado com uns laivos de cores muito sumidas que apareciam de vez em quando, em forma de sombrinha de chocolate trazida pela prima distante, ou de beijinhos doces embrulhados em cartuchos de papel pardo, pelas mãos da tia Emília. Lembra-se exactamente do cheiro deles, não dos beijinhos, mas dos mesmos misturados com o papel, que em conjunto fabricavam um odor forte e adocicado que o acompanhará para a vida, e quem sabe até para a morte. Nas escadinhas, bem defronte à sua casa, desembrulhava o pacote devagar, e comia, invariavelmente, primeiro o açúcar e depois o bolinho, deixando que se derretessem separadamente na boca, em conjunto com a sua saliva quente e gulosa. A seguir a sua vontade de gula exacerbada, e nunca lhe seria permitido tal deleite, que ver-se-ia obrigado a engoli-los de uma só vez, misturados e sem qualquer tipo de apreciação de paladar. Mas ele contrariava a tendência, sabia ser aquele um dos momentos altos da sua semana, apenas repetido na seguinte, e isto se sua tia resolvesse vir de novo, sendo que precisava de se deliciar com o pitéu, moderar a sofreguidão e sentir o sabor doce do açúcar e a textura delicada do bolo. Um, dois, três, quatro, sempre assim até chegar ao último, que por norma se situava entre o número dez e o número doze, nunca percebeu muito bem porquê.
Logo após terminar o repasto, desembrulhava o cartucho com jeito e dedicação, e levava-o para casa, onde o aproveitava para realizar desenhos coloridos com lápis de cores partidos, que na escola já ninguém queria. Desenhava sempre o mesmo número de flores, árvores, pessoas, e só quando chegava à altura de desenhar os beijinhos doces, que coloriam o papel pardo como gotas de alegria, e adoçavam as bocas amargas das gentes tristonhas, hesitava. Começava por desenhar um, depois o outro, e quando chegava ao número próximo do que o pacote habitualmente trazia, iniciava um desconforto interno que o obrigava a parar de desenhar por um bocadinho, enquanto se abanava para trás e para a frente, sem saber quando parar. Pára António, dizia-lhe a mãe, pouco tolerante aos abanicos, e com mais do que fazer do que aturar um gaiato irrequieto, indeciso e fraco de corpo que deambulava pela casa sempre a contar. Ele tremia e parava ali, no grito que o sacudia quer estivesse no dez, no onze ou onde fosse, guardando de imediato o papel pardo colorido, com cheiro a beijinhos doces, tão doces. Para a semana havia mais. Ele, bem vistas as coisas, nunca sabia muito bem se os queria ou se não.
( O António existia, só não se chamava assim. De resto, sentia tudo exactamente igual. O doce dos beijos, o cheiro da mistura, a ânsia de contar e de esperar o grito que o travava.)
Logo após terminar o repasto, desembrulhava o cartucho com jeito e dedicação, e levava-o para casa, onde o aproveitava para realizar desenhos coloridos com lápis de cores partidos, que na escola já ninguém queria. Desenhava sempre o mesmo número de flores, árvores, pessoas, e só quando chegava à altura de desenhar os beijinhos doces, que coloriam o papel pardo como gotas de alegria, e adoçavam as bocas amargas das gentes tristonhas, hesitava. Começava por desenhar um, depois o outro, e quando chegava ao número próximo do que o pacote habitualmente trazia, iniciava um desconforto interno que o obrigava a parar de desenhar por um bocadinho, enquanto se abanava para trás e para a frente, sem saber quando parar. Pára António, dizia-lhe a mãe, pouco tolerante aos abanicos, e com mais do que fazer do que aturar um gaiato irrequieto, indeciso e fraco de corpo que deambulava pela casa sempre a contar. Ele tremia e parava ali, no grito que o sacudia quer estivesse no dez, no onze ou onde fosse, guardando de imediato o papel pardo colorido, com cheiro a beijinhos doces, tão doces. Para a semana havia mais. Ele, bem vistas as coisas, nunca sabia muito bem se os queria ou se não.
( O António existia, só não se chamava assim. De resto, sentia tudo exactamente igual. O doce dos beijos, o cheiro da mistura, a ânsia de contar e de esperar o grito que o travava.)
segunda-feira, 5 de março de 2012
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Existem blogues perfeitos. Com vidas perfeitas, amores perfeitos, noites perfeitas e dias perfeitos, belezas perfeitas, e muitas outras coisas dentro do âmbito da perfeição. Tanta maravilha que nem sei como se perdem a escrever num blog. Eu, por exemplo, se tivesse uma vida assim tão perfeita, não perderia tempo nenhum com isto.
( Sou uma fraca, eu sei. Isto é um rancor profundo e recalcado, direccionado a esta gente perfeita e amada, tudo porque sou horrorosa e não tenho um amor que me ame até ao tutano do osso.)
( Sou uma fraca, eu sei. Isto é um rancor profundo e recalcado, direccionado a esta gente perfeita e amada, tudo porque sou horrorosa e não tenho um amor que me ame até ao tutano do osso.)
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Alexandre Farto faz esculturas em paredes apesar de elas serem efémeras. Deposita-lhes uma dedicação suprema como se as mesmas fossem durar eternamente, e em cada recanto construído o seu corpo respirasse para todo o sempre, tal como a Gioconda transpira Leonardo da Vinci. Não vão, até porque nada dura para sempre, muito embora possam existir coisas que possam entrar em campos mais consistentes, de maior probabilidade de duração, e que nos permitem uma entrega mais efectiva e real pelos prognósticos que construimos em torno delas. Tem uma escultura que aprecio especialmente de entre as que já vi, e que trata dois rostos de mulheres, uma nova e uma velha, olhando em sentidos opostos (acima). Olhamos para elas e sentimos-lhe alma e expressão, nascidas numa parede em risco de ruína, onde foi depositada toda a intensidade artística que o autor reúne no corpo. Por certo, e nos momentos de inspiração, não lhe passaram pela cabeça pensamentos castradores trazidos pela efemeridade da sua magnífica obra, capazes o suficiente para lhe minar a execução do trabalho, circunscrevê-lo ao banal, retirar-lhe a magia que assim emana, mesmo em risco constante de queda.
Admiro fortemente este tipo de dedicação, isenta de futuros longínquos, dependente de uma realidade mutante, evolutiva, destrutiva. Não é mais do que uma aceitação pura e dura da essência do Homem, que insiste em procurar seguranças, perpetuações, clarividências, no lugar de se aconchegar no incerto e ali viver tranquilo.
Equilíbrios
Dividimo-nos regra geral entre os que se regem pela emoção e os que se regem pela razão. Com os devidos entremeios, contrabalanços e meios caminhos. De um lado sonham, do outro vivem. De um lado sentem, do outro racionalizam. Já tive maior dificuldade em lidar com estes extremos. Ambos se defendem à sua maneira. Enquanto uns vivem quase na fantasia, os outros salvaguardam-se ao ponto de se barricarem à envolta. Gostava muito de habitar um mundo onde o equilíbrio fosse o desejável. Mas isso só seria possível se o mundo fosse equilibrado, também ele.
domingo, 4 de março de 2012
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Bronnie Ware, uma enfermeira australiana dedicada aos moribundos, enumerou os seguintes arrependimentos como os mais comuns nos que estão próximos do fim da vida:
– Gostariam de ter tido maior coragem para viverem uma vida fiel a eles mesmos.
– Gostariam de não ter trabalhado tanto.
– Queriam ter tido a coragem de expressar os seus sentimentos.
– Gostariam de ter mantido mais contacto com os amigos.
– Queriam ter-se permitido serem mais felizes.
( E agora vamos todos pensar sobre o assunto, assim género confraternização espiritual. Se quiserem abro a caixa de comentários à discussão, partilha de ideais ou indignações, dos que julguem que o que nos faz falta é dinheiro, carros e uma ilha perdida no meio do mar. E ainda um Relógio de ouro Rolex onde poderemos contar todos os minutinhos que faltam até morrermos.)
– Gostariam de ter tido maior coragem para viverem uma vida fiel a eles mesmos.
– Gostariam de não ter trabalhado tanto.
– Queriam ter tido a coragem de expressar os seus sentimentos.
– Gostariam de ter mantido mais contacto com os amigos.
– Queriam ter-se permitido serem mais felizes.
( E agora vamos todos pensar sobre o assunto, assim género confraternização espiritual. Se quiserem abro a caixa de comentários à discussão, partilha de ideais ou indignações, dos que julguem que o que nos faz falta é dinheiro, carros e uma ilha perdida no meio do mar. E ainda um Relógio de ouro Rolex onde poderemos contar todos os minutinhos que faltam até morrermos.)
Fernanda
Um dia pesaram-se as duas e foi uma risada. Uma, a magra, pesava exactamente metade do peso da outra, a gorda. A gorda é alentejana, gosta de pão e de chouriço, e veio da terra há muito, escorraçada por uma família que resolveu deixá-la para os braços do mundo, uns braços rijos e espinhentos, que cumpriram a sua função de um modo totalmente condizente aos habitual, ou seja, de forma seca e muito tétrica. Deixou sempre que deambulasse aos caídos, tendo um dia parado ali, ao pé daquela magra que lhe acolheu a existência, lhe deu trabalho e a ajudou a procurar um tecto, um sítio mais macio onde se pudesse aconchegar, o melhor dia da sua vida. A partir dessa altura foi mais ou menos aceite pela terra, assumindo sempre uns comportamentos estranhos mas perdoados, era a alentejana, a gorda, a enjeitada, e parecendo que não existem nomes no mundo que nos dão uma certa mobilidade de acção, uma margem, uma aceitação que emerge da reputação do desgraçado. Existe quem fuja deste conceito, não lhe queira nem sentir o cheiro ou o toque, mesmo que discreto, mortiço, envergonhado. No lado oposto existem os outros, os que se encostam ao nome com uma intensidade brutal, e nele encaixam todas as falhas, os erros e os excessos, com um jeito irrepreensível. Normalmente estas pessoas sabem exactamente que miséria da vida hão-de aliar a cada comportamento, sendo que podem utilizar o abandono, a falta de dinheiro, a ausência de saúde, de poiso, de gente.
Agora, ainda há pouco, resolveu ir-se embora. Voltar para o Alentejo, e aproveitar um lugar oferecido por um moço de boa gente, com uns pais muito doentes a precisar de atenção, coisa que Fernanda consegue dar sem qualquer esforço, a troco de tecto, comida, roupa lavada. Pelo meio poderão existir outro tipo de favores, ligados a algumas necessidades básicas do corpo, daquelas que não conseguimos controlar e que necessitam de apaziguamento, encosto e minutos de dedicação. Não se importa com isso. Sempre se habituou que na vida para se receber é preciso dar, e nunca conseguiu muito bem definir o que poderia facultar ou não à envolta, e mesmo o que lhe poderia regatear, sendo esta fusão constituinte de um estado de dádiva e recebimento indefinido, num limite mental e físico impossível de perceber. Tudo lhe pertence, nada é dela, sendo que tudo se pode dar ou mesmo receber. Aquela coisa do espaço próprio não lhe faz qualquer sentido, a pele, a sua pele, não a defende de coisa nenhuma.
Agora, ainda há pouco, resolveu ir-se embora. Voltar para o Alentejo, e aproveitar um lugar oferecido por um moço de boa gente, com uns pais muito doentes a precisar de atenção, coisa que Fernanda consegue dar sem qualquer esforço, a troco de tecto, comida, roupa lavada. Pelo meio poderão existir outro tipo de favores, ligados a algumas necessidades básicas do corpo, daquelas que não conseguimos controlar e que necessitam de apaziguamento, encosto e minutos de dedicação. Não se importa com isso. Sempre se habituou que na vida para se receber é preciso dar, e nunca conseguiu muito bem definir o que poderia facultar ou não à envolta, e mesmo o que lhe poderia regatear, sendo esta fusão constituinte de um estado de dádiva e recebimento indefinido, num limite mental e físico impossível de perceber. Tudo lhe pertence, nada é dela, sendo que tudo se pode dar ou mesmo receber. Aquela coisa do espaço próprio não lhe faz qualquer sentido, a pele, a sua pele, não a defende de coisa nenhuma.
sexta-feira, 2 de março de 2012
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Os atletas no sprint final conseguem forças escondidas, correm melhor e mais rápido, renascem. No fim, e pós objectivo, sucumbem, cedem, dão de si, chegam a cair para o lado em estado de exaustão profunda. A sensação é de que se a meta fosse ligeiramente mais à frente, não conseguiriam alcançá-la, mas é mentira, ter-se-iam programado se tal fosse o caso, respeitando obviamente os limites reais do humanamente possível. Isto prova apenas que o nosso corpo é extraordinariamente comandado pela nossa mente, embora isto fique esquecido com frequência. É estranho este esquecimento de um óbvio claro, de uma grandeza que nos rege a existência e que deixamos amiúde relegada, como se ela não passasse de uma invenção vinda da cabeça dos sonhadores, que engrandecem a alma e nela se refugiam. Temo talvez uma doença do corpo. Temo claramente a rendição da minha vontade.
( Sinto-me exactamente assim. Julgo até que a meta não poderia ter adiado um centímetro. Estou errada, claro, e concluo por isso que continuo a enganar-me muitas vezes ao dia.)
( Sinto-me exactamente assim. Julgo até que a meta não poderia ter adiado um centímetro. Estou errada, claro, e concluo por isso que continuo a enganar-me muitas vezes ao dia.)
quinta-feira, 1 de março de 2012
De como a vida é propícia a inversões...
Acabei de subir muito na consideração de alguém, apenas porque esse alguém descobriu que sou licenciada. Passei a ter sorrisos, nomes abonatórios, dedicações e atenções, enfim, tudo a que tenho direito por estatuto. Ela, exactamente na mesma proporção, quiçá até em maior escala, acabou de descer na minha. Não suporto o estatuto fácil, e esta estranha conversão directa que proporciona. Eu sou exactamente a mesma, ela igualmente. Mas agora eu tenho um Dr, coisa que me compõe e me torna mais gente. Gente maior, por assim dizer, muito maior do que era ainda há pouco, apenas Carla.
( Este era um dos postes em que me apetecia dizer um palavrão aliado ao estatuto. Não o faço claro, com muita pena minha, uma vez que uma pessoa com um Dr no início não deve dizer dessas coisas.)
( Este era um dos postes em que me apetecia dizer um palavrão aliado ao estatuto. Não o faço claro, com muita pena minha, uma vez que uma pessoa com um Dr no início não deve dizer dessas coisas.)
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Tenho vindo a ouvir dizer, que a mulher deveria estar mais tempo em casa. Tal como tenho vindo a ouvir que se deveria dedicar mais à família. Ora o que eu acho, e que não passa obviamente de uma mera opinião, é que todos nos deveríamos dar mais. Uns aos outros, por assim dizer, e salvo as devidas dádivas que possam existir adequadas. As mães à família e aos maridos, os maridos à família e às esposas. Os amigos aos amigos, as pessoas no geral umas às outras. Até a D. Maria das finanças, sempre mal disposta, se poderia dar mais, mas não sabe disso. Encontra-se centrada nela, fechada dentro de um corpo que julga seu, mas é nosso. Com as devidas limitações, claro, os corpos da sociedade são nossos. Deveriam sempre saber dar e receber, só assim tudo funcionaria.
Parcimónias
Percebo que os dias não sejam todos iguais, seria um tédio um aborrecimento. Não compreendo porém o facto de alguns reunirem em si acontecimentos vários, muitos, imensos, que acabam por saltar para fora das horas, não em realidade mas em aproveitamento. Não cabem no espaço que lhes é destinado, é isso, e ao invés de sentirmos tudo o que neles acontece, ao invés de aproveitarmos os minutos, os segundos e todos os instantes preciosos que queremos guardar para sempre, concentramos a nossa essência em conseguir apenas que tudo lá entre, sem gosto e desfrute. Frequentemente não conseguimos que caiba, um desperdício nos dias que correm, nem sempre propícios a excessos de momentos intensos. Depois, e no oposto, existem aqueles onde nada acontece, e onde caberia tudo o que nos restantes deixamos escorrer pelo corpo, por falta de tempo e guarda.
Nunca percebi muito bem a ausência de parcimónia de quem nos manda as ocasiões dos dias, as vicissitudes das horas, as cargas fortes e as calmas excessivas, e que se esbanja em gastos desnecessários em alguns deles, para noutros, por norma grandes e vazios, nos deixar entregues a nadas que escolhemos para nos completar. Parece ainda existir alguma concordância nos tempos danados, que usam surgir de mãos dadas, seguidinhos e em escadinha, como que para nos lembrar da nossa capacidade de resistência, de adaptação, de resiliência. Estou plenamente consciente da minha, dispensava isto. Tenho-a por qualquer coisa grande, que se fez assim talvez até por estas inerências da vida que aqui critico. Provavelmente tudo isto, não é mais do que a forma de nos tornarem gente, ao invés de uns seres míseros e fúteis, crescidos no embalo da facilidade.
( Ainda que assim o encare, agradeço sempre a harmonia suprema, se me puderem brindar com ela. Quem sabe se seria bom surgir assim com a idade, altura em que já adquirimos capacidades para lidar com ela sem nos tornarmos facilitistas. Uma espécie de reforma antecipada, por assim dizer. Irrita-me sempre esta faceta da minha vida que me escapa ao controlo. A circunstância, a ocasião. Os neuróticos obsessivos têm muito destas coisas.)
Nunca percebi muito bem a ausência de parcimónia de quem nos manda as ocasiões dos dias, as vicissitudes das horas, as cargas fortes e as calmas excessivas, e que se esbanja em gastos desnecessários em alguns deles, para noutros, por norma grandes e vazios, nos deixar entregues a nadas que escolhemos para nos completar. Parece ainda existir alguma concordância nos tempos danados, que usam surgir de mãos dadas, seguidinhos e em escadinha, como que para nos lembrar da nossa capacidade de resistência, de adaptação, de resiliência. Estou plenamente consciente da minha, dispensava isto. Tenho-a por qualquer coisa grande, que se fez assim talvez até por estas inerências da vida que aqui critico. Provavelmente tudo isto, não é mais do que a forma de nos tornarem gente, ao invés de uns seres míseros e fúteis, crescidos no embalo da facilidade.
( Ainda que assim o encare, agradeço sempre a harmonia suprema, se me puderem brindar com ela. Quem sabe se seria bom surgir assim com a idade, altura em que já adquirimos capacidades para lidar com ela sem nos tornarmos facilitistas. Uma espécie de reforma antecipada, por assim dizer. Irrita-me sempre esta faceta da minha vida que me escapa ao controlo. A circunstância, a ocasião. Os neuróticos obsessivos têm muito destas coisas.)
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