terça-feira, 6 de março de 2012

Beijinhos doces

Nasceu ali para os lados de Marvila. Dedicou-se desde muito cedo a contar o que o circundava, e que poderia ir das pedras da calçada às vigas do tecto, passando pelos carros que passavam na rua e que ele via da janela pequena e quadrada de onde espreitava o mundo. O seu mundo tinha uma cor muito estranha. Era de um tom acinzentado com uns laivos de cores muito sumidas que apareciam de vez em quando, em forma de sombrinha de chocolate trazida pela prima distante, ou de beijinhos doces embrulhados em cartuchos de papel pardo, pelas mãos da tia Emília. Lembra-se exactamente do cheiro deles, não dos beijinhos, mas dos mesmos misturados com o papel, que em conjunto fabricavam um odor forte e adocicado que o acompanhará para a vida, e quem sabe até para a morte. Nas escadinhas, bem defronte à sua casa, desembrulhava o pacote devagar, e comia, invariavelmente, primeiro o açúcar e depois o bolinho, deixando que se derretessem separadamente na boca, em conjunto com a sua saliva quente e gulosa. A seguir a sua vontade de gula exacerbada, e nunca lhe seria permitido tal deleite, que ver-se-ia obrigado a engoli-los de uma só vez, misturados e sem qualquer tipo de apreciação de paladar. Mas ele contrariava a tendência, sabia ser aquele um dos momentos altos da sua semana, apenas repetido na seguinte, e isto se sua tia resolvesse vir de novo, sendo que precisava de se deliciar com o pitéu, moderar a sofreguidão e sentir o sabor doce do açúcar e a textura delicada do bolo. Um, dois, três, quatro, sempre assim até chegar ao último, que por norma se situava entre o número dez e o número doze, nunca percebeu muito bem porquê.
Logo após terminar o repasto, desembrulhava o cartucho com jeito e dedicação, e levava-o para casa, onde o aproveitava para realizar desenhos coloridos com lápis de cores partidos, que na escola já ninguém queria. Desenhava sempre o mesmo número de flores, árvores, pessoas, e só quando chegava à altura de desenhar os beijinhos doces, que coloriam o papel pardo como gotas de alegria, e adoçavam as bocas amargas das gentes tristonhas, hesitava. Começava por desenhar um, depois o outro, e quando chegava ao número próximo do que o pacote habitualmente trazia, iniciava um desconforto interno que o obrigava a parar de desenhar por um bocadinho, enquanto se abanava para trás e para a frente, sem saber quando parar. Pára António, dizia-lhe a mãe, pouco tolerante aos abanicos, e com mais do que fazer do que aturar um gaiato irrequieto, indeciso e fraco de corpo que deambulava pela casa sempre a contar. Ele tremia e parava ali, no grito que o sacudia quer estivesse no dez, no onze ou onde fosse, guardando de imediato o papel pardo colorido, com cheiro a beijinhos doces, tão doces. Para a semana havia mais. Ele, bem vistas as coisas, nunca sabia muito bem se os queria ou se não.

( O António existia, só não se chamava assim. De resto, sentia tudo exactamente igual. O doce dos beijos, o cheiro da mistura, a ânsia de contar e de esperar o grito que o travava.)

1 comentário:

  1. Tão bonito! :)

    Também conheci em Marvila alguns Antónios, alguns com histórias de nos deixar boquiabertas, mas sempre com um carinho tão doce nas palavras que punham em cada história!

    Gosto muito te ler. Obrigada pelas palavras. **

    Lili (http://lilisnewbook.blogspot.com)

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