quinta-feira, 14 de junho de 2012

Verdades

No fundo do corredor ouvia-se um barulho estranho, quase como se alguém chorasse naquele sítio limpo de gente há tempo, sendo que a última pessoa a ter habitado ali tinha sido Gaiata, a velha que vendia peixe fresco numas bancadas de mármore que hoje não inspirariam confiança a ninguém. Entre o gelo que derretia ao ar, os gatos que se vagueavam pelo espaço, e as moscas que apreciavam verdadeiramente o cheiro da tripa que se retirava de dentro dos carapaus pequenos, e tínhamos então um cenário pitoresco, composto ainda pela velha gorda e grande de lenço na cabeça que deixava ver por entre os lábios secos e engelhados os seus poucos dentes de cor escura a mastigar a língua, que parecia não caber no espaço que lhe competia. Aquilo fazia-me uma confusão danada. Não me entrava dentro da cabeça, ainda pequena, este tipo de desproporcionalidades que eu encontrava amiúde nos dias, na língua da velha, nas mãos de Arnaldo, nos pés do velho amola tesouras que poderia por certo dormir de pé sem qualquer risco de queda, mas que quase não conseguia acelerar o passo se disso carecesse, que de imediato tropeçaria no tamanho exagerado que os sapatos tinham de ter para servirem seu propósito. Hoje, e passados vários anos, existem outras desproporcionalidades que me confundem mais além do que as de ordem física, meros desajustes que todos trazemos no corpo, e que com jeito e perspicácia sempre resolvemos sem maçadas de maior. Existem as estruturais e de carácter mais profundo, que me agoniam o estômago com uma força muito maior, capaz de me deixar nauseada por tempos indeterminados, sem que o enjoo sirva para o que quer que seja, convenhamos, podendo estão ser considerado um tremendo disparate. Mas dizia eu que no fundo ouvia-se um barulho estranho que nos assustou. Éramos uns quatro, e ainda somos do tempo em que as casas velhas causavam um fascínio tremendo, como se nelas pudéssemos encontrar tesouros preciosos guardados em baús carunchosos e recheados de riquezas grandiosas. Talvez por isso não recuamos, sendo que prosseguimos caminho meio a medo, como se no final do corredor algum monstro medonho nos pudesse agarrar e comer devagarinho enquanto os nossos ossos frágeis e finos fariam crac, dentro da sua boca gigantesca. Seria um festim, que nós crianças imaginávamos vezes sem conta nos medos que guardávamos dentro dos corpos pequenos, durante a noite, depois de apagarem a luz. Tive muitos desses, completamente infundados, que a verdade verdadinha é que até hoje nunca me deparei com nenhuma monstruosidade capaz de me devorar assim de um só trago, muito embora já me tenha deparado com outro tipo de maldades aberrantes e dignas de consideração, mas vindas de gente, vejam bem que coisa estranha. No final do corredor havia a sala povoada por uns sofás de napa encarnada mesclada a preto, com várias almofadas de pele de carneiro, onde a velha tinha dormido a sesta horas a fio, tapada com uma manda de Minde grossa e muito quente. A manta ainda lá estava. Mesmo em cima um pequeno gato miava. Nunca soubemos como para lá entrou, de onde veio, se já existia há muito, e como teria sobrevivido naquela casa vazia povoada apenas por almas penadas e velhas, incapazes de o cuidar. Levei-o para casa e foi um dos que me acompanhou mais tempo. Era Tareco, claro. A minha avó nunca soube que o resgatei da casa assombrada, embora agora lho possa contar, se surgir em forma de graça. Sempre achei a verdade e a transparência uma coisa muito bonita quando é útil, quando a devemos, quando ela é precisa ou necessária para manter a nossa ordem e a dos restantes. Quando não é o caso, julgo que há imensas que deveremos guardar para nós, pelo menos por períodos de tempo determinados. São as nossas verdades.



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