sábado, 30 de junho de 2012

Do tempo presente

A vivência do presente é talvez dos maiores luxos que poderemos conseguir. Há muito que tento encaixar-me nele como quem se encaixa num colo perfeito, e deixar-me lá estar sossegada, vivendo o dia que corre, a hora que passa, o minuto que chega. Tenho-me mantido porém muito aquém do que pretendo, deixando com frequência que o futuro e o passado tomem conta dos meus dias como se fossem detentores de um poder exagerado que chega a proibir-me de viver tranquila. Também há muito que percebi estar redondamente enganada nos sítios onde vou vivendo, ainda que em consciência, o lá atrás e o daqui a muito. Não aprecio propriamente a consciência do engano, muito embora ela venha cheia de possibilidades concretas de melhoramento, coisa que na inconsciência é muito mais complicado. Ainda assim, e quando me excedem as capacidade práticas de execução do que pretendo, por incapacidades diversas, a simples consciencialização dos enganos parece valer-me de pouco. Apreciaria muito mais que fossemos dotados de um qualquer mecanismo de defesa interna capaz de nos permitir a pronta alteração do que nos peia, e fazer com a nossa adaptação ao mundo fosse muito mais facilitada. Não sendo o caso, não valendo pois a pena lamentos que nada nos dão de maior do que a sensação morna do desabafo, mais vale meter mãos ao caminho, como de resto, em tudo na vida, terreno no qual sempre caminhamos sob pena de estagnarmos inertes e quase (?) mortos. E vai dai que tenho dias. Uns que muito aprecio, nos quais consigo viver inteira, capaz de sentir o cheiro da manhã e do vento que sopra sem pensar em mais nada que me apoquente a existência. Outros talhados por memórias perdidas algures no tempo da minha vida, uma grandeza que muito gostaria de perceber de forma mais concreta, uma vez que me prende a envergadura da coragem, dias e dias a fio. Outros ainda ambicionando um futuro incerto que pode nem me chegar, ou chegar-me enviesado, quem sabe, acontece a tantos futuros que o deixam de ser, por obra mera do acaso.
O balanço roça presentemente o positivo.

( Ausento-me por ora uns dias. O corpo pede descanso e eu costumo ceder-lhe aos caprichos. Preciso de ares novos, comidas saborosas e sustentadas. O ano que se avizinha vai ser maior do que os outros anos. Pressinto-o, numa antecipação ridícula e despropositada.)

Quase

Não tem nada a ver com futebol, que nem sequer lhe ligo por aí além. Tem a ver com todas as coisas, comigo, com os dias, com a vida. Não gosto de quases. O quase é qualquer coisa que me deixa com uma sensação amarga na boca que insiste em intensificar-se ao invés de se atenuar com o tempo. Lembro-me perfeitamente da amargura de um nove, ou pior, de um onze, nota que antecedia o doze exigido em algumas cadeiras da minha faculdade, para que mesma fosse concluída com sucesso. Ninguém percebia que um três ou um quatro me deixaria muito mais tranquila e sossegada. Com o onze estava de facto mais próxima, só que não estava no sítio, estava apenas ligeiramente abaixo, ou seja, muito longe e muito perto. Trata isto um mero exemplo, que a realidade é que os quases são mais do que muitos, povoam os nossos dias, o nosso dinheiro, a nossa vontade, os nossos sentimentos. Quase que te vejo, quase que posso comprar, quase que fui, quase que dava. Mas a verdade é que não vi, não comprei, não fui e não deu. Tudo situações de um aquém desconfortável que ninguém parece perceber, mas que todos já sentimos um dia. Talvez seja por isso que eu considere que deveríamos aboli-lo de uma vez por todas do nosso reportório de discurso, ou pelo menos não o utilizar em momentos de tentativa de animar o próximo. Aquilo do deixa lá, estiveste quase, não anima ninguém. Pois é, estive quase. E isso é que é do caraças.


( Quase perfeito.)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

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E depois temos aqui um blogue que é uma coisa por demais. Uma mulher que chama tudo pelos nomes e que escreve de uma forma intensa e muito verdadeira. Se ainda não a conhecem, atrevam-se. Vão ver que vale a pena.


Velhos

Acordava muito antes do tempo, aconteceu inúmeras vezes. Acordar antes do tempo permite antever perigos, antecipar acções, precaver atitudes e não ter de chorar por elas. No oposto, castra. Incute uma prevenção no viver que nos leva a plenitude da entrega e que nos deixa sempre aquém. Ela sabe disso. Consciêncializou-se de tal facto há muito, num dia em que o sol lhe bateu mais em cheio e a deixou viver os caminhos aquecida por aquele embalo luzidio em forma de raio quente que lhe acertou no peito. Não consegue dizer o que de concreto a remeteu para aquele despertar, sabe apenas que foi ali, naquele exacto momento intimo entre o sol e ela, onde nada mais conseguiria entrar. A intimidade dos momentos é uma coisa muito bonita. Pode ser vivida por todos e por todas as coisas, entre pessoas, entre pessoas e coisas, entre lugares, e por ai a fora. Não me canso de senti-los, aprecio-os como quem aprecia um chá quente numa noite de inverno para logo depois sossegar no embalo da noite e do crepitar da lareira. Gosto especialmente de alguns, como o que experimento por exemplo com as palmeiras do meu jardim, que se vergam sobre o banco onde me sento e me deixam numa sombra que naquele momento apenas a mim vai pertencer. Aprecio também verdadeiramente a individualidade que o mundo me possibilita. Desde o que sinto, ao que vivo, roçando no que toco e no que pressinto, passando até pelo que acredito. A realidade assume-se então como uma coisa muito minha, situações que reúno num corpo pequeno e enfezado, que me possibilita a existência e o ser. Julgo que tenha sido assim que ela abriu os olhos de novo ao mundo. Apercebeu-se de que o sol era dela e de mais ninguém, exactamente como ela, e naquele exacto momento, apenas a ele pertencia. Não definiu dali mudanças concretas de fundo. Consciencializou porém que a reserva em demasia nos guarda, e que as guardas excessivas nos podem fazer ficar velhos. Ficar velho não tem nada a ver com a nossa idade. Ficar velho é fecharmo-nos para o mundo onde habitamos, como se ele já não tivesse nada para nos dar e o nosso corpo fosse já detentor de tudo. Ou então já nada quisesse. Enquanto queremos ser, nunca ficamos velhos. Poderemos até morrer de velhice sem nunca chegarmos a sê-lo.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

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Sai tarde e más horas. Digo más horas, deveriam ser más, só isso justifica tal ausência de gentes na rua. Apanhei-lhe o fim, perdemos. Fico triste claro, preferia continuar. Até porque estava com a fezada de ver uma final com a Itália num sitio que eu cá sei, a comer pizza napolitana. As pessoas dizem paciência, acenam com a cabeça, estão desiludidas. Amanhã, provavelmente, está tudo normal outra vez. Sem ânsias ou desilusões.

terça-feira, 26 de junho de 2012

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Os sustos são uma coisa para a qual nunca estamos preparados. Assumem-se como um sobressalto repentino que nos interrompe por momentos normalmente curtos, o processo de vida e de existência. Durante o mesmo, e dependendo da dimensão do que se experimenta, muito embora um susto seja sempre um susto, podem chegar a percorrer-nos vidas diante dos olhos, sentires nas veias do peito, quereres e mágoas nas ligações do cérebro que  faiscam por dentro, mesmo que isso seja imperceptível do lado de fora. O processo exige de nós para além do razoável, muito embora sejamos capazes de o aguentar, aguentamos muito mais do que aquilo que julgamos, eu pelo menos aguento. Provavelmente haverá um limite, e chegará um dia em que o meu corpo, cansado por isto e pelo resto, se definhe sobre si mesmo enquanto minga e encarquilha, quiçá antes do tempo (?). Não tenho medo de um final precoce, nem sequer amargurado, não me intimida, não me assusta, não me desassossega. Guardo porém uma fragilidade capaz de deitar por terra toda a rijeza da minha existência, guardada e resumida a algo que amo para além do mundo. É ele que me leva aos sobressaltos, me suga as forças, me esgota devagarinho desde o dia em que nasceu. Não merece a pena enaltecer as forças que dai também me nascem, são mais do que muitas, não trato por ora isso. Apraz-me e no seguimento do dia dizer, num sossego final mais do que merecido, que existem coisas que nunca deveriam acontecer a mães. As mães têm lacunas no corpo que as torna incapazes de pensar quando algo as aterroriza. E nós sem recurso à razão não somos pessoas capazes. Somos toldadas pela aflição do medo de que o mundo nos maltrate, o que de mais precioso nos deu.


( Há muito que eu desconfiava que a emoção me podia chegar a matar.) 

You Know I'm No Good


O mundo parece sedento em levar-nos grandes talentos demasiado cedo (cedo?). Amy, uma frágil assumida, era dona desta voz que toca acima, forte como poucas. Esse mesmo mundo tem também a particularidade de nos deixar defronte grandes obras, que poderemos prolongar enquanto tal nos aprouver. Exactamente como podemos guardar muito dos que já nos deixaram, até no corpo, e em outras dimensões de sentimentos que não se resumam a arte. Não lhe relevo a injustiça, isso nunca. Mas aprecio-lhe o engenho, confesso.

(Sim, já cá tinha trazido esta música. E é bem provável que ainda a traga outra vez.)

Crenças

Henrique aboliu da toma diária o Bunil, o Tryptizol e o Lamictal. Diz que está calmo e muito tranquilo, mas entretanto esbraceja sozinho a propósito do nada, enquanto o gato se pavoneia à sua frente. É muito mais feliz assim, assume-me com uma certeza convicta de que aquelas drogas não lhe fazem falta alguma. Acredito nele. De resto, que mais poderá ser a felicidade senão uma crença suprema de que a temos, seja lá ela de que forma for? E isto generaliza-se para todos os lados.

( A crença é uma razão suprema do mundo. Não há nada mais forte do aquilo em que eu acredito.)

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Patrícia

Ainda agora por obra de uma ocorrência que nem vem ao caso lembrei-me de Patrícia, uma antiga colega de secundário que extraía pedaços de dentro do nariz para depois os engolir. O cenário era sabido e visto por todos, e não fosse a dita ser de uma inteligência suprema, tal comportamento nunca lhe teria sido perdoado. Assim acabou por assumir um carácter de sigilo, no âmbito daquelas  verdades que todos sabem mas das quais ninguém fala, entrando directa para um âmbito de questões que muito aprecio, pelo fenómeno em si. Foi uma pena aquele percurso, e por vezes lembro-me da pobre da moça. Seguiu uma tendência casual que poderia por certo ter sido impedida pela massa social da sala, não tivesse ela o azar extremo de ser um crânio, e de se assumir como a salva vidas de muitos em caso de aflição. Assim sendo, e durante anos a fio, reuniu nela substâncias diversas que ora se expeliam ora se ingeriam, num ciclo de aproveitamento sublime, uma confirmação apoteótica da máxima de Lavoisier. Diz que é Médica nos dias de hoje, soube entretanto, coisa que não me espanta nadinha. Era capaz disso em termos de intelecto e de humanidade, que sempre se prestou a ajudar quem dela carecia. Ninguém é perfeito, é uma verdade, e Patrícia apenas comia coisas estranhas. De resto era mesmo mesmo boa pessoa.

( E poderemos ainda daqui retirar a brilhante conclusão de que o que enfiamos no estômago parece não interferir com o cérebro. Boa?)

Por uma questão de lógica

Pensando em realidades diversas por vezes estanco e hesito. Entre considerar possíveis impossibilidades (?), ou antes em conceptualizá-las, uma vez que podem existir em uma outra razão que não a minha, por utópicas que me pareçam. Fico aqui, só podia, quanto mais não seja por respeito e pelo meu saber da experiência feito. Neste seguimento deveria então esquecer a palavra impossível, pelo menos no que toca a sentires e emoções humanas. Aboliria quiçá também o limite, isto num seguimento de lógica, claro.

Linda Martini - Adeus Tristeza


domingo, 24 de junho de 2012

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O mundo vai-se a ver e é uma questão de equilíbrio e de compensação, sendo assim possível um decurso na normalidade. Regra geral um desleixo para um lado exige obrigatoriamente uma compensação do outro, e isto é uma conclusão que posto num Domingo à noite, após ter lá chegado há muitos anos. E trago-a agora aqui  porque julgo que é uma realidade que deveria figurar nos manuais escolares, não aliada às Ciências ou à Biologia, mas sim à Humanidade no geral, e em muitas dimensões.


( Se calhar já figura e eu não me lembro. E se for o caso, então não percebo o porquê de tanta gente não a saber na ponta da língua tal como sabe a tabuada do dois.)

Para sempre

Desde que nascemos que nos fazem falta lugares de pertença. Crescemos envolvidos por eles e quanto mais seguros os sentimos mais serenidade ganhamos, dizem as teorias, e a mim também me parece. Antes do nascimentos não sei como se faz nem como se processa, admito meandros primordiais que nos sustentem algures no universo enquanto a nossa alma saltita de corpo em corpo e de tempo em tempo. Meras suposições, refutadas facilmente pelas ciências experimentais que mal chegam ao terreno do hipotético estancam mais ou menos como eu estanco em frente à exactidão incómoda dos números. Não a desminto, como fazê-lo, se de resto é ela que nos orienta, nos permite a existência tal e qual ela é, nos possibilita verdades, curas, compreensões e  outras razões necessárias ao nosso equilíbrio, que se arruinaria de todo se entregue à vagueza da mente e à suposição da hipótese. Sou do contra, será isso, e admito seriamente tudo o que suponho, tudo o que desconfio e essencialmente tudo o que não compreendo, terrenos sobre os quais me debruço com extrema dedicação de forma sempre infrutífera, incerta, crivada de dúvidas e de probabilidades sem possibilidade de afirmação. Mas dizia eu que nos fazem falta lugares de pertença. Sítios onde o nosso corpo se sinta seguro do mundo, guardado da dúvida, crente no futuro que não nos pertence e que por isso nos causa um desconforto de morte. Será também por isso que continuo a ouvir o para sempre proclamado por amantes crentes de que é ali naquele colo que chorarão as lágrimas, distribuirão os sorrisos, destilarão as dores e usufruirão de prazeres diversos, que naquela hora a crença é possível. Conseguimos encontrá-la cá dentro e transformá-la numa certeza que não temos, mas que se torna verdadeira porque a queremos muito e precisamos dela para que o mundo não se afigure como um terreno incerto, íngreme e pantanoso. Admiro esta nossa ingenuidade que nos nasce das nossas mais íntimas necessidades, que fazem com que sejamos capazes de jurar juras que não sabemos se quereremos sempre ou se não, perante um mundo que olha e aprova, para que a partir daquele momento passemos a ser dois e não um, cientes de que tudo será mais fácil: É ali que estamos e é aquela pessoa que pertencemos. Não deveremos por certo perder muito tempo a considerar o assunto, uma vez que se o fizéssemos de imediato compreenderíamos o tremendo disparate que cometemos. Não que eu proclame a impossibilidade da permanência dos sentido, acredito nela, considero-a, estimo-a, felicito os que a conseguem e admiro-lhes as cedências, os sentimentos, as convicções. Reflicto apenas e só nas palavras, nas juras que juramos sem saber possíveis, nos que nos move e impulsiona, nas nossas precisões. Entro só e em remate, numa ideia final sobre a qual me debruço amiúde. O para sempre pode constituir uma análise mais aprofundada do conceito, tendo em conta a nossa essência do momento. Considerando essa realidade, o para sempre poderá ser uma grandeza mutável, passível de alteração com a mudança do nosso corpo e das nossas ambições, sendo que poderemos aqui encará-lo como uma situação claramente temporária. Um para sempre enquanto nos mantivermos naquele patamar da existência e enquanto nos guardar do mundo, por exemplo. Neste seguimento o para sempre virá a nós ao momento, tornando-se num juízo particular e contextualizado, que se poderá facilmente transformar.


( Gosto muito de sentir algo para sempre. Traz de facto de arrasto toda a tranquilidade que acima descrevo, muito embora não deixe também de me acarretar alguma definitividade que me desassossega. Permito-me pois a esse discurso, sentido e simples, estando porém ciente das suas possíveis consequências.)

sábado, 23 de junho de 2012

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( Um sapato de salto alto alto é sempre qualquer coisa de fascinante. Houve em tempos quem me dissesse que os vermelhos traziam porte suspeito, como se possível fosse a cor do sangue aliar-nos a algum carácter indecoroso, tamanho disparate. Por vezes um sapato no topo de um blogue fica bem. Não todos os dias, atentem, só de vez em quando, quanto mais não seja para que os dignos leitores aligeirem os olhos perante as lavaduras mal cheirosas às quais os sujeito, todos os dias. Confessem-se animados, vá, não tenham medo. Esta beleza merece.)

Confiança

Há questões que provavelmente se assumirão em mim como eternas, deveriam até ser de fácil resposta, de pronta conclusão, mas a verdade é que constituem mistérios da existência sendo que devido a isso podem apenas residir dentro do campo das opiniões e das circunstâncias, sem que se possa ajuizar abrangentemente acerca delas. A confiança por exemplo é uma dessas realidades sobra as quais eu gostaria muito de ter uma opinião conclusiva e fundamentada, mas sobre a qual não consigo mais do que míseros sentires frágeis e sujeitos a colapso frequente, motivo mais do que suficiente para que o meu corpo muitas vezes se feche e salvaguarde, não sendo porém poucas as que se deixa ir para depois se estatelar no chão entorpecido, semi morto, ou apenas ligeiramente desvigorado, depende da dimensão da entrega e da desilusão. Ora aqui nem falo propriamente de questões de confiança ligeira, muito embora essa não deixe de ser um terreno importante da nossa existência, mas da confiança mais profunda, referente a valores vitais, daqueles que todos deveríamos trazer reunidos no corpo logo à nascença sem qualquer hipótese de perca ou afrouxamento. Mas a verdade é que não é assim que acontece, e é por isso mesmo que nos deparamos e nos vamos deparar provavelmente para todo o sempre, e isto encarando a natureza do Homem, com pessoas que nasceram viradas ao avesso ou que assim se tornaram por mor das circunstâncias, ou ainda uma junção das duas, a mais eficaz das junções, quando ambas se unem num propósito determinado. E é então daqui que se constroem ausências de valores que transformam pessoas em bichos ruins e perigosos, capazes de infligir intentos completamente animalescos que lhes nascem no corpo como fluídos medonhos, e que as invadem por dentro até ao ponto de se executarem as mais vis ânsias que reúnem. Não raras vezes esses seres, dotados de uma mísera inteligência que mesmo em resquício pode viver, usam artimanhas para deslumbrar a envolta, fazendo-a crer que estão perante alguém em quem se pode confiar, coisa que na sede da socialização facilmente fazemos. E é exactamente quando confiamos que nos tornamos vulneráveis, um terreno dúbio e extremamente perigoso pela confluência que se reúne em nós, frágeis e confiantes, até submissos. Não há sítio no mundo mais arriscado do que este, aguçado pela frequência com que lá caímos. Mas também não me parece que dele nos possamos proteger eficazmente, não somos dotados de perspicácia suficiente, pelo que a única coisa que me ocorre é vivermos assim e irmos tomando conhecimento de noticias infelizes vindas de onde menos se espera, e encará-las como a realidade que são, sem grandes indignações. 


( Proclamarei aqui uma mísera submissão? Ou tratará antes uma estratégia de adaptação perante uma realidade concreta e provavelmente inalterável?)

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Wonderful Life


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Entro lá dentro e por entre a penumbra descubro alguns rostos que conheço. Existem dois especiais que me pertencem. Não são meus realmente mas são da minha história, logo fazem parte do que eu possuo dentro do corpo, e seguindo então as teorias que venero são verdadeiramente pertença minha, uma pertença respeitosa, cooperante, uma partilha de ideias e pessoas que já passaram e que viveram na vida de ambas as partes. É um privilegio partilhar os momentos. Relembrar os sorrisos, contar as histórias, falar na cor dos olhos e naquela vez que caímos na piscina, em pleno Novembro e com muito frio. Há coisas que todos deveríamos viver na adolescência. Coisas que fazem mal à saúde e que nos podem constipar ou até fazer com que incorramos alguns riscos, desde que estes sejam controlados ao ponto de não se excederem determinados limites razoáveis. Andar à boleia por exemplo não é um deles, que até devo considerar, agora que sou uma mãe de família, que o perigo pode estar iminente numa situação semelhante, mas é um dos que corri um dia acompanhada de uma amiga e de umas tendas pesadas, enquanto música nos esperava no meio do arvoredo denso cortado por um rio gelado onde se tomava banho e lavava dentes e outras partes do corpo, diversas partes do corpo.
E então falei com esses rostos durante muito tempo e tocamos uns nos outros, não sei se já vos disse que aprecio mesmo tocar nas pessoas de quem gosto. Não toques amorfos, que esses prefiro não tê-los. Mas toques de carinho por quem estimo, e que vão desde a mão na mão à mão nas costas, ou outros com devido respeito e de carácter semelhante. Não consigo imaginar-me sem tocar nos meus velhos, nas minhas pessoas, no meu filho, nos meus amores. Não gosto de amar só ao som das palavras e de um cuidado ao de longe, quando posso sentir a pele dos outros que me completa e me dá uma enorme vontade de viver. Sinto por vezes que existem pessoas que não tocam nas delas. Fazem um encostar tímido e incomodado, provavelmente influenciado por mal estares internos que pesam muito e que não deixam espaço para interacções. Uma vez conheci uma Inglesa que não gostava do toque. Precisava do espaço dela como do ar que respirava, como se a proximidade com algum ser que vivesse do ar fosse o suficiente para que o seu corpo definhasse devagarinho e ansioso, uma apropriação de espaço de meter dó. Soube entretanto que morreu mirrada e sozinha dentro de uma casa vazia de janelas abertas. Um horror. Já tive também eu pessoas minhas que o consideravam dispensável. Que se refugiavam dentro da pele para não deixar escapar cá para for alguma verdade escondida ou dor reprimida, e que por isso viveram sempre longe de mim. Sei perfeitamente que me amaram, num amor forte mas distante onde se sobrevivia do afecto longínquo e da preocupação. Sobreviver significa escapar e resistir.

( Tenho saudades de algumas pessoas e eles são duas delas. Um dia fui de boleia só com ele e cheguei a Lisboa num ápice, pensei que morria levada pelo vento. Ele morreu sozinho e depois, lentamente, num caminho já no seu final. Ela também quis ir com ele. Passaram quinze anos e ainda há pouco senti-os muito perto reunidos nuns olhos profundos e doentes, que nunca mais viveram. Só escaparam e resistiram.)

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Músicas

Aprendi a falar cedo. Diz que antes do tempo, sem saber exactamente o que é que isso é. Antes do tempo é uma expressão abusiva usada por todos, nem sequer deveríamos ter direito a utilizá-la, muito embora o façamos com recorrência e dotados de certeza infundada mas nossa, de que o tempo nos pertence de alguma forma. Andei mais ou menos na hora exacta e escrevi quando fui para a escola, uma normalidade neste campo, podemos concluir. Cantar é que me lembro de fazer desde sempre. Lengalengas, cantigas ou versos, ladainhas e outras que tais, sempre serviram para que a minha garganta ganhe asas e eu me expresse livremente em qualquer local onde me encontre, e que pode ir desde a casa, sitio minimamente inofensivo, à escada do prédio, passando pelo local de trabalho. Por vezes sou apanhada, assim como hoje. Fico sempre com aquele ar meio comprometido de alguém que acabou de cometer um delito grave, e julgo que chego a ruborizar, uma vergonha para uma senhora da minha idade com a qual já me habituei a lidar. O problema não é que me oiçam cantar, atentem, nem sequer que se apercebam da dimensão real da minha voz de cana rachada ao meio tocada pelo vento. Isso são meras condicionantes inofensivas que não me impedem minimamente de dar azo aos meus propósitos uma vez que não uso a melodia para sobreviver. O problema é que o meu canto me expele a alma pela boca, vindo invariavelmente cravejado de sentimentos profundos, medos recalcados e vontades reprimidas, coisas por demais preciosas para serem escutadas clandestinamente por quem por casualidade me cruza no caminho, vá lá saber-se quem poderá ser, ou os intentos que reúne no corpo. A partir de hoje canto baixinho. Há coisas que só a mim própria podem pertencer.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Lisboa

De lá do cimo vê-se Lisboa. Lisboa é linda vista do lado de cima, quase tanto como vista a pé, em calçadas escorregadias que não combinam em nada com os meus sapatos. Um dia tirei as sandálias e palmilhei-a descalça, e nunca mais me vou esquecer disso. Mesmo ao meu lado ficava o Teatro da Trindade, uma das salas que mais aprecio na Capital, logo a seguir à Aula Magna, por motivos que anexo a momentos bons. O poeta Jorge Palma por exemplo, já me levou lá em tempos de estudante, e conseguiu trancar-me lá dentro sem que do lado de fora houvesse mais nada. Sempre gostei desta sensação, improvável, rara, diria que quase inexistente, que trata o vazio do espaço externo porque estamos apenas e só ali dentro, naquele lugar, onde mais nenhuma hora ou sitio merece existir. Esta sensação tem-se sumido com a idade, que me leva para além disto outras coisas das grandes. Muitas não lhes sinto a  falta, resigno-me, talvez seja isso, mas por esta confesso que peno. Não declaradamente, que não gosto dessas coisas, mas cá dentro, no reservatório das saudades, choro por lugares e tempos que valem por si e que hoje me morrem tantas vezes, porque já pertenço a muitas coisas. Lisboa é verdadeiramente linda vista de cima, mas ainda há-de haver o dia em que me descalço outra vez.

( As vontades planeadas são algo que não existe. São futuro, e portanto apenas incertezas.)

terça-feira, 19 de junho de 2012

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Este fim de semana, numa crónica escrita por um sociólogo no Diário de Notícias, encontro uma crítica meio disfarçada meio declarada a José Saramago. É a sua opinião, não me cabe aniquilá-la ou considerá-la de menor valor, mas não consigo deixar de sentir alguma ingratidão quando me deparo com estes discursos depreciativos direccionados a alguém que nos deixou uma obra como o autor em questão. Sou suspeita, amo o que ele escreveu e nos deixou transcrito nas linhas dos cadernos e dos livros. Considero que o meu amor pela sua escrita me possa influenciar ligeiramente as ideias. Mas ainda assim, e mesmo que a minha consideração e estima pela sua obra literária não fosse tão significativa, isso não seria suficiente para que a minha opinião sobre a dimensionalidade que incutiu na nossa escrita, fosse diferente. Não me importa lá muito os seus ideais e convicções, que isso era lá com ele. Importa-me antes a sua obra, e isso, é já connosco dado que resolveu partilhá-la. É nossa, pertence-nos e é de uma riqueza inigualável.

Perca de tempo, mas da boa

Pelo caminho passo por um cão que se sacode com muita força envergando uma vestimenta vermelha que me parece um lenço, apertado à volta da barriga com um nó. Os animais com dono podem ter de levar com isto em troca de uma casa e um prato de comida. Lenços nos motoqueiros, laços nas dondocas, fatinhos de lã nos idosos por mor do frio, e por ai em diante. E engraçado como por vezes existem prolongamentos desses em gente já grande, e ainda com as devidas adaptações, coisa contra a qual também não tenho nada a opor, convenhamos, estou só a constatar.

( A constatação de factos é uma coisa mesmo absurda que muitos fazemos bem. Aquela parte de por si só não nos levar a lado de nenhum não interessa para o caso, dado que faz com que nos sintamos grandes e inteligentes como tudo.)

segunda-feira, 18 de junho de 2012

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É por exemplo quando o vejo a dar-me pela orelha, (só) nos momentos em que os saltos me abandonam, a cantar Justin Bieber e Shakira enquanto faz caretas para o espelho da casa de banho ao mesmo tempo que dança com a escova de dentes, que eu pergunto a mim mesma se estarei preparada para o que ai vem, ou se a coisa vai ser um choque monumental. Já sei de experiência própria, a única válida e credível, que os choques não existem e que se existirem são aquelas coisas às quais nós nos adaptamos nem que seja à força. E já sei também que o nosso corpo e a nossa mente evolui no sentido da necessidade e da evolução das nossas crias, somos todos assim, eu sempre fui, e por isso também vou ser. Mas não obstante, e ainda que guardada pela (curta) distância de segurança que me separa do que ai vem, sinto uns ligeiros arrepios na espinha (ou então isto se calhar é do frio).

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Chego a perder-me no facebook só para me inteirar das histórias de amor. São tantas, tão diversas e tão voláteis, que nada me distrai tanto, a não ser, claro, a vida real quando ousa fingir que não é assim.

Mercado

É mercado do mês. No chão de terra batida dezenas de barracas de ferro e contraplacado armam-se no momento da venda e são cobertas de coisas diversas que possam ser precisas à população, sempre a preços regateáveis. As pessoas chegam em torrente, como se almejassem o momento em que podem comprar e levar para casa utensílios, géneros ou roupa, que por certo tornarão os seus dias muito mais felizes. A aquisição do que quer que seja, e desde que não venha em necessidade supridora de alguma doença ou afinidade, assume-se sempre como uma realidade prazerosa que nos anima os dias, quer a compra seja uma alface viçosa, um vestido florido, ou uma saca de milho amarelhinho que fará engordar os animais da capoeira. O que eu não consigo muito bem perceber é a pertinência do teor das bancas que vejo da estrada, mesmo rente ao limite da feira, e que exibem entre outras semelhantes, boxers de homem floridos e slips de senhora feitos em renda preta e adornados a pom pons cor de rosa, todos airosamente presos com molas de roupa coloridas, num aparato de regalar até o olho mais distraído. Não tenho nada contra o assunto, atentem, mas de facto, e tendo em conta a faixa etária e populacional que vejo entrar e sair do território, parece-me que aquelas peças possam encontrar-se um tanto ou quanto desenquadradas ou fora de sítio, mas se calhar até nem é o caso, dada a frequência da ocorrência, todos os meses, à terceira segunda feira, logo pela manhã, faça chuva, sol ou qualquer uma outra intempérie de que se lembrem assim de repente. Esta visão matutina adornada de ideias turvas e entorpecidas, que me povoam a este dia em especial, fazem com que desde logo imagine cá dentro do meu mais intimo território a senhora de totó na cabeça e  consideravelmente roliça que se abeira da banca dentro de tal indumentária, que por certo lhe assentaria na perfeição. Os tempos são de crise severa, e a realidade é que tudo o que nos incite à denguice do corpo e ao devaneio da alma só pode ser bem vindo, mesmo que seja na banca da feira, e de forma  exposta ao vento. As segundas de manhã afinal até  podem ser boas. Sou só mesmo eu que não simpatizo nada com elas.

domingo, 17 de junho de 2012

'Seven Nation Army'


Escolhas

Encontrei-a perdida na razão da existência. No que sabe ser certo e no que sabe ser errado. Não é inédita a consciência de que o que conseguimos não é o que deveríamos conseguir. Não é raro o sentimento de que não conseguimos ou não queremos ir mais além, quando sabemos claramente que o correcto em termos humanos seria irmos. E então como ficamos? Como gerimos internamente o impulso ao perdão, se for caso disso, e a eventual carga da culpa, se assumirmos que os caminhos que escolhemos trilhar não passam pelo que é correcto, mas sim pelo que nós escolhemos fazer, sob os desígnios do nosso passado, dos nossos cortes, das nossas defesas? E pergunto ainda o inverso. Onde nos situaremos depois, se ao invés de vivermos dentro do limite das próprias capacidades, ousarmos desafiar o nosso interior, e sujeitarmos posteriormente o nosso ser a uma provação que poderá até ser significativa, em nome da humanidade e da entre ajuda, mas em detrimento da nossa tranquilidade? Deparamo-nos obviamente com questões sem resposta dada à partida, como de resto são todas as respostas colocadas a questões que tratem com gente. Dependerão as decisões de uma auto análise profunda e eventualmente demorada, onde analisaremos o que nos move, o que conseguiremos ou não fazer, até onde estamos dispostos a apagar, ou no mínimo a atenuar, os efeitos que determinada pessoa possa ter tido nas nossas vidas, factos dos quais dependerá uma nova aproximação, quando ela é necessária. Era exactamente este o ponto onde ela se encontrava. Perdida no meio dela e do passado, que por muito que digamos que é passado, é o nosso passado, a nossa vida, as nossas dores e as nossas desilusões. Queria respostas. Algo que lhe apagasse a indecisão do corpo, um sentimento ímpar, dentro dos fortes que nos podem atingir. Queria que a situasse em um dos lados e lhe desse uma justificação que a apaziguasse o suficiente. Ou perante a culpa, ou perante ela, mas não consegui fazê-lo. Deixei-a ali, perdida em mundos já idos e defronte a uma realidade carente até a infinito. Ambos os caminhos são difíceis, sei disso, mas são dela, apenas e só dela. Não gosto de escolhas que não são minhas, e não uso fazê-las, mesmo que solicitadas. Não obstante, e quanto à situação em questão, talvez até por estar isenta, sei exactamente como procederia e encaixaria em mim as consequências. Mas isso sou eu, e apenas eu. Ela é ela, e limitei-me então a ajudá-la a pensar. Pode parecer irrelevante, mas essa ajuda pode ser preciosa, eu, por exemplo, já a solicitei inúmeras vezes. Depois saí, na esperança de que encontrasse um caminho, fosse ele qual fosse. Os cruzamentos podem ser de um desconforto inigualável.

Fora

- Ouves?, pergunta. - Oiço, claro, és tu a falar ao teu ouvido. - Que disparate, eu não falo para mim mesma. - Falas, só que por vezes nem te escutas. Não te apetece e fazes orelhas mocas.- Orelhas mocas? - Sim, orelhas mocas, deixas que as palavras que te traduzem saiam e entrem sem te debruçares, não escutas o sentido. - Hum, e que devo fazer? - Escutares-te!- Escutar-me? E se não gosto? - Escutas na mesma. Ou corres o risco de viver fora de ti.

sábado, 16 de junho de 2012

Desfasamentos

O desfasamento é sempre qualquer coisa que me põe a pensar. De resto nem preciso de grandes atiços para que a cabeça mo faça, que qualquer coisita por vezes irrisória, banal e comum, é o suficiente para que perca o meu tempo debruçada nela a tentar compreender porque é que é assim e não de uma outra maneira. Piorou significativamente esta vertente obsessiva do meu ser quando encontrei no caminho da minha estada alguém que me disse de boca cheia, e com ar de quem sabia muito bem o que dizia, que nada é por acaso. Ora se nada é por acaso, e considerando o facto uma verdade, é porque a existência do que quer que seja poderá sempre ser imputado a um qualquer motivo, sem nos debruçarmos aqui nos meandros da pura sorte e do destino, outros terrenos, esses verdadeiramente inexplicáveis à luz do que eu conheço, sendo que por isso não me merecem demasiada atenção. Mas dizia eu que o desfasamento me chocalha as ideias, acima de tudo porque me coloca sempre as questões do certo e do errado, da norma e da excepção. Na generalidade dos casos e se considerar seriamente as existências, fico sempre aquém da explicação que consideraria satisfatória para a minha pessoa, por não saber muito bem qual dos desfasados está certo. Por exemplo, e só para que me entendam, estará desfasado do mundo o meu professor de ciências da natureza que medita na relva da horta comunitária da cidade? Ou estará o mundo desfasado dele, que respira natureza pela pele e por todo o corpo enquanto as pessoas o olham de soslaio, por tamanha figura vinda de alguém que deveria constituir referência para os restantes agricultores, incluindo crianças, como a minha, potencial aluna futura? A par deste exemplo nascer-me-iam dezenas, centenas, quiçá milhares, que o que mais encontro nos meus dias são diferenças, umas menos significativas do que outras, umas mais gritantes, algumas que até nos podem fazer doer pela distância que mantêm de nós. Por isto tudo não morro de amores por esta palavra. Sinto um qualquer desfasamento estranho em relação a ela, como se ela não me fizesse falta neste contexto em questão, porque dado que dentro dos limites do respeito humano tudo parece fazer-me sentido. O nosso corpo e mente são grandes, gigantes, magnânimos. Sem o respeito pela globalidade que pode reunir e sem a aceitação da diferença, nunca caminharemos para pessoas melhores.

( Preocupante poderá ser o nosso sentir de desfasamento em relação ao redor. Esse sim pode causar mossa e da séria. Também sairia atordoado se não fizéssemos tanta questão em realçá-lo, mas isso parecem-me já sonhos a mais. )

Brothers in Arms

( Porque existem génios de determinadas coisas. Gosto de génios. São sempre pessoas despertas e entregues a algo. Correm o perigo de que o resto do mundo lhes fuja, mas nos entretantos brindam-nos como só eles sabem fazer.)

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Esclarecimento

Já tornei o blog sabido. Não o divulgo por aí além, mas há uma ou outra coisa que vou deixando no facebook, porque me apetece partilhar por lá. Ainda assim, há muita gente que não sabe que este espaço é meu. Mas é. E engraçado também que por vezes, e por portas travessas, descubro que me espreitam assim discretamente, e sabem exactamente quem eu sou. Não percebo se gostam do que lêem, não se pronunciam, ou se apenas lhes apetece espreitar o meu mundo. Já houve tempos em que isso me causava desconforto, mas hoje não causa. Até porque o meu mundo não fica aqui resumido. Isto é apenas um pedaço do que penso e que resolvo mostrar porque o posso fazer. O resto, o que é realmente meu, está no seu devido lugar. Sendo assim, ainda que escondidos, são bem vindos e gosto de os ter por cá. Mas atenção que eu não sou só esta. Sou muito mais para além do que escrevo, e posso até chegar a tentar ludibriar-vos, mesmo sabendo que isso não se faz. Só para não se sentirem um dia enganados. Ufa, assim já posso continuar sossegada.

( A propósito, sim, sou a Carla. Aquela que era para ser Nazaré Cristina, mas que por obra do divino ficou antes assim.)

...

A Segurança Social de vez em quando exige saber a minha condição perante os tribunais e as leis e empurra-me para os serviços, a fim de atestar perante tudo e todos que sou uma cidadã idónea e capaz de representar o que represento. Felizmente que ninguém me atesta o interior, terreno muito mais virulento, que a ser devidamente esmiuçado nas barras dos tribunais por certo me deixaria numa situação significativamente mais baixa nas crenças do povo, que vai-se a ver e os crimes até seriam alguns. Não falo de crimes sérios, mortais ou fatais, mas falo de pequenos delitos, quiçá punidos por lei se fossem ao acesso de todos. Não se exaltem com esta minha confissão, é uma mera conclusão do que nos povoa por dentro, sendo que todos temos terrenos pantanosos, vontades indesejadas, vinganças recalcadas que a podermos executávamos a bem da nossa justiça interna, que são guardadas cá dentro toldadas à sociedade, que enquanto se prestar a este propósito primordial da sua existência, nos salva. Mesmo ao meu lado encontrava-se uma jovem com requerimento na mão e um filho na outra. O pai do filho anda desaparecido. Não dá pensão de alimentos e não sabe da saúde da criança, das suas necessidades ou precisões. A jovem quer ir embora para outro País, talvez o dela, mas para levar a criança necessita de ordem, ao senão será barrada no aeroporto. Faz sentido, resguardam-se assim situações extremas que possam ocorrer à revelia de pessoas capazes. Mas também se dificultam e muito processos de pessoas frágeis. O requerimento não era ali, era em outro local, dirigido a outra pessoa. Deveria esmiuçar toda a situação, a fim do Sr Juiz avaliar o decorrer do processo e emitir posterior parecer. Pode demorar muito tempo, profere a funcionária, como se tal facto não fosse já sabido por todos. Acelere o processo, avisa ela, para a moça de olhos chorosos, roupa larga, criança pequena, e provavelmente pouco mais. Ela acenou e saiu, lenta, muito lenta.

( A lentidão do passos é delicada. Pode ser boa, pode ser desânimo. O estado de desânimo é um estado delicado da nossa existência. Não deveria por isso ser permitido a quem se enganou na vida, mas que ainda tem muita pela frente.)

quinta-feira, 14 de junho de 2012

A gente vai continuar


Verdades

No fundo do corredor ouvia-se um barulho estranho, quase como se alguém chorasse naquele sítio limpo de gente há tempo, sendo que a última pessoa a ter habitado ali tinha sido Gaiata, a velha que vendia peixe fresco numas bancadas de mármore que hoje não inspirariam confiança a ninguém. Entre o gelo que derretia ao ar, os gatos que se vagueavam pelo espaço, e as moscas que apreciavam verdadeiramente o cheiro da tripa que se retirava de dentro dos carapaus pequenos, e tínhamos então um cenário pitoresco, composto ainda pela velha gorda e grande de lenço na cabeça que deixava ver por entre os lábios secos e engelhados os seus poucos dentes de cor escura a mastigar a língua, que parecia não caber no espaço que lhe competia. Aquilo fazia-me uma confusão danada. Não me entrava dentro da cabeça, ainda pequena, este tipo de desproporcionalidades que eu encontrava amiúde nos dias, na língua da velha, nas mãos de Arnaldo, nos pés do velho amola tesouras que poderia por certo dormir de pé sem qualquer risco de queda, mas que quase não conseguia acelerar o passo se disso carecesse, que de imediato tropeçaria no tamanho exagerado que os sapatos tinham de ter para servirem seu propósito. Hoje, e passados vários anos, existem outras desproporcionalidades que me confundem mais além do que as de ordem física, meros desajustes que todos trazemos no corpo, e que com jeito e perspicácia sempre resolvemos sem maçadas de maior. Existem as estruturais e de carácter mais profundo, que me agoniam o estômago com uma força muito maior, capaz de me deixar nauseada por tempos indeterminados, sem que o enjoo sirva para o que quer que seja, convenhamos, podendo estão ser considerado um tremendo disparate. Mas dizia eu que no fundo ouvia-se um barulho estranho que nos assustou. Éramos uns quatro, e ainda somos do tempo em que as casas velhas causavam um fascínio tremendo, como se nelas pudéssemos encontrar tesouros preciosos guardados em baús carunchosos e recheados de riquezas grandiosas. Talvez por isso não recuamos, sendo que prosseguimos caminho meio a medo, como se no final do corredor algum monstro medonho nos pudesse agarrar e comer devagarinho enquanto os nossos ossos frágeis e finos fariam crac, dentro da sua boca gigantesca. Seria um festim, que nós crianças imaginávamos vezes sem conta nos medos que guardávamos dentro dos corpos pequenos, durante a noite, depois de apagarem a luz. Tive muitos desses, completamente infundados, que a verdade verdadinha é que até hoje nunca me deparei com nenhuma monstruosidade capaz de me devorar assim de um só trago, muito embora já me tenha deparado com outro tipo de maldades aberrantes e dignas de consideração, mas vindas de gente, vejam bem que coisa estranha. No final do corredor havia a sala povoada por uns sofás de napa encarnada mesclada a preto, com várias almofadas de pele de carneiro, onde a velha tinha dormido a sesta horas a fio, tapada com uma manda de Minde grossa e muito quente. A manta ainda lá estava. Mesmo em cima um pequeno gato miava. Nunca soubemos como para lá entrou, de onde veio, se já existia há muito, e como teria sobrevivido naquela casa vazia povoada apenas por almas penadas e velhas, incapazes de o cuidar. Levei-o para casa e foi um dos que me acompanhou mais tempo. Era Tareco, claro. A minha avó nunca soube que o resgatei da casa assombrada, embora agora lho possa contar, se surgir em forma de graça. Sempre achei a verdade e a transparência uma coisa muito bonita quando é útil, quando a devemos, quando ela é precisa ou necessária para manter a nossa ordem e a dos restantes. Quando não é o caso, julgo que há imensas que deveremos guardar para nós, pelo menos por períodos de tempo determinados. São as nossas verdades.



Ser mãe é...

Ouvir o filho a cantar o É sexta feira do Boos AC, no final mandar o boné ao ar, tudo após ter executado com os devidos gestos a letra, muito bem acompanhado da malta na festa da escola, e esconder uma lágrima atrás dos óculos de sol gigantes, que felizmente a festa era ao ar livre.

( E abomino a música em questão. Ora agora imaginemos que o puto me canta a Cinderela.)


quarta-feira, 13 de junho de 2012

Casa dos Bicos



Inaugura-se hoje. Independentemente do que possa dizer ou criticar na postura de José Saramago, este continua a ser um dos maiores escritores que conheço. Aprecio-o verdadeiramente, mas ainda que o estilo não me interessasse, penso ser inegável a qualidade do que escreve. Por isso mesmo vale a pena eternizá-lo ainda mais para além da obra, que quanto a mim já o tornou imortal.

Sapatos e outras loucuras

Não perco muito tempo a ler o que escrevo, mas às vezes calha por algum motivo específico. Foi o caso de ontem. Fiquei semi assustada, e teria ficado mais se o assunto não me fosse já ligeiramente familiar, analisado e estudado seriamente nos lugares convenientes e por isso quase digerido internamente. Consigo reflectir seriamente nos mesmos dias em que atiro para o ar, ou melhor para a página do blogue, meia dúzia de palavras sem jeito algum, em género de brincadeira, e completamente isentas de sentido relevante. Tendo em conta que o que se escreve poderá indicar estados de espírito, sentires diversos e ainda ser a expressão real do meu interior, isto poderá deixar os meus caros leitores um tanto ou quanto aflitos com o estado da minha sanidade mental, o mais perigoso de todos os terrenos do mundo. Percebo, não levo a mal, e nem sequer entro em grandes defesas que não tenho por onde. Está de caras, escrito aos olhos de todos, percebido por quem me ler com algum nico de atenção que lhe sobre nas noites que seguem os dias de correria, aos quais se sujeita por certo a maioria de quem me lê, que eu não sou totalmente pura das ideias. Perdoem-me os ociosos, também gosto deles e por isso também lhes admito estes pensamentos. Há muitas alturas em que penso nisto. Não só na escrita, mas por exemplo na fala e na versatilidade da minha existência, capaz de se fazer adaptar ao minuto do sentido, o que faz com que determinadas convicções não mudem com o vento, é bem que se entenda, mas adaptam-se aos dias, aos minutos, a quem está mesmo ali ao lado. Talvez nas palavras que escrevo isso também se note muito, ou melhor nota-se claramente, e é por isso que eu neste exacto momento estou feliz por vos ter escrito isto, não em carácter de desculpa mas de informação,  e de ter morto definitivamente aquela imagem de mulher ensandecida que por certo existia em muitas cabeças ai desse lado, até porque isso para vocês deverá ser de extrema importância. Não sou louca. Pelo menos para além da normalidade. Mas rio e zango-me quase ao mesmo tempo, o que é de facto estranhíssimo. E no meio disso tudo, e embora ultimamente nem fale nisso, ainda gosto de sapatos. E muito. E também amo campos de golfe, entre outras coisas que não vêm agora ao caso.

( Sei lá, mais uma ou duas, como o cheiro da minha vela baratinha do IKEA e a fotografia da menina que me sorri todos os dias no calendário da UNICEF. Como vêm, a quererem, podem continuar a passar por cá. Não é loucura, e nem sequer é contagioso.)

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O facto de determinadas noticias estarem em determinados jornais diz-me que são notícias muito importantes e que muita gente quer ler, como determinados casamentos que acabam e outros que começam, o porquê e o porque não, os meandros das questões, as discussões, os motivos, as traições, se for caso disso. Percebam por favor, são notícias importantes para o mundo, então? Por exemplo a menina que canta e que tem filhas com nomes estranhos que geram músicas e o moço que dá uns chutos enviesados numa bola em campos diversos, parece que estão para ir cada um para seu lado. Incompatibilizaram-se, não consigo entender como foi isso, mas foi. E pronto, se quiserem mais é só digitar que aparecem dados em catadupa. Mas podem também clicar noutras coisas, que aparecem dados sobre eles em catadupa na mesma, é só sorte, hã?!?!

terça-feira, 12 de junho de 2012

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Aqui, é onde alguns conseguem chegar. A fronteira entre o animal instintivo e o Homem parece-me cada vez maior. O instinto age em defesa da necessidade. O Homem pode agir em pura maldade, o que é significativamente pior.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

?

Os animais andam a enganar-se nas previsões efectuadas. Não percebo como é que isto é possível. O meu cão não se enganou, comeu tudo da sua taça amarela. Nós também temos amarelo, mas eles têm uma bandeira mais dada aos canários, com todo o respeito. O facto de o meu cão não ter uma taça de outra cor não me parece interessar para o caso. Interessa que comeu tudo da amarela, logo era mais do que óbvio que a Alemanha nos ia ganhar. Estas previsões fundamentadas enchem-me o olho. Muito mais do que os Professores Karamba, que são grandes e barrigudos e dão sempre a sensação de que fazem previsões levianas só para encher a pança. Com os animais não é assim, a coisa soa-me a sério. Estou até capaz de ir consultar a vaca, mesmo após o engano. Tenho umas perguntitas para as quais me dava um jeitão resposta prévia. Duas ou três, pouco mais, não tenham medo que não dou cabo dela.

ídolos

Não ligo aos ídolos, mas o João é da minha terra e é um giraço. A Bárbara Guimarães também me parece que  acha. Votem nele pá, que eu não tenho tempo pra isso.

Reflexões

Alain de Botton escreveu no seu livro Religião para Ateus, que deveríamos aproveitar o que cada uma das doutrinas nos dá de bom para a nossa vida. Incita-nos a retirarmos as mais valias de cada uma delas sem entrarmos nos meandros da crítica destrutiva, o que só me pode parecer uma ideia excelente. Alarga ainda horizontes orientando o Homem a agir sempre a favor da sua evolução e do seu devir, seja através da arte, da autognose, da terapia. Encarando o mundo moderno e a crise de valores que encontro na conjuntura actual, parece-me um bom mote de reflexão. Ainda que sem conhecer a fundo a obra do autor, julgo as ideias que profetiza dignas de reflexão interna por cada um de nós, independentemente das crenças religiosas a que estamos subjugados.

Nietzsche, por exemplo, e numa obra estudada e odiada por muitos, mas venerada por outros tantos, proclama uma visão extremamente interessante da humanidade. Não está em questão os desígnios que proclama mas sim a visão da realidade sob um ponto de vista totalmente diferente ao acordo universal. Não tenho por hábito concordar com tudo o que leio, mas cada vez mais as visões diversas do mundo me cativam e me desassossegam. Julgo que acima de tudo me ajudam, coisa que admito, me dá um jeitão enorme todos os dias.)

domingo, 10 de junho de 2012

Eternidades



Os bolos de ferradura, no Inverno com chá ou café, e no Verão com iogurte fresco. Nada lhe chega aos calcanhares. Hoje tenho um quilo cá em casa, amanhã não sei o que ainda haverá.

( Em termos de pódio concorrem apenas com queijo. Nas mais diversas formas e vertentes, de preferência acompanhado a tinto. Estas poucas coisas e pão caseiro chegavam perfeitamente para o meu modesto viver.)

Imaginações

Há sítios onde o tempo não corre. Nesses lugares o mundo situa-se do lado de fora das pessoas enquanto elas por dentro esperam o que nunca vem, vivem das imaginações guardadas na alma, ambicionam o que no fundo sabem que não volta mais. A serenidade será por certo um terreno difícil de encontrar, fustigado por vendavais esperados mas ainda assim renegados, que sabemos que um dia nos abanarão ao ponto de cairmos para não mais levantarmos. Nesses locais deveria ser proibido correr, pelo menos de forma leviana. Deveria também ser proibido falar alto, dizer palavras duras e secas, ausentes de sentimento. Nestes lugares onde o mundo se espera em vão deveriam existir doces em todo o lado que abafassem e escondessem, nem que fosse entre frestas, as agulhas, os soros, os aparelhos que seguram respirações à vida que mesmo assim se some aos poucos, e abandona os corpos que a acolheram  e cuidaram como se ela fosse o bem mais precioso. E é. Talvez por isso os desperdícios que se cometem com ela me façam mal à existência. Vivemos muitas vezes de forma imprudente, deixando ao encargo do tempo grandezas que deveríamos gerir de forma cuidada e devidamente enquadrada dentro dos dias que temos hoje, sem pensarmos em demasia nos dias que eventualmente teremos amanhã. Não quero com isto dizer que a ambição e o percurso não devem constituir caminhos. Quero apenas dizer que se não vivermos agora corremos o risco de não vivermos nunca, porque o amanhã é apenas e só a nossa imaginação. Não é concreto, não é palpável, não é sequer visível, é apenas programado. Poderíamos ainda aprender com quem vive nos mundos parados à espera. Quem vive nos mundos parados à espera vive do agora, da palavra, do toque e do cuidado. Vive do conforto e do alívio, vive do presente, porque o amanhã pode não vir. Mesmo nos lugares onde o mundo não corre, um dia o amanhã já não vem.

sábado, 9 de junho de 2012

Junções

Uma amiga e umas compras são uma junção capaz de atirar para o charco dores e males diversos. No final está tudo igual outra vez, com a diferença significativa de reiterarmos que os amigos são pessoas que nos fazem sempre bem, e que as compras também são uma grandeza, amiga de qualquer mulher.

( Como adição vantajosa escolhi a amiga grávida. Ela não sabe, mas foi a dedo. A fim de não estacionar longe, não esperar em filas, e ter sempre lugar nos banquinhos de madeira guardados para os velhos, as grávidas e suas acompanhantes de saltos muito altos. A pena são as lojas de criança pequena, os vestidinhos de folhos e as miniaturas ausentes dos projectos, mas que sempre espicaçam um instinto recôndito e esquecido.) 

...



Lá na casa alta de telhado cinzento um gato sobe tal e qual tudo fosse dele. Senta-se na ponta e desafia a queda como se a vida não fosse entregue ao descuido, ao resvalo, à casualidade de uma escorregadela. Faz tudo com uma pose aristocrática que lhe vem de berço, nada a ver com a minha, construída, mortiça, pouco evidente a não ser para mim mesma, que julgo possuí-la. Esta aristocracia que venero ninguém a vê, não se percebe, não se encontra, é interna a mim. Vive residente nas entranhas da minha alma e faz com que também eu ache que não escorrego nunca de um penhasco muito mais alto do que o telhado dele. Estamos ambos enganados mas ambos ousamos sonhar que não, coisas que convenhamos, quando vêm de mãos dadas, até parecem ter sentido.

( Invariavelmente despertamos. Traduzimos para sinais perceptíveis a possibilidade das quedas, e a já ser caso disso, levantamo-nos outra vez. O fim à vista, ou seja a aprendizagem afectiva, é algo de inalcancável pelos meios que conheço.)

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Sozinho (Silêncio da noite)

( O silêncio é sempre um lugar de encontro. O encontro pode ser apenas e só connosco mesmos. O mais provável e por vezes, ironicamente, o mais difícil de todos os encontros.)

...

Tudo pode ser considerado limite. A minha porta é o limite da minha casa, a minha janela é o que me separa do jardim, a minha pele é o que me guarda do mundo e me permite existir enquanto ser individual e físico. Ninguém consegue porém ver os limites da minha alma. A alma é um vazio sem espaço e sem tempo que se vagueia perdida num mundo imenso e livre. Nesse mundo não existes tu nem existo eu, existe uma fusão global e superior, completamente intemporal. Parece-me pois ser no vazio o cerne da existência da mente, a única que verdadeiramente importa e que se revela nos corpos que a recebem, meros meios de acolhimento. Gosto de pensar a realidade desta forma. Gosto de considerar a permanência da minha alma em detrimento de um corpo físico e finito que um dia me morrerá.

( Tudo porque li isto. Um grande texto como já é hábito, que remete ainda para muito mais além do que aquilo que trago aqui.)

...

Não consigo encaixar o futebol tal como ele está no mundo que temos. Parece-me qualquer coisa semelhante a uma instituição à margem. As instituições à margem por norma não são indiferentes, salvo as devidas, muito raras. E as restantes, ou seja quase todas, quando não fazem bem, fazem mal.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Sufocos

A mesa era feita de madeira pintada de branco e comida nas pontas dos pés e nos rebordos do tampo. Era pintada a uns quadrados que não lembra a cor, talvez azuis, eventualmente cinzentos. Era alta. Lá debaixo brincava uma criança enquanto ao de cimo uma senhora bordava. O pano era linho. O dedal protegia o dedo fino e hábil e as flores nasciam no pano coloridas e organizadas formando jardins de fundo branco. O gato sempre Tareco, fosse um, ou fosse o outro que vinha depois, brincava com uma bola de pano que a garota lhe mandava. Na manta que cobria o chão pequenos pratinhos de plástico, panelas e talheres, serviam para que a brincadeira entrasse no âmbito do sonho, como de resto, é próprio do brincar. Quando brincamos, sonhamos. Imaginamos coisas que gostaríamos que fossem, assumimos papéis que gostaríamos de ter, ganhamos identidades que ambicionamos e experimentamos tudo o que quisermos. Ele normalmente só vinha de noite. Trazia uma boina na cabeça a condizer com a camisa de bom corte e com a gravata atada com um nó a preceito. Comia um pão integral e uma sopa sem sal, que para salgada e apetitosa já lhe chegava a vida dos dias. De noite queria descanso. Ela usava fazer tudo o que lhe agradasse. Os restos do segundo iam invariavelmente para os cães. Era ele que levava enquanto ela regava a horta e tratava dos coelhos, ao mesmo tempo que a garota andava num baloiço de corda e assento de madeira cortado dos lados para que encaixasse. Voava a menina. Voava sempre muito alto e impulsionava-se com os pés quando ia atrás, o que a fazia voar ainda mais. Depois aprendeu a saltar quando o baloiço vinha à frente. Aproveitava o embalo e ia parar muito longe, quase ao pé do canil. No canil moravam cães sem nome que caçavam coelhos ao fim de semana e que por vezes fugiam, mas voltavam sempre. Presa na árvore morava uma macaca pequena, trazida de África pelo tio que viajava. A menina tinha medo dela e nunca lhe chegava perto. O corvo Vicente era grande e corria à frente de toda a gente. A menina por vezes, quando saltava do baloiço, caia no chão e o Vicente fazia um barulho estranho, quase parecia que sorria. Ela sorria também, levantava-se e voltava a saltar cada vez mais longe, enquanto a senhora regava as alfaces, as couves, os alhos e os limões. Os limões serviam para o chá, para a limonada e para cortar compotas que ela fazia com mestria para adoçar o pão da menina e a merenda do marido. À noite a menina ia para casa. A senhora abria a cama, preparava o chá, engraxava os sapatos dele até eles brilharem. No outro dia, mais ou menos, tudo igual outra vez.

( As rotinas são algo de muito saudável, fazem-nos agir todos os dias de forma tranquila e individual. São também insensatas. Fazem com que deixemos de ver algumas pessoas, acções e coisas que de tão nossas quase deixam de existir. Esta parte má sufoca a parte boa. Uma das artes dos dias talvez seja a eliminação desse sufoco. Como qualquer outra arte não está ao alcance de todos.)

Velhos

Às vezes as nossas pessoas ficam mal. Não são as outras pessoas, são as nossas. As nossas pessoas não têm idade. Não ficam velhas demais, não deixam de ser nossas, vão existir para sempre em nós, logo nunca desaparecem, fazem-nos sempre falta, nunca terão anos suficientes para considerarmos que entretanto vão embora. Julgo haver quem não perceba. Serão por certo os que nunca perderam gente velhinha, ou ainda os que não conseguiram por motivos diversos amar verdadeiramente essas pessoas. Porque os que amam verdadeiramente os velhos sabem que eles nunca são velhos demais para deixarem o mundo, o nosso mundo. O mundo é uma coisa abrangente e diferente. Cada um tem o seu mundo, e dentro desse mundo as pessoas que o povoam são infinitas, mesmo que o não sejam. Ninguém é fisicamente eterno. Mas nesse mundo que é só nosso os sentimentos são eternos, mesmo que alguém tenha de ir embora. No nosso mundo a revolta surge sempre. Não creio que trate egoísmo, embora por vezes chegue a pensar isso. Julgo que trata antes uma pertença, uma união, uma identidade que se renova e que faz parte da vida, mas que queríamos que fosse feita de outra forma, sem ninguém sofrer e desaparecer. Concebo que a eternidade é um contructo utópico dada a nossa condição. Concebo que apenas é possível internamente, enquanto nos durar a existência física. Depois dela não sei, por isso não falo. Não gosto de falar sobre o que não conheço, mas gosto de o fazer relativamente ao que vivo e sei ser verdade. E eu sei que o amor que é nosso, feito no nosso mundo e construído à nossa medida na nossa vida, em cada ano, passo e dia, é eterno e por isso nunca fica velho.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Me gustas tu


A Ministra bonita

Ao ler as considerações acerca da Ministra do Desporto Polaca surgem-me inevitáveis questões. Será efectivamente como dizem? Ou será que uma Mulher por ser bonita, como de resto é o caso, é obrigada a levar com o estigma da incompetência/ oportunismo/ aproveitamento descarado dela, ou de alguém por ela? Não me centro apenas e só aqui, até porque volto a dizer, não conheço os fundamentos reais da situação. Centro-me numa abrangência que vai muito mais longe. A competência não rima com a beleza, e a surgirem efectivamente juntas incomodam porque são demais, principalmente no género feminino. Logo o melhor é banir uma delas, e o mais fácil de eliminar é realmente a competência, pelo menos numa primeira fase.

( Uma mulher competente e feia é qualquer coisa fácil de engolir. Já uma competente e bonita vem cravejada de espinhos que se atravessam na garganta e magoam quando passam. São intragáveis, convenhamos.)

Amanhã é longe

Agora que vem ai o verão, é altura para relembrar que ainda há quem teime em que o castanho dourado é uma meta, sem a qual não se tem pontinha de charme. É mentira isso, e para além do mais umas pinceladas de pós ajudam a equilibrar as desgraças mais evidentes. Se não vos chegar então sujeitem-se, olhem aqui que giras e giros vão ficar daqui a uns anos.

( Há coisas sobre as quais nunca é demais falar. Pelo menos quando ainda se continua a ver, tal como eu vi no verão passado, miúdas inundadas de óleo para bebé a fritarem ao sol. Passados uns dias de glória volúvel largam a pele, mas nessa altura já devem ter ido à festa x e conquistado o rapaz y, com o vestido de decote v. E daqui a uns anos é uma realidade longínqua que não interessa nada nem vale preocupações, a não ser quando lá se chegar.)

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Sintonias

As pérolas redondas dão-lhe um brilho na tez baça e macilenta que outrora brilhava por si. Cansou-se e deixou de brilhar sozinha. Procurou alcances longínquos que chegou a julgar inexistentes, convenceu-se de que deambulava errada e encostou-se no negro da desventura, da desesperança, do sossego inacabado que é um sossego estranho e ansioso. Não gosto de sossegos inacabados. Fujo deles como quem foge de uma doença medonha, daquelas capazes de me levar inteira daqui para outro lugar. Raramente sossego. Sossego em pequeninos momentos que me surgem nos dias bons. Enquanto pincela o rosto de brilhos rosados lembrou-se do tempo em que o desperdício lhe tomava conta da vida. Um desperdício pelo que não alcançava, pelo que desejava, pelo sossego sossegado de quem nada procura porque já encontrou muito. Chegou a inquirir-se na nobreza dos caminhos. Chegou a questionar as escolhas em sintonia com os outros, os métodos íntegros, o aquém onde fica quem a eles se entrega de corpo e de alma como alguém se entrega a um amor quando ama. Questionou então o aquém. O que seria isto de ficar aquém, e onde se encontraria o supra sumo da existência? Usava surgir-lhe num conjunto de vivências que não tinha, de sonhos apenas sonhados, de sentires só ambicionados que desenhava a aguarela colorida mas esborratada, ténue, sumida. Foi pincelando o rosto e redescobrindo-se a si. A plenitude deverá ser qualquer coisa de próprio, de individual, género pessoal e intransmissível, e por isso mesmo passível de ser vivida e nunca transmitida, partilhada, publicitada. É nesta pertença essencial de objectivos supremos que entretanto se encontrou. Uma sintonia interna consigo, ainda que inundada de uma envolta incrédula e fugidia que se julga autoritária nos desígnios da vida mas que pouco sabe dela, quando comparada com ela mesma.

( O amor é de facto exactamente igual. Um sentimento pessoal e intransmissível vivido só por quem o sente e se entrega de corpo e de alma. Nunca tenham pena destas entregas. Nunca as chorem ou lamentem. Só uma entrega de corpo e de alma nos permite o sublime ainda que sujeito ao sofrimento, condições essenciais para que a vida faça algum sentido.)

domingo, 3 de junho de 2012

Momentos

A felicidade deveria ser medida e encontrada em instantes e momentos. Avaliação feita por nós, únicos interessados. Esses momentos deveriam chegar por si só sem esperarmos outros iguais ou maiores, ou no mínimo semelhantes. Uma espécie de fins em si mesmos, proclamados por Emanuel Kant em outro contexto não menos valioso.

( Tenho dias em que pego nos pensadores e encontro sempre verdades escondidas que em tempos desdenhei, por me terem sido impingidas. Nada do que me é impingido me faz grande efeito na hora exacta em que deveria fazê-lo. Outras ainda, e muito embora as considere em absoluto, perseguem-me o intelecto mas abandonam-me em emoção. Um equilibro que nunca na vida consegui estabelecer no meu corpo.)

Clareza


Quando olhamos para alguém estamos longe de conseguir imaginar o que lhe vai dentro. Contaram-me agora a história, que de facto apresenta contornos cinematográficos e da qual eu estava longe, não por nada em concreto, apenas porque o desconhecimento nos transforma em autênticos estranhos uns para os outros, a não ser em casos específicos e devidamente fundamentados. E mesmo ai existem estranhezas severas, profundas, cravejadas e enraizadas, muito embora apareçam sobre outras formas que se insurgem, na ignorância do que são capazes. Adiante. Ele era rico, ela pobre, aquela história de sempre usada e abusada nos romances escritos por grandes escritores, nos filmes feitos por grandes cineastas, nas vidas reais de pessoas a sério. Ainda para mais o pai dela tinha morto a tiro um comparsa médico que deixou morrer nos braços alguém precioso, erro imperdoável cometido na época em que os erros imperdoáveis se puniam em praça pública, em mãos ou em outros artefactos que permitissem repor ordens e honras arruinadas. Findo o processo, e uma vez que o rastilho mirrou perto não permitindo que o restabelecimento da ordem continuasse por mãos secas e enraivecidas, o pobre foi preso, guardado anos a fio dentro das muralhas de uma cárcere, local onde segundo consta e por meandros que desconheço, Arminda foi fabricada, no decorrer de uma visita numa tarde ruidosa de Domingo, algures num sítio de certo recato. Bom, não sei se será bem entendida esta parte do desconhecimento dos meandros da feitura de gente, será melhor deixar esclarecido que o que eu desconheço realmente é toda a arquitectura necessária para que tal engenho se desse dentro do terreno da cadeia, de forma totalmente clandestina segundo consta, e não propriamente o mecanismo prático da execução do processo, que desse faço uma pequena ideia. Nunca o imaginei muito a fundo, faz-me alguma confusão interna inserir-me dentro das vergonhas alheias, das cruezas de corpos que não me pertencem, na leviandade de gente que se deixa escorrer pelos meandros da perdição em locais clandestinos e passíveis de vislumbre por alguns olhos curiosos que existem no mundo a cada esquina, e que nunca mais saberemos se viram ou não.
Toda esta história era sabida na aldeia onde ambos moravam e onde Arminda veio a crescer, coxa de perna por mor de uma poliomielite aguda que lhe entrou dentro do corpo. Ora sem pai ora já com ele, devidamente carimbado por uns carimbos azuis numerados que o indicavam como sendo um ser marcado pelo negrume, pela desgraça, pelo impropério cometido algures em tempos e devidamente remediado, como manda a lei e o homem, foi-se tornando crescida e engraçada, apesar da moleta que lhe segurava a anca esquerda, na qual se amparava com cuidado e delicadeza. Apaixonaram-se. Ele rico, ela a filha do presidiário, e eis que antes que se fizesse tarde, porque naquele tempo e ao contrário do que se diz por ai nas bocas das velhas devotas, também se fazia tarde muito cedo, já um ser prosperava no ventre de Arminda, acolhido pela Primavera e medrado no Verão, que ia-se a ver e já não havia remédios conhecidos para dar cabo daquele trabalho a não ser o nascimento efectivo e a posterior criação. Desposaram-se os jovens como era hábito naquelas bandas, em forma sigilosa de remedeio, e compôs-se assim uma casa improvável, na qual foi nascendo gente, agora uma e depois outra, perfazendo o total de oito que hoje já o não são. São menos, ai uns seis, que a vida encarregou-se de reduzir precocemente o número avultado e preciso, que quantos mais fossem mais terra se cultivava, mais bens nasciam, mais riqueza se criava. Não havia cá lugar a pensamentos e reflexões debruçadas nas condições financeiras, entretanto diminuídas, habitacionais ou de saúde materna, que as pessoas nasciam à margem disso tudo e ao sabor da natureza, amontoando-se pelas casas de telhas vãs e de chãos de terra batida, por onde circulava o vento, o frio, os ratos e outra bicharada que não assustava ninguém e que fazia parte da casa, dos dias, da vida.

( Tenho alturas em que invejo a leveza de outrora. Cravejada de espinhos fortes e de amarguras diversas que eram vividas como se fossem a vida, e não com o rancor da desgraça que hoje encontro nas caras das gentes. Não se apressem, não recuaria. A clareza não é sinónimo de leveza e entre ambas prefiro claramente a primeira.)

sábado, 2 de junho de 2012

RGB

( Vi-os ali no sofá da minha sala enquanto o peixe nadava e o meu filho brincava. O sossego é um posto. A confusão por vezes faz-me falta.)

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Excepções

Todos os dias são ocupados a olhar para dentro dos olhos dos outros. Após encostá-los na maquinaria destinada ao efeito, procura lá dentro doenças várias que podem ir desde cataratas, miopias, estigmatismos, úlceras, e outras de carácter diverso que atacam os olhos e envolventes, deixando quem delas padece numa subjugação indesejada. Nunca puderam acusá-lo de indelicadeza. Habituou-se a pegar nas pálpebras com um jeito minucioso digno de um neurocirurgião, que se há parte do corpo que respeita são os olhos de quem o procura, ponte para a realidade circundante. Diz que não concebe a existência de profissionais isentos desta cortesia, que a esses deveria de ser reservado o trato com máquinas, e nunca o trato com gente. Concebe ainda que sejam a excepção à regra, pessoas um tanto ou quanto amargas de boca, que por tal coisa deixam destilar pelas diversas partes do corpo um azedume característico e impossível de conter, sob pena séria de contaminarem o corpo a pontos nefastos. Mas agora serem a regra, é que é coisa que de facto não compreende. Empreendeu-me este discurso na sequência do tratamento ministrado por determinada equipa de enfermagem, caída a despropósito, só pode ser isso, num certo hospital. Uma equipa constituída por um conjunto de gente sem voz, ou em alternativa possuidora de voz áspera e aguda, que se dirige, quando tal coisa acontece, de forma contrariada e extremamente seca. Os doentes deitados em camas de hospitais, donos de um número e de um corpo sem nome, olham-nas de soslaio mas entregam-lhes a vida, quase sempre debilitada e fragilizada pela situação. Outra classe, responsável pela distribuição das refeições, leva e traz tabuleiros de forma despersonalizada, sem sequer olhar para dentro dos mesmos, numa certificação de se estão vazios ou cheios. Não importa, não são pagas para terem tal cuidado.
Chego a pensar se o que dá origem a esta vagues do serviço é uma consequência de uma auto defesa que honestamente não sei como é, ou se trata sim uma postura considerada admissível, por poucos se queixarem dela, devido ao estado de necessidade. Sendo uma ou sendo outra, julgo ambas condenáveis. Uma cama de hospital é sempre um sitio feio, assustador, potenciador de medos e de fragilidades. Mãos e palavras doces são sempre precisas para quem está e para quem vive ao perto. Asperezas e amarguras deveriam ser banidas, ou quando muito, serem efectivamente a excepção que confirma a regra.

( Já não está lá. Velhinha e frágil nem ousa dizer o quer que seja. Nem deu por algumas coisas, julgo poder dizer. Se o trabalho e ao invés, tivesse sido delicado, por certo recordaria o conforto e a dedicação, a maior marca que podemos deixar por onde passamos. A doença continua a assustar-me. Ou melhor, a vulnerabilidade e a dependência. )

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