quinta-feira, 7 de junho de 2012

Sufocos

A mesa era feita de madeira pintada de branco e comida nas pontas dos pés e nos rebordos do tampo. Era pintada a uns quadrados que não lembra a cor, talvez azuis, eventualmente cinzentos. Era alta. Lá debaixo brincava uma criança enquanto ao de cimo uma senhora bordava. O pano era linho. O dedal protegia o dedo fino e hábil e as flores nasciam no pano coloridas e organizadas formando jardins de fundo branco. O gato sempre Tareco, fosse um, ou fosse o outro que vinha depois, brincava com uma bola de pano que a garota lhe mandava. Na manta que cobria o chão pequenos pratinhos de plástico, panelas e talheres, serviam para que a brincadeira entrasse no âmbito do sonho, como de resto, é próprio do brincar. Quando brincamos, sonhamos. Imaginamos coisas que gostaríamos que fossem, assumimos papéis que gostaríamos de ter, ganhamos identidades que ambicionamos e experimentamos tudo o que quisermos. Ele normalmente só vinha de noite. Trazia uma boina na cabeça a condizer com a camisa de bom corte e com a gravata atada com um nó a preceito. Comia um pão integral e uma sopa sem sal, que para salgada e apetitosa já lhe chegava a vida dos dias. De noite queria descanso. Ela usava fazer tudo o que lhe agradasse. Os restos do segundo iam invariavelmente para os cães. Era ele que levava enquanto ela regava a horta e tratava dos coelhos, ao mesmo tempo que a garota andava num baloiço de corda e assento de madeira cortado dos lados para que encaixasse. Voava a menina. Voava sempre muito alto e impulsionava-se com os pés quando ia atrás, o que a fazia voar ainda mais. Depois aprendeu a saltar quando o baloiço vinha à frente. Aproveitava o embalo e ia parar muito longe, quase ao pé do canil. No canil moravam cães sem nome que caçavam coelhos ao fim de semana e que por vezes fugiam, mas voltavam sempre. Presa na árvore morava uma macaca pequena, trazida de África pelo tio que viajava. A menina tinha medo dela e nunca lhe chegava perto. O corvo Vicente era grande e corria à frente de toda a gente. A menina por vezes, quando saltava do baloiço, caia no chão e o Vicente fazia um barulho estranho, quase parecia que sorria. Ela sorria também, levantava-se e voltava a saltar cada vez mais longe, enquanto a senhora regava as alfaces, as couves, os alhos e os limões. Os limões serviam para o chá, para a limonada e para cortar compotas que ela fazia com mestria para adoçar o pão da menina e a merenda do marido. À noite a menina ia para casa. A senhora abria a cama, preparava o chá, engraxava os sapatos dele até eles brilharem. No outro dia, mais ou menos, tudo igual outra vez.

( As rotinas são algo de muito saudável, fazem-nos agir todos os dias de forma tranquila e individual. São também insensatas. Fazem com que deixemos de ver algumas pessoas, acções e coisas que de tão nossas quase deixam de existir. Esta parte má sufoca a parte boa. Uma das artes dos dias talvez seja a eliminação desse sufoco. Como qualquer outra arte não está ao alcance de todos.)

2 comentários:

  1. Não creio que essa "parte má" sufoque a boa. Afinal, todas as meninas felizes "não têm história"... :)

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  2. Talvez não sufoque. Atropela, interpela-se enfim... Mantendo a necessidade da arte. Um beijinho...

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