quinta-feira, 19 de maio de 2011

Maria entrou

Maria morreu e pediu-me para entrar. Ainda hesitei, é um facto, que a ideia de deixar uma morta penetrar-me deixava-me em náuseas, como se a pobre, já fria e endurecida, algo de terrível me pudesse fazer, e não constituísse apenas uma pluma de alma, perdida no universo, muito levezinha. Quero mostrar-te uma coisa, diz-me, conhecendo a minha curiosidade excessiva, capaz de me deixar em ânsia perante algum facto desconhecido, que ao invés, devesse conhecer. -lo em engodo, não tenho disso qualquer dúvida, certa de que desta forma, o ingresso em mim estaria garantido. Entrou. Deixei-a instalar-se em conforto e fundir-se em meu corpo, ainda jovem ao pé do dela, já muito enrugado e quebradiço. Demorou algum tempo, julgo que em experimentação dos recantos e das sensações encontradas, muitas delas, talvez até já esquecidas, ou ainda, poderá ser, nunca antes vividas. Ousei chama-la, que o nobre motivo que aqui a trouxera, era levar-me em viagem a mim, e não o desfrute de um corpo que nem é seu, e que numa audácia desmedida tenta agora aproveitar, servir-se, devagarinho, como se eu a ela pertencesse. Seguimos então adunadas, e entramos numa casa de pedra maciça, muito velha e arejada. Era noite, e num canto, meia dúzia de pessoas choravam de mãos dadas. Num leito quente encontrava-se um homem estendido, já velho e enfraquecido, que se aninhava numa almofada e numas mantas de lã, enquanto lhe davam chá doce para beber. Estava num fim, que entretanto chegou. Senti um frio a subir-me as entranhas, numa sensação já conhecida, que Maria estava cá dentro de mim, e deixou-me capaz de reconhecer, o que por ela já passou. No meio de choros e afagos, o velho, em casa, partiu. Nem bem percebi o que por ali fazia, pelo que Maria me introduziu apenas e só numa breve explicação. Tratava-se aquele homem de seu avô, morrido em tempos longínquos. Iríamos por ora, explicou-me, rumar até à morte dela. Tive medo, confesso. A ideia de sentir outra vez de perto, aquele gelo que me entorpeceu os sentidos, deixou-me num terror estranho e muito pouco usual. Ainda assim, arrumei-o com jeitinho e fui, que de resto, nem bem hipóteses tinha de recusa, que Maria queria muito levar-me, e tinha-se apossado de mim. Levou-me. Reconheço de imediato o sítio onde entramos, que de resto, sabia ser aquele o lugar de sua morte. Na fila de camas seguidinhas, entre outras duas velhas cinzentas e magras, estava Maria, sózinha, numa aflição sem igual. Senti-lha de perto, posso dizer-vos, que esbracejava com força, enquanto lá dentro, sentia um vazio muito forte, e uma ausência de tudo. Queria chamar por socorro, queria que alguém lhe valesse, ou que ao menos, e dada a força do chamamento que lhe vinha de longe, e contra o qual nada podia, queria uma mão intima que a segurasse de perto, e lhe acompanhasse aquela ida. Nada disso lhe surgiu, que as velhas da envolta estavam adormecidas, a enfermaria estava vazia, e ela, estava sozinha. O frio acentuou-se e acabou por leva-la. Foi assim, diz-me. E agora, precisava do teu corpo para to dizer. Poderia ter escolhido outro, mas escolhi o teu. Para que sentisses o que senti, e para te deixar, em réstias apenas, a cor negra da solidão. Deixei-a sair, e corri para fora. Agora, sou quase só eu outra vez.

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