domingo, 4 de março de 2012

Fernanda

Um dia pesaram-se as duas e foi uma risada. Uma, a magra, pesava exactamente metade do peso da outra, a gorda. A gorda é alentejana, gosta de pão e de chouriço, e veio da terra há muito, escorraçada por uma família que resolveu deixá-la para os braços do mundo, uns braços rijos e espinhentos, que cumpriram a sua função de um modo totalmente condizente aos habitual, ou seja, de forma seca e muito tétrica. Deixou sempre que deambulasse aos caídos, tendo um dia parado ali, ao pé daquela magra que lhe acolheu a existência, lhe deu trabalho e a ajudou a procurar um tecto, um sítio mais macio onde se pudesse aconchegar, o melhor dia da sua vida. A partir dessa altura foi mais ou menos aceite pela terra, assumindo sempre uns comportamentos estranhos mas perdoados, era a alentejana, a gorda, a enjeitada, e parecendo que não existem nomes no mundo que nos dão uma certa mobilidade de acção, uma margem, uma aceitação que emerge da reputação do desgraçado. Existe quem fuja deste conceito, não lhe queira nem sentir o cheiro ou o toque, mesmo que discreto, mortiço, envergonhado. No lado oposto existem os outros, os que se encostam ao nome com uma intensidade brutal, e nele encaixam todas as falhas, os erros e os excessos, com um jeito irrepreensível. Normalmente estas pessoas sabem exactamente que miséria da vida hão-de aliar a cada comportamento, sendo que podem utilizar o abandono, a falta de dinheiro, a ausência de saúde, de poiso, de gente.
Agora, ainda há pouco, resolveu ir-se embora. Voltar para o Alentejo, e aproveitar um lugar oferecido por um moço de boa gente, com uns pais muito doentes a precisar de atenção, coisa que Fernanda consegue dar sem qualquer esforço, a troco de tecto, comida, roupa lavada. Pelo meio poderão existir outro tipo de favores, ligados a algumas necessidades básicas do corpo, daquelas que não conseguimos controlar e que necessitam de apaziguamento, encosto e minutos de dedicação. Não se importa com isso. Sempre se habituou que na vida para se receber é preciso dar, e nunca conseguiu muito bem definir o que poderia facultar ou não à envolta, e mesmo o que lhe poderia regatear, sendo esta fusão constituinte de um estado de dádiva e recebimento indefinido, num limite mental e físico impossível de perceber. Tudo lhe pertence, nada é dela, sendo que tudo se pode dar ou mesmo receber. Aquela coisa do espaço próprio não lhe faz qualquer sentido, a pele, a sua pele, não a defende de coisa nenhuma.

1 comentário:

  1. Gostei muito do texto. Ignoro se a Fernanda é personagem ou pessoa à séria, mas torço pelo final feliz. Que encontre poiso certo, que se apaixone por um honrado lavrador alentejano que lhe ofereça uma vida só sua...

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