quinta-feira, 5 de maio de 2011

Viagens e propósitos

Às vezes sente que alguém a pegou. Por pegar entende que a levaram a contra vontade, e a depositaram num qualquer sitio onde não conhece nada nem ninguém, e onde nem sequer queria estar. Hoje ficou na porta de uma igreja, muito velha e esburacada, onde decorria um enterro. Na porta, um casal pegava uma garota pela mão, enquanto bichanavam aos ouvidos um do outro, coisas que ela não conseguia ouvir. Lá dentro, uma dúzia de velhos sentados em bancos estreitos, rezavam ao toque do pároco, que encomendava aquela pobre alma pecadora, que sucumbiu à doença e partiu, vá lá saber-se para onde. De tanta viagem amaldiçoada que a ela já chegou, e ainda cá neste mundo, julga poder crer que aquela, muito mais profunda e transcendente, será também atribulada, e capaz de nos levar aos mais diversos lugares do mundo, ou até, quem sabe, fora dele. A morta está depositada no caixão forrado a branco, e tem as duas mãos juntinhas ao peito. Tem uma cara de tranquilidade inigualável, daquelas que pouco encontra em vida, pelo que conclui que a viagem estará a ser boa. Apesar disso, saiu depressa. Lá fora, de um lado um jardim, do outro o cemitério. Sabe ser-lhe possível escolha, pelo que se emaranha no jardim, não por qualquer pudor desenvolvido a sítios onde se deposita gente sem vida, normalmente locais muito enfeitados e verdejantes, mas apenas porque prevê, que dai a poucos minutos, os velhos do cortejo começarão a chegar aos magotes, e tirar-lhe-ão o sossego, do qual necessita para analisar o porquê de ter pousado ali. No jardim, minado de carreirinhos estreitos ladeados a flores, encontram-se bancos de madeira e ferro pintados de verde, que se confundem com a imensidade, e onde se encontram uma ou outra pessoa, sentadas ao sol. No meio da relva, um conjunto de pássaros debicam qualquer coisa ali deixada, provavelmente ao acaso, que lhes serve de precioso alimento. Segue em frente até ao precipício. Ao longe, vê um rio, ladeado por areias e logo depois por casas, brancas e pequenas, muito juntinhas umas às outras. Consegue distinguir gente, embora pouca, que mais parece formigas, a andar depressa de um lado para o outro. Resolve senta-se no muro, por mor da reflexão. Retira um cadernito florido da mala, e escreve o que lhe vem à ideia, logo a seguir aos ditos da viagem anterior. E nesses, nos que já lá estavam, lia-se assim, " vejo um conjunto de pessoas que se atropela umas na outras. Acabou de nascer aqui um bebé, que grita e esbraceja, e que é de imediato colocado no colo de uma mãe, que lhe ganha um amor sem fim. Ali, naqueles instantes, consigo ler eternidade. Sim, estou capaz de jurar que ela existe."

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