quarta-feira, 18 de maio de 2011

Da relatividade

Alfredo acordava todos os dias bem cedo. A sua loja, única da aldeia, vendia tudo aquilo que qualquer pessoa pudesse necessitar, desde o açúcar ao arroz, passando pela batata e a alface, estendendo-se ainda ao âmbito das higienes, de corpo e de casa. Nada ali parecia faltar, e se tal facto ocorresse, que por espacejado que fosse, sempre acontecia, nem era tarde, nem era cedo, que de imediato Alfredo rumava ao telefone, para fazer frente a tal necessidade, encomendando directamente dos seus fornecedores a urgência, que nunca por nunca ser, alguém ficaria sem ser servido, em seu prontíssimo estabelecimento. Era uma questão de principio. Sua mulher era quem o ajudava, cuidando afincadamente da lida da casa e da educação dos filhos, fazendo-lhe ainda as ausências ao balcão, mais do que muitas, que todos os dias ou quase, era necessária a deslocação à cidade mais próxima, a fim de comprar isto ou aquilo, tratar deste ou daquele papel, ir a um ou a outro serviço público. Tudo parecia correr sobre rodas. Tudo se realizava a seu tempo, sem que ambos se perdessem em grandes conversas acerca das tarefas do outro, que cada um tinha as suas, que tanto afazer já lhes davam. A haver palavras, coisa que nem acontecia amiúde, guardavam-se os ditos para outros assuntos, de interesse do casal, como o que se comeria no dia seguinte, ou quando arranjariam tempo para rumar a casa da sogra, ora de um, ora de outro. Um dia, inesperado, como sempre o são estas fatalidades, eis que Alfredo se empoleira em um banco redondo, daqueles que coxeiam de perna, mas no qual ele depositou uma confiança tamanha, para mal dos seus pecados. Numa reviravolta rebuscada, estatela-se o homem no chão, capaz de gritar e de gemer, mas incapaz de caminhar, que o seu pé, pobre dele, estava retorcido e revirado, quase parecendo, querer saltar-lhe do corpo para fora. Logo é acudido por sua pronta senhora, que toma as devidas diligências para que a cura se efective em condições, que o pé de seu esposo carece de sérios cuidados, e de grande recuperação. Enquanto as mezinhas e curas tomam caminho, é a ela que agora cabe toda a vida. Desde a casa e os filhos, como sempre, à loja, desde exactamente agora, altura em que o seu Alfredo deu cabo da extremidade inferior da perna. De manga arregaçada, e enquanto o dito descansa em sossego, é ela que limpa e que cozinha, que lava e que educa, que compra e que vende, que paga e que resolve, e que ainda ouve em paciências, as vozes que na envolta, lhe choram o pé do marido, coitado.

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