As palavras, e muito embora nem sempre nos lembremos disso, são aquelas coisas nas quais podemos tropeçar a pontos de cairmos no chão aparatosamente e por tempo indeterminado. Nem sei se é legítimo que tal coisa aconteça, principalmente se tivermos em conta o facto de que não constituem mais do que um veiculo de comunicação entre pessoas, e que poderão ainda por circunstâncias diversas sair enviesadas, ou seja, num acto que se deverá considerar falhado, poderemos dizer o que nem queremos que seja dito, de forma diferente do que se pretendia, num tom acima ou abaixo do desejado. E debruço-me então sobre algo que me prende por vezes o pensamento. Deveremos nós centrar a nossa atenção no que é dito? Ou antes na forma e na entoação que acomoda aquelas palavras que saem da boca do outro em direcção a nós em modo determinado? Soará melhor uma realidade má ouvida por palavras doces? Ou significará, e em termos de símbolo interno, exactamente a mesa coisa, uma vez que a realidade não muda em coisa nenhuma, e a fonte de transmissão é algo de passageiro, sendo que o que conta é o que a constitui?
Pela parte que me toca, e muito embora considere as palavras vãs, por motivos diversos que nem me apraz por ora enumerar, confesso que atribuo significado à forma da informação, muito embora não deixe de valorizar o conteúdo que a acompanha. Não aprecio discursos mornos, isentos de emoção ou de articulação devidamente colocada, podendo o efeito que surte em mim ser mais ou menos poderoso, de forma verdadeiramente subjugada ao interlocutor que me fala, e à forma como o faz. Se alguém amorfo me transmitir um discurso interessante, este poderá nem ser devidamente apreendido, tal como e ao invés, um discurso banal, de dissertação por exemplo da função de uma chávena nas nossas vidas, pode constituir-me interesse se for proferido por alguém capaz de me motivar, de gesticular o que me diz, de me encantar pela capacidade de comunicação.
Poderíamos continuar, existem diversas situações capazes de me fazes encarar palavras de determinada forma, mas o que eu queria mesmo era dizer que os discursos não devem vir ao mundo de forma leviana. Não devemos usar palavras avulsas e deconexadas, isentas de pensamentos, ditas da boca para fora. Em comunicação, e para que se dê em plenitude, deveremos considerar no mínimo duas pessoas, e a que recebe lê o que lhe foi dito encaixado num contexto. E o significado apreendido pode ser catastrófico se a intenção não foi cuidada, e se o discurso saiu ausente. Da boca para fora falemos sozinhos ou em momentos de descompensação devidamente justificados, para os quais podemos por exemplo recorrer aos serviços terapêuticos de alguém credenciado para o assunto. Os nossos, merecem cuidado. Merecem remendo em caso de queda pouco ou muito grave, sendo porém prudente manter em consciências que existem ainda, e levando ao expoente máximo o raciocínio e a gravidade, quedas aparatosas e possivelmente fatais. Aquelas que posteriormente tentamos remediar a ferro e a fogo, usando artimanhas mais ou menos eruditas, que às vezes chegam e às vezes não.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
quinta-feira, 31 de maio de 2012
quarta-feira, 30 de maio de 2012
Do choro que eu nego em ignorância, e que aqui se eleva por motivos maiores...
Desmorrer
Por Miguel Esteves Cardoso
"Desta vez, a Maria João teve sorte. Nunca tinha visto uma médica a chorar. Foi a Maria João que puxou as lágrimas, quando a Dra. Teresa Ferreira lhe disse que não havia mais metástases dentro dela. Ficámos os três a chorar e a olhar para os outros olhos a chorar.
A minha amada já tinha esquecido o futuro. Já não queria saber da casa nova, do tecido para forrar os sofás, do Verão seguinte. Estava convencida que estava cheia de metástases. Doía-lhe o corpo todo. Tinha desanimado. Estava preparada para a morte. Só a morte é mais triste. Tinha-se preparado para ouvir o que já sabia, para não se assustar quando lhe dissessem que o cancro na mama tinha voltado e que se tinha espalhado por toda a parte.
Depois - mas não logo, porque não é de momento para o outro que se desmorre - voltou a ver vida pela frente. Reapareceu um horizonte e um caminho até lá, com passos para dar. "São tão raras as boas notícias", disse a médica, "e é tão bom dá-las, vocês não imaginam". Nós não imaginámos. Começámos a chorar. As lágrimas ajudam muito. As dos outros especialmente. Chorar sozinho não tem o mesmo efeito. A Maria João tem chorado por razões tristes. Desta vez estava a chorar de felicidade.
Como chora cada vez que ouve ou lê palavras doces, a dar força, a partilhar a dor, a juntar-se para que ela saiba que há muita gente a sofrer com ela, tal é a vontade delas que ela não sofra. Ou sofra pouco. Embora isto de se ficar vivo também se estranhe um bocadinho. "
( Deve de estar por todo lado, é do Público e do Miguel, mas eu roubei-o daqui.)
Big in Japan, ou de como a dança me leva tão longe...
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Na mesa repousam copos meio vazios, cinzeiros cheios, pratos de comida inacabada. De um lado um do outro lado o outro. Brincam com os talheres enquanto se olham de soslaio e pensam no que os trouxe até ali. Descobrem que não sabem, muito embora já tenham percebido para onde vão. Temem dizê-lo. O secretismo dos sentimentos pode ser uma ilusão. Que peca pelo medo em colocarmos palavras, no sítio onde o que vivemos ganha um nome partilhado por ambos. Assim, e enquanto abafado pelo corpo, não assume a forma assustadora do problema.
( Ganha uma dimensão fantasmaticamente interna, mais perigosa mas mais discreta, logo, muito mais apetecível. Gostamos tanto que até assusta.)
( Ganha uma dimensão fantasmaticamente interna, mais perigosa mas mais discreta, logo, muito mais apetecível. Gostamos tanto que até assusta.)
terça-feira, 29 de maio de 2012
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Pela janela entra uma luz muito fraca que lhe acerta em cheio. Na mesinha de cabeceira dezenas de coisas pequeninas adornam o móvel castanho escuro e esburacado. Houve tempos em que a enfeitavam a ela, branca, transparente, brilhante. Na fotografia sépia que se encontra pendurada na parede veste um vestido pérola justo ao corpo enquanto um véu comprido lhe arruma os cabelos na nuca. No regaço repousa um ramo de jarros grandes e majestosos. Ao lado o marido olha-a com doçura, um estanho transparecer que lhe escorre dos olhos retratados. Houve um tempo em que os seus olhos repousaram. Mantiveram-se acesos ao longe, fugidiços, capazes de olharem coisas diversas. Hoje olham-na de novo. Miram-na de alto a baixo, meu Deus, onde é que eu já vivi isto. Vazam-se em lágrimas grossas que encerram a vida que passou, uma melancolia do adeus que atinge até os mais rijos. Tenho a prova provada disso, posso assegurar-vos. A rijeza amolece com o tempo, com o ardor da velhice, com a saudade e a culpa. Senão sempre, muitas vezes. Mesmo em improváveis vezes. E some-se, acreditem que se some, a ira da dor vivida, pela doçura do reencontro, pelo regresso do abraço. Senão sempre, muitas vezes.
( E é por exemplo por isto que os nuncas não me fazem sentido, que os sempres soam-me a relativo, e que o rancor é uma realidade reversível. )
( E é por exemplo por isto que os nuncas não me fazem sentido, que os sempres soam-me a relativo, e que o rancor é uma realidade reversível. )
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Encontro com frequência a preocupação com o pormenor. Não lhes retiro valor, constituem pequenas coisas que poderão até ser significativas, sendo que frequentemente nos debruçamos sobre elas e gostamos de senti-las, de cheirá-las, de as arrumar no nosso corpo de forma consciente e intencional, a fim de que nos aqueçam os dias menos proveitosos em termos de ganhos palpáveis, e nos substituam sentires que por vezes não estão. Fazem parte de nós, constatamos. Apesar disso, centro-me por norma no todo, faz-me muito mais sentido, sendo que faço por norma o caminho inverso na generalidade das minhas situações. A envolvência, o equilíbrio, a sensação geral do corpo assume-se como o centro da minha vida, sendo que só depois esmiúço os compostos. Quando paro e disseco vidas alheias ou não, preocupa-me honestamente o sentir, a generalidade do que se dá e do que se recebe, sendo que pequenas coisas desenquadradas podem passar-me despercebidas. Não deixarei por certo de as simbolizar e de as arrecadar cá dentro de forma particular e cuidada, mas evito transformá-las em cismas concretas que aniquilam saberes que tenho, conhecimentos que construo, realidade que apreendo, acções que tomo.
Valorizo igualmente os padrões de acção opostos, claro, mas honestamente falo nisto porque me parece que em termos sociológicos deveríamos tentar qualquer coisa semelhante ao que descrevo. Partirmos de um todo e deixarmos de nos centralizar apenas na nossa individualidade, que mais não é do que um pormenor quando inserida numa sociedade carente. Parece-me, e na minha humilde ignorância, que o único caminho será a saída do corpo e a inclusão do mesmo numa rede social e abrangente. Uma acção consciente do nós e não uma acção centrada no Eu. Senão vejamos; conseguiremos nós trilhar caminhos tortuosos, mantendo a postura centrada nas nossas necessidades? Ou ganharemos mais se individualmente fizermos um trabalho de auto-análise, centrado na nossa capacidade de agir em consonância com o que poderá ser benéfico a todos, ao invés de embarcarmos na visão egoísta do cada um por si?
Perante estas questões chegam a responder-me ser a única forma sensata de sobreviverem. Se o outro age erradamente, farei igual, porque ao senão saio a perder, ponto. E será que não nos vem ao pensamento que se todos fizermos erradamente e individualmente, caminharemos para um caos social, onde os individualismos supremos nos transformarão em qualquer coisa estranha, isolada, oportunista e falível?
( Sim falível. Não existimos enquanto seres isolados, apenas existimos em sociedade. Vale a pena atentarmos nisto. Aceito obviamente contrapontos e visões distintas, aliás, agradecia. É sempre bom que hajam ideias tão ou mais válidas do que as minhas, que na verdade são um tanto ou quanto pessimistas, por vezes até depreciativas.)
Valorizo igualmente os padrões de acção opostos, claro, mas honestamente falo nisto porque me parece que em termos sociológicos deveríamos tentar qualquer coisa semelhante ao que descrevo. Partirmos de um todo e deixarmos de nos centralizar apenas na nossa individualidade, que mais não é do que um pormenor quando inserida numa sociedade carente. Parece-me, e na minha humilde ignorância, que o único caminho será a saída do corpo e a inclusão do mesmo numa rede social e abrangente. Uma acção consciente do nós e não uma acção centrada no Eu. Senão vejamos; conseguiremos nós trilhar caminhos tortuosos, mantendo a postura centrada nas nossas necessidades? Ou ganharemos mais se individualmente fizermos um trabalho de auto-análise, centrado na nossa capacidade de agir em consonância com o que poderá ser benéfico a todos, ao invés de embarcarmos na visão egoísta do cada um por si?
Perante estas questões chegam a responder-me ser a única forma sensata de sobreviverem. Se o outro age erradamente, farei igual, porque ao senão saio a perder, ponto. E será que não nos vem ao pensamento que se todos fizermos erradamente e individualmente, caminharemos para um caos social, onde os individualismos supremos nos transformarão em qualquer coisa estranha, isolada, oportunista e falível?
( Sim falível. Não existimos enquanto seres isolados, apenas existimos em sociedade. Vale a pena atentarmos nisto. Aceito obviamente contrapontos e visões distintas, aliás, agradecia. É sempre bom que hajam ideias tão ou mais válidas do que as minhas, que na verdade são um tanto ou quanto pessimistas, por vezes até depreciativas.)
Se Bastasse Una Canzone
segunda-feira, 28 de maio de 2012
Discursos
José Crespo de Carvalho, Professor do ISCTE, e José César das Neves, da Católica, deram hoje uma interessantíssima conferência subordinada à actualidade, à qual tive o enorme prazer de assistir. Outros intervenientes, nomeadamente da classe política, também discursaram. Deixaram-me uma sensação clara, que de resto eu já tinha presente, da distância que os separa, salvando as devidas claro, que também já assisti a excelentes discursos feitos por grandes políticos ( que curiosamente quase nunca chegam ao lugar que merecem). Os primeiros oraram de forma clara, fundamentada, devidamente enquadrada na realidade que vivemos. Os outros, com palavras bonitas e discursos estudados, pincelaram o País de cores que ninguém vê, ares que ninguém sente, e prazeres que poucos vivem. No final ousaram ficar indignados com a crueza das palavras usadas por quem sabe o que diz, sendo que até se manifestaram, novamente com discurso cuidado e extremamente correcto, contra a amargura apregoada pelas palavras dos Professores, que desanimaram os participantes, coitados. Corrijo, os Senhores Provedores, os Senhores Deputados, os Senhores Dirigentes, as minhas senhoras e os meus senhores. Gosto de ousadias determinadas, em horas indicadas, ou só porque apetece. Escondidas atrás de ignorâncias declaradas, apenas porque o cargo permite e guarda, soam-me mais a fraca compleição, que é uma coisa que me dá náuseas fortes e maus estares diversos no corpo. Sou uma frágil de estômago que mete dó.
domingo, 27 de maio de 2012
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Aquilo ali em baixo não deixa de ser um desabafo. A bondade pura talvez exista, devo admiti-lo. Permaneço então na dúvida, julgo que eterna, dessa bondade traduzir um inatismo ou o constructo. Um dia apreciava ter conclusões fundamentadas sobre este assunto.
( As ciências do Homem deram-me umas luzes. Fracas, ténues e limitadas, quando comparadas à imensidão da mente.)
( As ciências do Homem deram-me umas luzes. Fracas, ténues e limitadas, quando comparadas à imensidão da mente.)
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O perigo é que o resvalo se dê. Pode ocorrer a propósito de nada, inusitado nas acções que regem os dias, insólito no que cremos ser quem naquele momento está ali, perdido à mercê do que o constitui enquanto pessoa. Não creio ser culpa nossa. Persigo razões que nos imputam as ânsias que reunimos no corpo, mas o que encontro são profundidades incrustadas na nossa essência primitiva, onde os instintos e as pulsões reinam numa realidade que abafamos enquanto crescemos, e mascaramos de carácter, de valor, de pessoa. No infinito do mundo encontro então rigorosas afeições ao estado trabalhado da alma, submersas a grandezas que nos surgiram vindas quiçá de algum iluminado supremo que as conseguiu insinuar ao nosso ser, permitindo-nos a incursão na sociedade e o abafamento do que realmente somos, uma mísera crueza submissa às fomes da carne e da vergonha. Poderemos em rasgos de lucidez de espírito sufocar em aferro as acções destas ânsias malignas e guardar o que sabemos ser certo e sensato em locais de fácil acesso, para que em cada dia encontremos a força para agir lealmente, em probidade com as nossas acções. Mas há espaços de tempo em que esta clareza abandona a generalidade das gentes e parece desaparecer em prol de uma pequenez que vai-se a ver e é nossa, pertence-nos, ordena-nos. Nessas horas, quando o corpo pede sustento e a razão adormece esquecida por nós, encarnamos instantaneamente nuns bichos medonhos, esfomeados, egoístas e grotescos, capazes de amarfanhar o raciocínio que nos permite figurar na categoria de gente, e ficarmos assim submersos numa penumbra fétida, sanguinária, plenamente subserviente aos sentidos palpáveis do corpo.
sábado, 26 de maio de 2012
Sweet Sexteen
( A intemporalidade é algo grande que acompanha algumas pessoas certas e algumas pessoas erradas.)
sexta-feira, 25 de maio de 2012
...
A isto chama-se desespero. A isto chama-se uma escolha carregada de simbolismo que poderá passar despercebida a muita gente. A isto chama-se um mundo às avessas, onde acontecem milhares de outras atrocidades cometidas aos outros ou aos próprios, por maldade ou desistência. O meu objectivo diário é enquadrar-me neste mundo onde habito, imerso em realidades próprias à nossa natureza. No fundo habituar-me ao Homem tal e qual ele é.
( O estado da desesperança enquanto estrutura, trata tristeza pela realidade circundante. Não é uma doença, é uma estrutura mental, que não tem a ver com um estado depressivo enquanto perturbação. Dizem os entendidos que no final desse estado chegaremos a uma clareza de ideias que nos permite a compreensão sem o desanimo. Eu, honestamente, e encarando a minha distância real ao destino de Ser evoluído, considero esse patamar uma impossibilidade declarada.)
( O estado da desesperança enquanto estrutura, trata tristeza pela realidade circundante. Não é uma doença, é uma estrutura mental, que não tem a ver com um estado depressivo enquanto perturbação. Dizem os entendidos que no final desse estado chegaremos a uma clareza de ideias que nos permite a compreensão sem o desanimo. Eu, honestamente, e encarando a minha distância real ao destino de Ser evoluído, considero esse patamar uma impossibilidade declarada.)
Henrique
Hoje esperava-me com uma Visão debaixo do braço e um sorriso desenhado por uns lábios grossos cravejados de fissuras fundas e feias. Apesar disso, o sorriso era bonito. Era de gratidão e reconhecimento por algo que nada significa em termos de esforço para a minha pessoa, mas que representa uma possibilidade de ter um contacto efectivo com o mundo que corre à volta dele, sem que ele dê por isso. Retirou-se há muito. No tempo em que ainda era novo e quando a vida ainda dava desgostos. Agora já não há grande coisa que lhe possa fazer. Já lhe levou o que havia, já lhe lascou o chão que o sustinha fragilmente, um chão dúbio, de forte aparência mas de muito fraca constituição. Nesse dia em que o mundo se lhe sumiu aos pés, achou que não queria mais pertencer-lhe, e que o seu interior era a única realidade onde conseguia habitar, por entre órgãos sofridos, sangue fraco e dores incrustadas em cada encontro de veia, em cada sinapse ocorrida, em cada gesto feito por alguma parte do corpo que ousasse mexer e movimentar-se. Passou assim uns anos que hoje considera perdidos. Não se encontrava, ou melhor, encontrava-se só a si mesmo, que é um desfasamento exactamente tão significativo como o de ordem inversa. Não sabe a que propósito despertou outra vez. Julga que foi por cansaço, uma amargura forte que lhe tomou conta do corpo e o obrigou a procurar pertença, nem que fosse no meio das flores e da bicharada que corre maluca no jardim.
Não podendo considerar o caminho terminado, até porque o estado final da evolução não existe, sendo apenas prudente encararmos a mutabilidade constante, considero-o e encaixo-o dentro de um exemplo de vida que muito louvo e admiro. Permanece aos olhos de quase toda a gente como o louco que fala consigo, que eleva as mãos e agradece ao Senhor graças que ninguém vê, e que agora acordou para um mundo que não lhe senta a falta nem dele precisava. Ninguém o encaixa na força, na capacidade de lutar em realidades adversas, na ousadia de desafiar quem um dia o apagou. A relatividade das visões da sociedade é um fenómeno considerável e que merecia debruce sério. Principalmente se tivermos em conta o papel do outro no aconchego humano, e as atrocidades que se cometem pela rudeza da superioridade.
Não podendo considerar o caminho terminado, até porque o estado final da evolução não existe, sendo apenas prudente encararmos a mutabilidade constante, considero-o e encaixo-o dentro de um exemplo de vida que muito louvo e admiro. Permanece aos olhos de quase toda a gente como o louco que fala consigo, que eleva as mãos e agradece ao Senhor graças que ninguém vê, e que agora acordou para um mundo que não lhe senta a falta nem dele precisava. Ninguém o encaixa na força, na capacidade de lutar em realidades adversas, na ousadia de desafiar quem um dia o apagou. A relatividade das visões da sociedade é um fenómeno considerável e que merecia debruce sério. Principalmente se tivermos em conta o papel do outro no aconchego humano, e as atrocidades que se cometem pela rudeza da superioridade.
quinta-feira, 24 de maio de 2012
Post cómico, só porque sim (Ou porque a situação o merece)
Aquela coisa de virarmos costas a oportunidades frutíferas e de mantermos o aferro na busca de impossíveis, poderia ser punido por lei. Ou deveríamos então, e em alternativa, sermos portadores de um qualquer dispositivo que nos avisasse por dentro, mal deixamos fugir pela porta aquela oportunidade que nunca mais vai voltar a aparecer. Já tive dessas. Instantes únicos, que de tão únicos nunca mais ocorreram. Os mesmos fazem com que, e na espera ansiosa de que cheguem novamente, eu volte a deixar escapar outros de igual importância, mais uma vez sem dar real conta da dimensão. Não me vou apelidar de nada em concreto devido a isto, não me apetece. Mas não se preocupem. Cá dentro, latente nas miudezas do meu corpo, o nome ressoa num eco possante e infinito.
( Se imaginarem animais de duas orelhas, quatro patas e talas nos olhos, correm o risco de estarem certos)
Cidade
A minha cidade fecha a pouco e pouco. A cada dia uma porta em cada esquina uma janela. Fecha-se devagarinho e aos olhos do mundo como se nada fosse, e pudesse por isso desaparecer sugada pela envolta, comida pela grandeza efémera, devorada pela imensidão do capitalismo quebradiço. Não estou melancólica. Gosto dela como gostaria de outra, não me apego a sítios, a coisas ou a lugares. Nunca me apeguei, muito embora considere até uma falha da minha existência, quiçá facilitadora em processos de substituição de outras enormidades. Mas ainda assim não consigo deixar de sentir o perigo que constitui para o meu País o encerramento dos lugares médios, que hoje se encontram tapados por folhas de jornais velhos, abandonados aos pássaros, sujeitos às fúrias da desocupação. Um dia e em caso de levantamento, que aguardo em ânsia, confesso, teremos um caminho hercúleo a percorrer, a fim de elevarmos o que por ora cai, rasteja e apodrece.
Desamor
O desamor sente-se tal e qual se sente o contrário, por quem está perto. O desamor nasce de um viver afastado por dentro, de percursos inacabados, de caminhos distantes. Há quem julgue que o desamor sobrevive na penumbra dos dias, sem que ninguém o veja e sem que cresça e dissemine. Temo que não seja verdade, muito embora não possa dizê-lo a viva voz, não o conheço muito ao pormenor, encontro-lhe apenas as consequências. Ninguém deveria ser obrigado a viver à beira do desamor. A carência interna deverá ser de tal ordem, e ainda que eventualmente camuflada, que poderá contaminar a envolta e deixá-la submissa ao estado de ausência permanente, como se de uma normalidade se tratasse. A ausência não trata uma normalidade, pelo menos uma normalidade saudável e evolutiva. A ausência trata vazios de relação, que não são mais do que carências e privações, às quais ninguém deveria sujeitar-se. Fazem-no sempre em prol de, num percurso provavelmente descabido, também ele consequente.
quarta-feira, 23 de maio de 2012
?
Saltita ansiosa no corpo agitado. Nos olhos encontra um corpo que não lhe pertence, na boca um gosto que não conhece. Lembra-se perfeitamente do seu crescimento. Ocorrido dentro de uma casa velhinha muito sua e a cheirar a madeira. Não precisava de soltar a língua para se aperceber ao que sabia só pelo odor, capacidade que hoje aplica a uso culinário sendo capaz de rectificar temperos em precisão apenas com o nariz, uma zona apurada dos seus sentidos. Anda estranha. Separou a alma do corpo por motivos de força maior, e tem dias em que já não se depara com o que conhece de si. Nessas alturas tenta recuar no tempo numa psicanálise própria e pouco eficaz, procurando nos meandros das memórias os dias em que o seu corpo vivia em consonância com a sua alma. Um tempo em que as flores cheiravam a flores, o mar cheirava a mar, e o seu cão cheirava a si. Lembra-se claramente de crescer. Quando os cheiros começaram a fugir-lhe do corpo ou a cheirarem a algo que não conhecia. Coisas que cheiravam a clareza e a doçura e que hoje cheiram a mágoa e a sofrimento, mantendo-se porém intacta a vivência interna. Gostaria por vezes de esquecer a originalidade dos odores, e cheirar com a alma e com o corpo o cheiro amargo que o mundo pode emanar de si, sem qualquer tipo de clivagem entre o externo e o interno. Poderia para tal esquecer memórias. Nesse dia, livre de guardas, sucumbiria à realidade de uma forma clara e precisa, sem qualquer tipo de resguardo intimo. Seria o caos? Ou seria, ao invés, a pureza da existência?
( Seria eventualmente um caos emocional, aliado a uma eficácia racional. Com a evolução da espécie à luz das teorias de Darwin, ganharíamos teclas no abdómen, antenas na cabeça, e compartimentos para ligar a uma qualquer fonte de energia, provavelmente situados nas costas. E ainda entradas para chips de programação diversa. Perderíamos órgãos como o coração e sentidos como o tacto, completamente dispensáveis e inúteis para este tipo de existência, apenas suportável e exequível em dias de incoerência profunda e manifesta.)
( Seria eventualmente um caos emocional, aliado a uma eficácia racional. Com a evolução da espécie à luz das teorias de Darwin, ganharíamos teclas no abdómen, antenas na cabeça, e compartimentos para ligar a uma qualquer fonte de energia, provavelmente situados nas costas. E ainda entradas para chips de programação diversa. Perderíamos órgãos como o coração e sentidos como o tacto, completamente dispensáveis e inúteis para este tipo de existência, apenas suportável e exequível em dias de incoerência profunda e manifesta.)
terça-feira, 22 de maio de 2012
Mães
Hoje a ouvir o grande Júlio Machado Vaz concluí, mais uma vez, que sou uma mãe poucochinha. Ele também questiona o conceito da mãe perfeita, valha-nos isso para me manter saudável e sem culpabilizações capazes de me atirar à cama e às pílulas coloridas e poderosas. Não amamentei nada de jeito, foi por pouco tempo, o corpo não estava para aquilo. Sei exactamente o que deveria ter sido em cada altura do crescimento do meu filho, e sei ainda que deveria ter estado disponível quase sempre, contingente quase sempre, atenta quase sempre, e nas vezes restantes em que não estava, ou seja nos quases do caminho, estes só poderiam ter ocorrido devidamente justificados por motivos de força maior, de causa inabalável, mas não foi nada disso que aconteceu. Às vezes não fui e não sou apenas por cansaço, por irritabilidade, porque não me apetece, ou porque me apetece qualquer outra coisa que não é só estar disponível para ele, mas é também estar disponível para mim. Tenho dias em que dou bolos de compensação por estar irritada e ainda para ver se ele sossega e baixa a guarda, e dou hamburgueres com batata frita ao jantar porque a paciência não chega para o peixe adornado a legumes saudáveis e regado a fio de azeite virgem, salpicado a duas gotas de vinagre a acompanhado a pão de mistura. E deixo-o ver o Gosto Disto para que ele me deixe ler, e deixo-o ouvir música alta no computador, para eu poder ver as Donas de Casa Desesperadas, e sentir-me um nadinha acompanhada. E já o deixei ao fim de semana no pai ou nos avós por motivos que não foram de trabalho. E já o deixei dormir sem lavar os dentes porque se acabou a pasta, e levar um casaco enrolado para a escola, apenas porque o ferro me pesava muito logo pela manhã. E já ouve dias em que não o ouvi devidamente e disse que sim sem saber a quê, e outros em que deveria ter dito não e disse sim, completamente consciente de que não devia fazê-lo, mas não me apetecia explicar o porquê do não, que é sempre uma explicação cansativa, exigente e demorada. Há dias em que não tenho argumentos, é isso, coisa esta muito pouco própria a uma boa mãe. E por aqui em diante.
Mas depois tenho outras coisas que não vou enumerar. Que são nossas, são sentires e fazeres, e são a nossa perfeição imperfeita, que nos faz felizes, particulares e isentos de minhocas assassinas. É por isso que eu abomino as regras excessivas, as convenções feministas e as pessoas que são apologistas de verdades universais e matemáticas aplicadas a gente, a mais irracional das realidades, a mais sublime de todas as coisas, a mais própria e singular forma de existir.
Mas depois tenho outras coisas que não vou enumerar. Que são nossas, são sentires e fazeres, e são a nossa perfeição imperfeita, que nos faz felizes, particulares e isentos de minhocas assassinas. É por isso que eu abomino as regras excessivas, as convenções feministas e as pessoas que são apologistas de verdades universais e matemáticas aplicadas a gente, a mais irracional das realidades, a mais sublime de todas as coisas, a mais própria e singular forma de existir.
segunda-feira, 21 de maio de 2012
Leituras
Lia um do Eça. Não deveria escrever isto desta forma, é o Senhor Eça de Queiroz com todo o respeito que merece, mas é que habituei-me a tratá-lo por tu quando roubei os Maias para mim. Caso não soubessem ficam a sabê-lo agora, apoderei-me de alguns livros na minha existência, que muito embora não me pertençam em construção e em fabrico, entraram-me para dentro do corpo algures no caminho, para não mais me largarem nos dias da vida, e gostaria, confesso, que não me largassem também nos da morte. A eternidade é uma coisa muito estranha que me persegue as ideias e com a qual lido muito mal. Não consigo imaginar o que farei para sempre, coisa que a acontecer devidamente acompanhada por algumas das obras que possuo em mim, poderia assumir-se-me como uma realidade mais simpática, mais entendível, quiçá até menos eterna.
Da boca mirrada saem-lhe umas palavras comidas a meio não sei bem por que grandeza, sei que deve ser grande, só pode ser grande, tal a velocidade e eficácia com que lhe rouba os finais das palavras, o inicio de algumas frases, a articulação devida do que tenta proferir. Inquiro-me para dentro se a pobre perceberá efectivamente o que lê, ou se a malvada da doença lhe leva para além da capacidade vocal a capacidade de proferir para dentro o que encontra nos livros, que todos sabemos que a palavra é um constructo divino sob o qual criamos realidades dentro do corpo, sendo que quando a mesma morre morrem muitas outras coisas, pela ausência de representação. Fiquei aflita. Tenho o hábito inglório de me imaginar com determinadas maleitas que encontro, experimentar o que me trariam e tentar perceber até que ponto me deixariam vulnerável e entregue à raiz do desespero. Um fraco exercício, pela impossibilidade de se experimentar sensações verdadeiras, mas que ainda assim me permite uma sombra de experimentação. Ficar sem as minhas palavras é de facto uma delas. Numa vã tentativa de lhe acalmar o espírito, que não sei se o estava se não, iniciei uma leitura pausada e tranquila de umas linhas que me pareceram belas, e deixei-a a olhar-me com o seu ar pálido e doente, muito embora feliz. Perguntei-lhe no final, ouviste querida? Acenou-me que sim e fechou os olhos.
Sempre gostei que lessem para mim.
Da boca mirrada saem-lhe umas palavras comidas a meio não sei bem por que grandeza, sei que deve ser grande, só pode ser grande, tal a velocidade e eficácia com que lhe rouba os finais das palavras, o inicio de algumas frases, a articulação devida do que tenta proferir. Inquiro-me para dentro se a pobre perceberá efectivamente o que lê, ou se a malvada da doença lhe leva para além da capacidade vocal a capacidade de proferir para dentro o que encontra nos livros, que todos sabemos que a palavra é um constructo divino sob o qual criamos realidades dentro do corpo, sendo que quando a mesma morre morrem muitas outras coisas, pela ausência de representação. Fiquei aflita. Tenho o hábito inglório de me imaginar com determinadas maleitas que encontro, experimentar o que me trariam e tentar perceber até que ponto me deixariam vulnerável e entregue à raiz do desespero. Um fraco exercício, pela impossibilidade de se experimentar sensações verdadeiras, mas que ainda assim me permite uma sombra de experimentação. Ficar sem as minhas palavras é de facto uma delas. Numa vã tentativa de lhe acalmar o espírito, que não sei se o estava se não, iniciei uma leitura pausada e tranquila de umas linhas que me pareceram belas, e deixei-a a olhar-me com o seu ar pálido e doente, muito embora feliz. Perguntei-lhe no final, ouviste querida? Acenou-me que sim e fechou os olhos.
Sempre gostei que lessem para mim.
Observação fútil, ou de como por vezes as futilidades também fazem falta...
Estou em ânsias por ler os comentários à Gala dos Globos de Ouro da SIC nos blogs de moda que sigo e népias, nicles batatóides. Eu pela minha parte não consigo dizer nada de jeito, nunca digo, não tenho grande veia para a coisa ( Ou será coiso? Coiso hoje era giro...). Mas ainda assim posso dizer que havia lá um vestido amarelo, usado não sei por quem, que deveria ver-se dos aviões que sobrevoassem o Coliseu ontem, lá bem no alto do céu.
...
Voltou atrás e atirou-me um beijo pelo ar apoiado na mão pequenina. O beijo que voa é talvez das coisas mais doces que encontro no mundo. Leve como uma pena, invisível no ar que percorre, mas consistente o suficiente para encontrar o sítio certo onde deve entrar, mal nos toca.
(Podemos generalizar. Podemos sempre generalizar, muito embora corramos o risco de generalizar abusivamente. Podemos generalizar para outras coisas que não se vêm mas que representam um mundo, ou até vice versa, considerando a existência de grandes aparatos vazios. Não são raros os aparatos vazios. Conheço muitos ao vivo e a cores daqueles devidamente adornados a pompa e circunstância, que vamos a ver e se devidamente dissecados, deixam escapar cá para fora gazes fétidos e doentios, ou então nada, apenas ar puro igual ao resto do mundo, o que transforma algumas grandezas em banalidades insossas e insípidas, rodeadas a fogo de artificio, serpentinas e balões de ar que voam baixinho.)
(Podemos generalizar. Podemos sempre generalizar, muito embora corramos o risco de generalizar abusivamente. Podemos generalizar para outras coisas que não se vêm mas que representam um mundo, ou até vice versa, considerando a existência de grandes aparatos vazios. Não são raros os aparatos vazios. Conheço muitos ao vivo e a cores daqueles devidamente adornados a pompa e circunstância, que vamos a ver e se devidamente dissecados, deixam escapar cá para fora gazes fétidos e doentios, ou então nada, apenas ar puro igual ao resto do mundo, o que transforma algumas grandezas em banalidades insossas e insípidas, rodeadas a fogo de artificio, serpentinas e balões de ar que voam baixinho.)
domingo, 20 de maio de 2012
Acasos 2
Outro dia falava de acasos. São aqueles os que consigo conceber cá dentro, e apenas esses. O resto, os que acontecem nas nossas acções e que por vezes tendemos, por defesa ou explicação, a enquadrar dentro da palavra de uma forma totalmente leviana, nunca são acasos. Serão sentires, circunstâncias, projecções. Nada é por acaso, é talvez dos factos mais concretos que encontro na nossa vida, nos nossos dias, nas nossas evoluções. É por isso que as palavras que me saem dos dedos dizem muito de mim. Mesmo quando as camuflo para que soem ligeiramente diferentes, são minhas, não saem assim por acaso. É também por isso que escolho determinados caminhos em detrimento de outros, os mesmos que, e mesmo parecendo a quem está de fora que foram escolhas casuais, revelam sempre o que me corre nas veias, o que me pulsa no corpo, o que me vive na mente. E isto não serei eu, seremos todos. É também por isto que aceito muito mal a explicação do acaso, não gosto dela, provoca-me ânsias e indisposições. Como se o acaso fosse uma grandeza de costado grande capaz de justificar as fraquezas que não assumimos, as escolhas que queremos fazer sem que isso soe a isso mesmo, muito embora seja isso mesmo que sejam. Foi por acaso... Não foi. O mundo não gira ao acaso, e isto de forma abrangente e composta. E mesmo pegando no meu outro discurso, dos acasos externos e circunstanciais, não podemos isentá-los de circunstância, muito embora essa já possa ser-nos alheia. Uma folha por exemplo, não cai por acaso. Uma folha cai porque lhe deu o vento, porque ficou velha e fraca e a árvore já não consegue guardá-la para sempre presa no ramo que a mantém viva, e tem de matá-la. Uma rocha não cai por acaso. Solta-se da mãe porque a erosão lhe levou a resistência, e a deixou submissa ao mar que lhe bate com força. O vento não corre por acaso, corre porque um conjunto de condições meteorológicas se reuniu favorável para que voe naquela direcção. E por isso tudo e muitas outras que não caberiam cá, os acasos não existem. O que existem são vontades, pulsões, intenções, direcções, consequências, escolhas. Logo não foi por acaso. Foi sempre por qualquer coisa, que soa melhor chamada de acaso.
sábado, 19 de maio de 2012
Tempos modernos
- Mãããeee, amanhã tenho os anos do Bruno.
- Hum, que fixe. E onde está o convite, para eu ver a morada dele?
- Ficou na casa do pai...
- Devias ter trazido. A mãe não sabe bem onde é...
- Não te preocupes. Eu já ligo ao pai para ele me dar as coordenadas de GPS...
- Hum, que fixe. E onde está o convite, para eu ver a morada dele?
- Ficou na casa do pai...
- Devias ter trazido. A mãe não sabe bem onde é...
- Não te preocupes. Eu já ligo ao pai para ele me dar as coordenadas de GPS...
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Na sala de espera amontoa-se gente com um ar pálido e gasto, mais ou menos como o da roupa que vestem, do calçado que calçam, do cabelo que usam para ornamentar um rosto muito próximo de coisa nenhuma. A ausência de expressão é algo de extremamente forte que assalta algumas pessoas logo após passarem o limiar da tristeza, que também tem fim. É estranha esta ligação, mas muito verdadeira. É ausência no conteúdo, fortaleza no poder de se impor. Ninguém fica triste para sempre, ou durante tempos infinitos. Fica-se triste por períodos determinados, findos os quais o corpo quebra para dar lugar à ausência, à inexpressão, à frieza de rostos que olham sem ver a envolta, demasiada para o que conseguem reter. Trata este estado uma indiferença forçada, arrancada a custo de dentro de corpos sofridos e cansados que a usam em prol de resistirem a dias enormes e sem fim. Enquanto esperava a hora, tiro um café. Dezenas de pessoas de bata branquinha passam nos corredores e sorriem para quem está. Quando entro ele louva-lhes o trabalho. São gente da boa. Já lhe zelaram o corpo, já se ocuparam dos soros, das sondas, dos pensos e dos desperdícios. Para além disso conversaram com ele e disseram-lhe que está a melhorar. Está fino, pronto para outra. Mesmo ao lado um moço muito novo distrai-se no facebook. O da cama do meio morreu durante a noite. No piso das senhoras amontoam-se flores e conversas de ânimo. São mais desanimadas elas, têm medo, e escolhem até o que as irá cobrir dentro do leito da morte. O vestido branco, diz-me. A não ser que ele morra primeiro; se assim for, terei de ir de luto. Quis fugir-lhe, confesso, e consciencializei então que o que sabemos ser certo nem sempre se verifica nas nossas emoções. Que as verdades são verdades quando se aplicam a nós e mentiras quando não se aplicam. E ainda que devido a isso, verdades são dados científicos e comprovados com fórmulas matemáticas, tabelas periódicas e tubos de ensaio, e pouco mais do que isso.
( Sim, eu já sabia disto. Mas a nossa pele, por vezes esquecida, acorda quando a sacodem por fora com força.)
( Sim, eu já sabia disto. Mas a nossa pele, por vezes esquecida, acorda quando a sacodem por fora com força.)
quinta-feira, 17 de maio de 2012
Vergonhas
As pessoas estão diferentes, quiçá só mais velhas, o que faz muita diferença, para não dizer toda a diferença. O primo está gordo, apresenta orgulhoso uma barriga muito proeminente e uma língua também ela considerável e cheia de vontade em fazer perguntas constrangedoras às quais eu não quero responder. Fico esquiva, defendo-me com o jeito adquirido com anos e anos cá neste mundo, e deixo-o a fervilhar dentro de uma curiosidade mórbida que eu conseguia ver a saltar-lhe dos olhos, mesmo por detrás dos óculos grossos e muito graduados. Continuei a subida e fui encontrando gente que se aninhava nuns restos de sombras estranhamente quentes. O calor do verão não é nosso amigo, deixa-nos com um ar adoentado, excessivamente ruborizado, salpicado de gostas de suor incómodas que limpamos com um lenço meio envergonhados. Há coisas que nos envergonham muito embora não as possamos controlar, nem dependam de forma alguma da nossa capacidade de cuidado ao corpo, do nosso zelo, da nossa vontade. No final do dia, e num contexto totalmente oposto ao anterior, apanho uma mãe que amamenta um bebé de colo no banco de um jardim sob a vista de quem passasse, sem qualquer tipo de resguardo. Não me incomodam nada corpos que não me pertencem, nem sequer a exposição excessiva do que cada um considerar pertinente mostrar. As vergonhas são pessoais e cada um tem as suas, devidamente acondicionadas dentro da sua forma de estar neste mundo. É a intimidade do momento que me perturba. Os olhos do bebé que mamam para além da boca enquanto sorriem para a mãe, ao mesmo tempo que ela lhe fornece o alimento básico da vida, vindo do seu próprio corpo. É bonito, é muito bonito, e por isso deveria ser íntimo, pessoal, e nunca ser exposto aos olhos curiosos de quem anda perto e ousa imaginar o que se passa ali.
Triste é
quando o negro da alma se impõe ao negro da vida. O inverso é sempre suportável.
( Estarão eventualmente relacionados, bem como um outro conjunto de situações que permitem o equilíbrio do nosso sistema interno. Serão as da vida que impõem as da alma, mas enquanto a mesma não sucumbe e não morre de tristeza, as vicissitudes destilam-nos dentro do corpo, sejam poucas, sejam muitas. Depois de passada a linha, mesmo as poucas são demais.)
( Estarão eventualmente relacionados, bem como um outro conjunto de situações que permitem o equilíbrio do nosso sistema interno. Serão as da vida que impõem as da alma, mas enquanto a mesma não sucumbe e não morre de tristeza, as vicissitudes destilam-nos dentro do corpo, sejam poucas, sejam muitas. Depois de passada a linha, mesmo as poucas são demais.)
quarta-feira, 16 de maio de 2012
Lavagens
Entrou na banheira e sentou-se. Ligou o chuveiro que escorria água morna e deixou que a mesma lhe lavasse a alma, o espírito e o corpo, por dentro e por fora. A água entrava por uns lados e saia por outros, logo após lhe percorrer os vasos sanguíneos que a mantinham viva, os órgãos que a faziam pulsar, as outras vísceras nojentas que lhe limpavam o corpo. Enquanto isso e quase sem se dar conta, os olhos deitavam um líquido quente e salgado que lhe escorria na face e caia juntamente com a água no mármore branco onde se encontrava enrolada. Suspeitou daquilo. Por momentos pensou que o corpo se expulsasse para fora de si mesmo tal a emergência com que a água saia, em jorros fortes e longos, impossíveis de travar. Julgou até que se esvaia aos poucos soltando para o mundo toda a amargura reprimida, coisa que ia-se a ver e poderia até constituir um assunto de verdadeiro perigo, pela possibilidade de espangimento e consequente infestação. Toda a envolta adoeceria. Conseguiu afastar com esforço tão medonho pensamento, e percebeu então que o que acontecia era uma lavagem interna que misturava com a água limpa do banho todos os bichos que tinha embutidos no corpo, e que assim saiam para fora, mortos, afogados, capazes de deitar no ralo da banheira e sumirem-se para sempre no esgoto malcheiroso que vive debaixo do chão, e que trata o local exacto onde devem morar os ratos, as baratas, os percevejos, e todas as pragas que assaltam o corpo sobre diversas formas, e o deixam combalido, mortiço, invadido por manifestações humanas desprezíveis e condenáveis, animais a abater.
( Um remédio santo seria eventualmente a proibição da entrada. Os remédios santos não existem, eu, pelo menos, nunca consegui encontrar nenhum.)
( Um remédio santo seria eventualmente a proibição da entrada. Os remédios santos não existem, eu, pelo menos, nunca consegui encontrar nenhum.)
Luís
Luís resolveu partir. Não sei se a vontade se contrariado, que desde há muito dizia que já era tarde. Não obstante isso, e segundo quem estava perto na hora em que o coração resolveu apertar-lhe o peito, gritou a bom gritar por socorro, enquanto o corpo padecia por ar e por sangue, que começou a ficar preso e lento, até lhe coalhar os gritos, a expressão, a vida. Não é a primeira vez que assisto a esta demonstrações incoerentes dos vivos que proferem palavras continuas com preces que rogam a morte, para depois, e na hora em que finalmente são atendidos, por ela ter passado ao lado ou aguçado o ouvido selectivo, gritarem pela ajuda de quem está perto, como se quem está perto pudesse valer de alguma coisa quando ela resolve arrastar quem marcou. A envolta ainda tentou. Chamou-se o 112 mas a viagem ficou a meio caminho, altura em que o coração deixou de bater e transformou Luís num corpo morto, algures entre duas pequenas aldeias que assistiram ao momento impávidas e serenas.
Luís pegou-me ao colo muitas vezes. Era dono do café da aldeia e presenteava-me com amendoins salgados e pevides descascadas, das quais eu lambia o sal com uma sofreguidão digna de criança, totalmente subjugada às minhas vontades. Também me lembro dele dançar comigo ao colo, enquanto sorria embevecido perante o meu ar traquina, em troca do ar das netas que tardavam em chegar e que chegaram longe, em distância de tempo e de lugar. Nunca fui substituída. Tinha ali um espaço na mesa, na casa, acima de tudo no coração, aquele que agora lhe atraiçoou a vida e o deixou à mercê da morte, numa incoerência que encontro no mundo a cada esquina, em muitos lugares, dentro de muitas pessoas. Corações bons também morrem. Corações bons também param. Corações bons também atraiçoam o dono. Guardo-o para sempre cá dentro do meu, bem como tudo aquilo que me sempre me proporcionou. Enquanto o meu corpo não me atraiçoar, aqui permanecerá.
terça-feira, 15 de maio de 2012
Petit Gateau
Era um. Ou dois. ( Estou-me a borrifar para o calor. O que gosto, gosto sempre, e é engraçada a abrangência desta frase.)
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Por vezes vacilo perante os pedidos concretos. É tão clara a dificuldade que apraz de facto indicar. O que fazer, quando, e até orientar o depois. Erro crasso. Os tempos é talvez das coisas mais particulares que temos no nosso corpo. Encontram-se subjugados a nós e às nossas circunstâncias e a vida corre depressa ou devagar, gira para um lado ou para o outro, completamente dependente da nossa vontade interior, e realidade exterior. Tudo o que nos digam vem de uma outra vida, um outro sentir que não é o nosso, e que pode encaixar em nós por mera sorte, ou então colocar-nos num terreno perigoso, por não nos pertencer. Por isso prefiro sempre contornar as minhas respostas. Deixar ao encargo de cada um o rumo a seguir, muito embora não seja fácil, chegam a olhar-me com desconfiança, pela minha incapacidade. De resto, convenhamos, a capacidade de gerir os outros é até frequente, daí talvez a dificuldade em perceberem o porque de eu, a pessoa escolhida e eventualmente indicada, não conseguir fazê-lo. Tantos conseguem, o que raio me falta?
( Muitos nunca chegam a perceber-me claramente. Falhei no caminho, percebo então, falho muitas vezes. Nessas alturas surge o abandono e provavelmente, e isto sou eu que imagino, a posterior procura de uma voz que comande. A mim, confesso, e ainda que esporadicamente, também me apetece encontrar uma. Para sossegar o meu espírito cansado e para suportar as mazelas que me aconteçam depois. Um descanso mais do que merecido, quiçá necessário.)
( Muitos nunca chegam a perceber-me claramente. Falhei no caminho, percebo então, falho muitas vezes. Nessas alturas surge o abandono e provavelmente, e isto sou eu que imagino, a posterior procura de uma voz que comande. A mim, confesso, e ainda que esporadicamente, também me apetece encontrar uma. Para sossegar o meu espírito cansado e para suportar as mazelas que me aconteçam depois. Um descanso mais do que merecido, quiçá necessário.)
Malmequer
O malmequer era aquela flor que eu agarrava quando chegava a primavera e da qual retirava uma pétala de cada vez, enquanto dizia bem me quer, mal me quer. No final da ladainha o sentimento podia ser de felicidade ou de tristeza, como se a flor pudesse reunir em si sentires bons ou sentires maus, e os deixasse transparecer para dentro do corpo através dos meus olhos, da minha pele, do cheiro adocicado dela. Hoje vi muitos amarelos, no meio de um campo de papoilas vermelhas e leves, e resolvi agarrar num. Não para dizer a ladainha guardada cá dentro desde os tempos de menina, aqueles em que me sentava no chão no meio da terra e deixava o vento levar-me os cabelos, sem cuidado em os manter zelados e alinhados. Um desprendimento que agora só consigo em algumas alturas, não sempre, longe de sempre, quase nunca. A saia normalmente ficava escura, manchada de terra, por vezes húmida pela frescura da manhã que me inundava o corpo de um bem estar livre que hoje escasseia. Houve um tempo, nos interregnos do ontem e do hoje, em que considerei efectivamente que a flor não poderia de forma alguma dizer-me o que quer que fosse. Dizia-me apenas uma sorte, que a acontecer viria subjugada a qualquer um outro factor que não a pétala onde terminava o dizer, e nada mais. Hoje penso de outra forma. As flores de facto não nos prevêem coisa alguma, o que de resto nem está em questão. Mas ainda que vazias de capacidades previsíveis, e mesmo que isentas de sentires entranhados nas pétalas, nos caules, nas folhas, no cheiro e na perfeição, conseguem reunir uma amálgama de símbolos que nos entram para dentro da alma através da sensação, e nos fazem recuar, avançar, deambular, encontrar, e descansar. E como símbolos que são, podem ainda não fazer nada, tal como tudo, tal como toda a gente. Depende de nós, o que torna tudo ainda mais especial.
( O símbolo trata uma das grandezas da mente. Nasce-nos em relação e constitui uma capacidade inigualável de traduzir o sentir. O nosso sentir.)
( O símbolo trata uma das grandezas da mente. Nasce-nos em relação e constitui uma capacidade inigualável de traduzir o sentir. O nosso sentir.)
segunda-feira, 14 de maio de 2012
domingo, 13 de maio de 2012
Do lado de lá
Enquanto ele olha para o vazio do quarto ela olha-o a ele. O quarto nem está vazio, são os olhos dele que se alheam e parecem nada mirar, porque nada lhes interessa sorver. Ela por sua vez absorve-o com intensidade, guarda-o, prende-o dentro do corpo e espalha-o por todo o lado. Há situações em que acontece o contrário, os olhos cheios são deles, e os vazios são os delas, depende, mas nem vem ao caso. Escapa-me ao entendimento haver quem encha o corpo com outro alguém que não lhe entrega os pensamentos. Não todos, que somos nossos, mas algumas cumplicidades, dificuldades, felicidades, quereres. Alguém que não está lá mas em outro sítio com tudo aquilo, ou até em sítio algum, não importa, importa sim que não está lá. Intriga-me este preenchimento que mais não é do que também ele um vazio. Apenas um corpo presente, que é talvez a pior coisa que me podem dar. Julgo que não poderia nunca amar alguém que não estivesse lá. E digo julgo porque admito que possa estar enganada, muito embora considere que não. Perderia o sentido o simples facto da ausência da vontade.
( Não critico, não condeno, só não concebo em mim. Há coisas que a serem unilaterais morrem-me cá dentro de forma rápida e eficaz. O que fica, se ficar, eu trato, curo, nunca cultivo. Nem sequer tenho essa vontade.)
( Não critico, não condeno, só não concebo em mim. Há coisas que a serem unilaterais morrem-me cá dentro de forma rápida e eficaz. O que fica, se ficar, eu trato, curo, nunca cultivo. Nem sequer tenho essa vontade.)
sexta-feira, 11 de maio de 2012
Elisa
Elisa falava demais. Deixava transparecer a ideia de que as palavras não lhe cabiam dentro, tal a sofreguidão com que lhe escorriam da língua e passavam pelos lábios, pequenos, feios, incómodos. Não suporto lábios incómodos, são demasiado visíveis, demasiado óbvios, demasiado impertinentes. Os lábios tal como os olhos, deveriam vir dotados de uma qualquer capacidade de refreamento, que poderíamos trazer logo de nascença, devidamente adaptada ao sensato, ao circunspecto, àquilo que não caminha directamente para o interior do excessivo. Todas as manhãs, e mal levantava o corpo da cama quente, vestia um casaco de malha comprido no Inverno, ou um xaile leve e florido no Verão, e iniciava o seu passeio matinal que era composto por uma passagem criteriosa e rigorosa nos locais que considerava serem sítios de importância para a sua existência diminuta e apropriadora de vidas alheia, muito mais interessantes do que a sua. Usava beijar toda a gente, ora na testa, ora não mão, sinal de um respeito fingido mas muito apreciado por todos. Dessas vidas ela aproveitada bocados. Pequenos compósitos que guardava com jeito e que depositava na casa seguinte, imediatamente antes, ou logo depois de sorver nova vida, novo acontecimento, nova situação. No final da manhã e devido à quantidade significativa de informação reunida, e ainda por a sua cabeça tonta não conseguir arrumar o recolhido dentro do devido compartimento em questão, já as histórias lhe nasciam misturadas, vomitadas cá para fora sem qualquer rigor ou exactidão, o que fazia com que o contado fosse uma amálgama de palavras soltas ao vento, que ela deixava passar com um ar de sabedoria mor, mas que deixavam quem a ouvia com ar de embasbacado, tal a incoerência do que dizia. O que eu nunca entendi na altura, muito embora me tenha debruçado sobre o assunto com a seriedade que merecia, era o porquê da partilha com Elisa das dores da alma, das faltas do corpo e das amarguras do espírito, dado que todos sabiam o caminho que levariam e o tratamento que lhe daria. O que acontecia não era mais do que uma sujeição ridícula e patética a um interesse mesquinho. Elisa vivia dele. Do interesse, do companheirismo fictício, da vontade de prestação. Quem lhe contava vivia também. Encontravam-lhe o defeito mas utilizavam-lhe o corpo que as escutava, porque faz falta alguém que vire a cabeça com atenção e que ampare a vida que corre muito depressa, entre ouvidos que não ouvem, pessoas que não vêm, dias que fogem sem que dêmos por isso, senão quando já passaram.
( Afinal, acho que as Elisas fazem falta. Tudo parece fazer falta, acabo por concluir. Quanto ao que isto revela, falemos depois.)
( Afinal, acho que as Elisas fazem falta. Tudo parece fazer falta, acabo por concluir. Quanto ao que isto revela, falemos depois.)
quinta-feira, 10 de maio de 2012
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Gosto dos semanários regionais. Neles encontro sempre alguns políticos de carreira e de oportunidade que partilharam comigo o banco da escola secundária, e que hoje se sentam na assembleia. Têm na sua generalidade uma capacidade estrondosa em evidenciar as suas competências, num discurso apreciativo dirigido aos próprios digno de realce. Eu tenho respeito pela população. Eu tenho objectivos definidos. Eu estou aqui para servir. Fico radiante com tanta competência, tanta dádiva e tanta capacidade de entre ajuda, dignidades que em tempos de escola estava completamente adormecidas, quase parecendo que nunca viriam ao mundo dentro daqueles corpos.
Papo secos
A necessidade exacerbada de catalogarmos tudo, de arrumarmos em compartimentos distintos e isolados as ocorrências, os factos e os desenvolvimentos, transforma-nos nuns seres subjugados à norma. Nem damos por isso, não nos debruçamos no assunto. E assim eliminamos muitas das vezes determinadas individualidades e formas de crescimento, apenas porque não nos faz sentido o bebé de três anos que ainda não diz frases completas e deveria dizê-las, ou o idoso de 90 que já não tem idade para se governar sozinho, mas governa. Obviamente que determinadas situações ou alterações sérias a algum rumo, supostamente seguido em determinada altura da nossa existência, pode dar origem à necessidade de debruce sobre a situação, sob pena de não se detectarem efectivas falhas no processo, a necessitarem de ser colmatadas. Mas daí até formatarmos seres, numa igualdade exagerada e muito pouco saudável, apenas porque o normal é o que se institucionalizou que fosse, deveria ir um bocadinho maior. E em algumas classes profissionais deveria mesmo ser proibido.
( Sei de pessoas felizes e sãs que mamaram na mãe até aos três e no biberão até aos seis. E outras que dormiram com bonecos até aos dez e usaram chupeta até à primária. E sei de velhos que vivem sozinhos e bem de saúde até quase aos cem. E que dormem e acordam sem que seja preciso comandarem-lhe os passos. Sei de gente que nasceu com 750 gramas e que hoje já tem filhos. Sei de quem andou perto dos dois e de quem nunca gatinhou. Sei ainda de alguns crescimentos certos e lineares, normativos, impecáveis, onde nada há para apontar, que são menos felizes. Uma maçada isto de não sermos todos iguais, como o simples papo seco que vem no carro do pão. )
( Sei de pessoas felizes e sãs que mamaram na mãe até aos três e no biberão até aos seis. E outras que dormiram com bonecos até aos dez e usaram chupeta até à primária. E sei de velhos que vivem sozinhos e bem de saúde até quase aos cem. E que dormem e acordam sem que seja preciso comandarem-lhe os passos. Sei de gente que nasceu com 750 gramas e que hoje já tem filhos. Sei de quem andou perto dos dois e de quem nunca gatinhou. Sei ainda de alguns crescimentos certos e lineares, normativos, impecáveis, onde nada há para apontar, que são menos felizes. Uma maçada isto de não sermos todos iguais, como o simples papo seco que vem no carro do pão. )
Acasos
Hoje não houve música da boa. Não calhou na hora do caminho, foi isso. Os acasos, raramente penso neles. Aqui significam somente uma música, nada de mais, pouca coisa. Mas podem ser grandes os acasos. Por norma não gosto de acasos, porque me escapam. Outras vezes, raras, chego até a gostar muito.
( E o que seria de nós sem eles)
( E o que seria de nós sem eles)
quarta-feira, 9 de maio de 2012
Revoltas
Ainda me lembro de quando ela foi mordida por um cão. Uma sensação muito estanha, quase de descrença. Não que ser mordida por um cão seja uma coisa rara, mas é que aquela pessoa era a minha mãe, e à minha mãe não deveriam acontecer coisas más. Eu já era adulta, e muito adulta. A mordidela foi séria, com direito a pontos e afinidades. A minha mãe tinha sido mordida e eu estava incrédula, estranha, com dificuldade de interiorizar o sucedido. Imaginei a situação muitas vezes na minha cabeça. O meu pequeno cão julgou-se grande, e ladrou para um grande de verdade. O grande de verdade sentiu-se ofendido, e tentou comer o meu cão. A minha mãe, como qualquer dono de qualquer cão, meteu-se no meio e pagou por isso, mas salvou o meu cão. Depois foi para o hospital a jorrar sangue do braço. Após tratamento imediato, seguiu-se todo um processo, ainda moroso, de recuperação da carne que teve de renascer no local exacto de onde tinha sido arrancada.
Isto é só para dizer, e porque julgo que há gente que não entende, muito embora me diga exactamente o contrário por palavras escolhidas a preceito, que os pais são aqueles seres aos quais, e a não ser em situações específicas de longevidade, nada acontece. A nós filhos, pode acontecer-nos tudo. Podemos estar tristes, podemos cair, podemos magoar-nos e até estar doentes, que eles estão sempre ali para nos aquietar o corpo e o espírito, com beijos, afagos, palavras e remédios. O contrário, e pelo menos nas primeiras vezes, não pode acontecer. Não faz parte do mundo, do nosso mundo. Eles são os grandes, nós somos os filhos, e a aceitação do reverso, da fragilidade do nosso porto seguro, é uma das maiores provações que enfrentamos na vida. E existem provações que nunca deveriam acontecer antes da maioridade, que não tem nada a ver com 18, tem a ver com um conjunto de coisas diversas, sendo que tanto pode ser antes, como pode ser depois. E mesmo aí vai doer. E mesmo aí vai zangar. E mesmo aí vai revoltar. E quando a provação cai além da mordidela, e transforma a nossa segurança num ser que desaparece, ou que pode desaparecer rapidamente, tudo se acentua ainda mais. E a revolta é maior, bem como a zanga, bem como a fragilidade.
O que eu não percebo mesmo é o que surge muitas das vezes depois desta injustiça que a vida ousa cometer, e que trata o porquê de poucos compreenderam o tumulto que inunda a totalidade do ser, em caso de provação forte. Normal, impossível de conter, manifestamente necessário.
Isto é só para dizer, e porque julgo que há gente que não entende, muito embora me diga exactamente o contrário por palavras escolhidas a preceito, que os pais são aqueles seres aos quais, e a não ser em situações específicas de longevidade, nada acontece. A nós filhos, pode acontecer-nos tudo. Podemos estar tristes, podemos cair, podemos magoar-nos e até estar doentes, que eles estão sempre ali para nos aquietar o corpo e o espírito, com beijos, afagos, palavras e remédios. O contrário, e pelo menos nas primeiras vezes, não pode acontecer. Não faz parte do mundo, do nosso mundo. Eles são os grandes, nós somos os filhos, e a aceitação do reverso, da fragilidade do nosso porto seguro, é uma das maiores provações que enfrentamos na vida. E existem provações que nunca deveriam acontecer antes da maioridade, que não tem nada a ver com 18, tem a ver com um conjunto de coisas diversas, sendo que tanto pode ser antes, como pode ser depois. E mesmo aí vai doer. E mesmo aí vai zangar. E mesmo aí vai revoltar. E quando a provação cai além da mordidela, e transforma a nossa segurança num ser que desaparece, ou que pode desaparecer rapidamente, tudo se acentua ainda mais. E a revolta é maior, bem como a zanga, bem como a fragilidade.
O que eu não percebo mesmo é o que surge muitas das vezes depois desta injustiça que a vida ousa cometer, e que trata o porquê de poucos compreenderam o tumulto que inunda a totalidade do ser, em caso de provação forte. Normal, impossível de conter, manifestamente necessário.
Leões
Estava eu a nadar num mar azul cravejado de rochas tal e qual como eu gosto, quando muitos leões surgem do nada e fazem com que eu necessite de voar para lhes escapar. O corpo pesa-me um bocadinho, mas com algum jeito e com um agitar de braços vigoroso, consigo o objectivo e levanto voo, deixando os predadores furiosos e agitados, enquanto escapo. Diversas pessoas estão deitadas na praia e parecem não se incomodar nada com os animais, que de facto se centram em mim, e me perseguem de perto a ver se num descuido me deixo cair na água outra vez. Seria o deleite. Não senti lá grande medo, o objectivo do sonho não deveria ser esse. O supremo sentir foi, e desde o inicio até ao final, uma sensação plena de comando do corpo e a liberdade que isso me proporcionou.
( Freud, teria por certo alguma coisa a dizer sobre isto. Nós por cá, e nas correntes que regem, não lhes atribuímos grande significado. Ainda assim, e a título pessoal, não os consigo desencaixar de mim mesma. Pertencem-me, lêem-me, e percebo-os tão bem quanto aos meus olhos, logo pela manhã, ao descobrirem que acordaram.)
( Freud, teria por certo alguma coisa a dizer sobre isto. Nós por cá, e nas correntes que regem, não lhes atribuímos grande significado. Ainda assim, e a título pessoal, não os consigo desencaixar de mim mesma. Pertencem-me, lêem-me, e percebo-os tão bem quanto aos meus olhos, logo pela manhã, ao descobrirem que acordaram.)
terça-feira, 8 de maio de 2012
Primavera
Quando o sol me estreita pelas aberturas das nuvens, e muito embora eu seja da chuva, como já disse tantas vezes, ganho uma vontade significativa de me deixar inundar pela frivolidade da vida. De envergar um vestido florido, calçar uma chinela colorida, e passear no mundo sem destino nenhum, encontrar o que calhar, ver o que conseguir apanhar com os olhos, e arrumar cá dentro tudo o que cá caiba, entre um pulsar forte no peito e um nicho de vivências idas.
...
Quase todos os dias a vejo. Hoje vinha debaixo de chuva, montada numa bicicleta de roda larga e cesto na frente, a mesma, desde que me lembro. Passa os dias a lavar chão de prédios, incluindo o do meu, enquanto se lamenta baixinho da vida que lhe calhou em sorte. Quando sente alguém perto, usa calar-se. Não gosta de incomodar a envolta com os problemas da vida, que ela escolheu mal e que agora tem de acolher no regaço do corpo, cansado, mirrado, enfastiado. Os filhos ainda não lhe permitem o afastamento, diz-me, quando percebe que a vou escutar uns minutos. Não pode levá-los para debaixo da ponte, ou para qualquer outro local semelhante. Nessa altura começo a pensar naquelas pessoas que gostam de dizer que tudo se faz, seja de que forma for, nas quais eu por vezes também me incluo, depende das temáticas, das precisões. Tudo se faz não deixa nunca de ser um facto, mas tudo se faz à custa de qualquer coisa, e existem custos suportáveis e custos insuportáveis, que nos dão a sentir uma amálgama de confusões internas e consequências externas, por vezes significativamente mais dolorosas do que o sofrimento prévio. Ainda assim, custam-me sempre a aceitar as submissões. A submissão é uma obediência levada ao extremo, por outro que não a nós, e em idade onde supostamente já não deveria acontecer. De resto, a submissão extrema não deveria acontecer em idade alguma. Entra obviamente em culpa directa para quem se faz valer de algum tipo de poder, que exerce então sobre um outro alguém sob diversas formas, deixando essa pessoa entregue, impotente, submissa. Na realidade não passam de pessoas frágeis internamente mas válidas em alguma situação para outrem, e que por precisarem de um outro corpo para governar, por qualquer lacuna encontrada em si, usam esse outro que delas se abeire, e assim lhes permite uma existência visível, palpável, ainda que miserável e desprezível.
( Conheço tantas destas existências. Pessoas que julgam ser e que o são, aos olhos da sociedade. Satisfaz-me apenas o saber da improficuidade que as come por dentro, e que as devora devagarinho aos próprios olhos, que mirram a cada vez que se vêm, opadas, cheinhas de nada.)
( Conheço tantas destas existências. Pessoas que julgam ser e que o são, aos olhos da sociedade. Satisfaz-me apenas o saber da improficuidade que as come por dentro, e que as devora devagarinho aos próprios olhos, que mirram a cada vez que se vêm, opadas, cheinhas de nada.)
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Já tem tentado escrever ao som da música, tal qual faz outras coisas onde se deixa levar, como disse por aqui, num qualquer dia que já passou. Não deve, e então estanca. Não ouve melodias vãs, inunda-se de acordes perfeitos, sons que a percorrem por dentro e a deixam num estado de iminente fragilidade, capaz de deixar transparecer o latente da alma, coisa pouca para vós, carga imensa para ela que a sente. A deixar-se escrever ao que ouve, a permitir-se que lhe escorram dos dedos os sentires que crava no corpo, a cada dia, e cada vez mais fundo, e por certo atingiria a gente que ousaria ler-lhe as palavras, que transbordariam dor, amor, sentido e sofrimento, numa amálgama grandiosa, que só o é pela vicissitude. Não deseja a ninguém tamanha crueldade, pelo que guarda quase tudo para si. Deixa-se transparecer devagarinho, em pequenos nadas diante do que a compõe, apenas para que não atafulhe o corpo e o espírito de matéria podre, que a mataria aos poucos, por dentro e por fora, aos olhos de toda a gente.
segunda-feira, 7 de maio de 2012
Ainda ontem...
- Ainda não estás no banho filho?
Resposta, e de ar melancólico, - Tu não vês que estou à espera que a roupa me caia...
( Incluí isto na infância mandriona. Não quis pensar ou antever uma adolescência ociosa ou uma adultez inerte. E assim consegui ficar sossegada.)
Resposta, e de ar melancólico, - Tu não vês que estou à espera que a roupa me caia...
( Incluí isto na infância mandriona. Não quis pensar ou antever uma adolescência ociosa ou uma adultez inerte. E assim consegui ficar sossegada.)
Escutas
Tremelica sempre, normalmente de cigarro na mão. Os cigarros têm esta particularidade esquisita, entre outras coisas que assumem esta mesma vicissitude, e que consta no acentuar do que se sente, que pode ir do prazer, quando sorvido com gosto, à elegância, devidamente enquadrado, ou até à fragilidade, quando apertado com força entre uns lábios dormentes que o calcam na esperança do alívio da dor, do sofrimento, da necessidade premente do corpo, se esta estiver levada ao extremo. Dos olhos deixa-me sempre escorrer mágoa, acentuada por um atafulhado de palavras que lhe saem de forma desordenada, completamente inconstantes, numa mistura de sentires e de dizeres totalmente condizentes com a vida que vive de forma corrida, descoordenada, inconsistente. Fala-me dela entre as palavras que me diz dos filhos, não sem antes me situar nos dias da mãe, nas malfeitorias do pai, nos estragos do marido, quando ainda vivo. Lembro-me dela do tempo de escola. Não me agradam estas ocorrências que encontro amiúde na minha profissão, e que tratam o zelo mental por quem me acompanhou o crescimento. Não são suficientes para recusar o acompanhamento, mas bastam para que eu viaje no tempo e reviva a adolescência e a época em que aquelas pessoas cresciam felizes, ou aparentavam crescer. Acentuam-me ainda o sentimento de sempre, repetidamente reforçado, de que o que vemos por fora, no aspecto do corpo, na fluidez dos gestos, na delicadeza das vestes, nem sempre condiz com o que nos percorre por dentro, no bater do peito, nas fendas da alma. Estes estados confusos e cheios agravam quase sempre a capacidade de escutar. Fica reduzida a nada ou a perto disso, o que urge é deitar cá para fora tudo o que incha, tudo o que invade,tudo o que se sente sem se ter capacidade para sentir. Normalmente não ouso falar, limito-me a mim à escuta, ao aceno, à marcação. Em tempos idos julgaria esta minha intervenção uma misera perca de tempo. Hoje, encaixo-a numa da maiores imprescindibilidades da minha profissão.
( E da vida, e das relações e até para a nossa evolução pessoal. Houveram alturas em que nem a mim me escutava. Ou escutava pouco, ou escutava mal. Hoje escuto-me todos os dias. Nem sempre estou certa, nem sempre as palavras surgem direitinhas, enquadradas na linha orientadora que me rege o crescimento. Não aprecio essas, confesso. Desassossegam-me, inquietam-me o espírito, agitam-me a alma, percebo perfeitamente o porquê de fugirmos delas.)
( E da vida, e das relações e até para a nossa evolução pessoal. Houveram alturas em que nem a mim me escutava. Ou escutava pouco, ou escutava mal. Hoje escuto-me todos os dias. Nem sempre estou certa, nem sempre as palavras surgem direitinhas, enquadradas na linha orientadora que me rege o crescimento. Não aprecio essas, confesso. Desassossegam-me, inquietam-me o espírito, agitam-me a alma, percebo perfeitamente o porquê de fugirmos delas.)
domingo, 6 de maio de 2012
Horta
Agora a família tem uma horta. Um naco de terreno distribuído pela Câmara aos interessados, que plantam o que bem entenderem para seu próprio governo. Na nossa já estão alfaces, tomates, alhos franceses, salsa e couve de sete semanas. O meu filho, na descoberta, sacha com um vigor determinado, diria até que obstinado. Os avós, de regador e de enxada em punho, lavram a terra como se nunca na vida tivessem feito outra coisa. Eu, e sem qualquer mérito, verdade se diga, olho para aquilo tudo como boi para palácio. Não faço a mais pequena ideia de como se planta, quanto tempo leva a crescer, e descobri hoje que existem algumas espécies que se comem umas às outras, logo, não podem ser vizinhas. De qualquer forma tenho futuro. O apoio logístico sempre foi o meu forte. Alguém sapiente necessita de comandar aqueles três, que ao fim de uns dez minutos já tinham alagado a rede circundante, enfiado um pé num balde com água, e acertado com um garrafão cheio de água num tomateiro tenrinho. Uma equipa que só visto. Se a Assunção Cristas visse isto, ia dar pulinhos de contentamento.
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Não é a mesma coisa conhecermos um lado ou conhecermos o outro. Um lado pode ser bom, o outro ser menos bom, um pode ser intenso e o outro menos, ambos podem porém ser parecidos. Inquiro-me sempre sobre o lado oposto. Respeito-o tanto quanto se fosse o meu, faz sempre parte da relação que se tem com alguém, e a relação só funciona com mais do que uma pessoa, com mais do que uma perspectiva, com mais do que uma opinião, porque ao senão não trata relação alguma, mas sim a mais solitária das solidões, e isto em todos os relacionamentos. A solidão não implica isolamento, implica antes uma aceitação suprema da nossa verdade, da nossa vontade, da nossa ambição, quase como se do outro lado existisse um prolongamento do nosso ser, e não uma outra pessoa, de arbítrio próprio e capacidade de decisão. Expandi-me. Não era nada disto o que eu queria neste texto, pretendia apenas falar da minha mãe e do meu filho. Mas não me soa mal, deixo estar, e entro agora em outro terreno. Amo-a, sempre a amei. Constitui alguém que incondicionalmente me atende, me acode, me ampara. Amo-o a ele, desde que num dia me saiu do corpo com rapidez e força, ou melhor, já o amava antes, mesmo sem nunca o ter visto. Sentia-o cá dentro, num crescimento osmótico e intenso, constituindo uma parte de mim que nasceu no dia em que deixou de me pertencer. Aqui conheço ambos os lados. O lado de mãe o lado de filha. Aprecio ambos, mas antes de ser mãe não a entendia a ela. Não a preocupação desmedida, não a dedicação exagerada. Não a preocupação com o meu descanso, com o meu frio, com a minha vida. Que exagero, eu era adulta. O meu ainda não é, mas eu sei que quando for vai continuar a ser meu, tal e qual como eu sou dela. Admito aquela pertença estranha que o não é, sei que ele é dele e de mais ninguém, tal e qual eu sou simplesmente minha. Mas no coração das pessoas existem umas ligações sérias que não se vêm mas que se sentem, às quais nós, psicólogos, costumamos chamar de vinculação. Tenho para mim que o facto da emoção ser invisível foi feito assim de propósito. Há coisas que não são para ninguém ver, são sim para quem as sente guardar. Em algum sítio recôndito, de acesso vedado, por serem por demais preciosas para deixar à mercê do olhar.
( Para mim, profunda guardadora das intensidades que sinto, esta nossa capacidade vale-me o mundo. Nunca poderia partilhar à descarada, todas as emoções e sentires que me passam no corpo.)
( Para mim, profunda guardadora das intensidades que sinto, esta nossa capacidade vale-me o mundo. Nunca poderia partilhar à descarada, todas as emoções e sentires que me passam no corpo.)
Norte
Sai de manhã cedo e olhei para a ria. Enquanto caminhava pelo Campus Universitário, olhava para os gatos que se empoleiravam nos muros e me olhavam de soslaio quando eu passava. Na cantina comiam velhos, que deduzo, se alimentam ali ao abrigo de algum programa ou protocolo estabelecido, que lhes permite uma refeição quente todos os dias. O arrumador de carros deu-me um conjunto de preciosas indicações apesar de eu não ter moeda para lhe dar. Fiquei a saber onde era o Fórum, onde se compravam os melhores ovos moles, e até quando poderia deixar o carro sem risco de levar multa por falta de papelote. Lá dentro, no gigantesco edifício da reitoria, encontro inúmeros olhos que olham a morte tal e qual ela é, sem nomes pomposos, bonitos ou elegantes. É feia a morte, e é feio quando falamos dela. No meus sonhos de menina, por exemplo, era uma mulher magra, cadavérica, com cara de esqueleto e capa preta, com uma foice na mão. Nunca ninguém me disse que ela não era nada daquilo, e foi isso que ela foi durante muitos anos para mim, no meu imaginário, na minha fantasia. Na dúvida fantasiamos sempre, e há dias, meses, até anos, em que fantasiamos mal sem que ninguém se dê conta disso. Haviam homens e mulheres que a vêm de frente todos os dias, como a enfermeira da vmer, ou como Danai Papadatou, uma pequena Grega que ajuda crianças em luto, ou pais de crianças que as perderam para a morte. No meio dos discursos sérios todos rimos quando é caso disso, todos sonhamos porque é bom fazê-lo, todos somos gente feliz ou triste, depende das horas, do ânimo, da vida.
( Gosto do norte. Gosto do cheiro, da hospitalidade, da competência que constato nas gentes. Terei sorte com quem encontro? Pode ser, admito. Que seja sorte. Gosto do Norte. )
( Gosto do norte. Gosto do cheiro, da hospitalidade, da competência que constato nas gentes. Terei sorte com quem encontro? Pode ser, admito. Que seja sorte. Gosto do Norte. )
sexta-feira, 4 de maio de 2012
Sextos Sentidos
( Fui do tempo do delírio dos silence 4. Sou, e serei sempre, do tempo de Sérgio Godinho.)
quinta-feira, 3 de maio de 2012
Sezaltina
Sezaltina desapareceu. Devagarinho foi-se consumindo aos poucos, primeiro o corpo, depois o espírito, com um interregno pelo meio que deve ter durado uns quinze dias. Deu algum tempo a quem estava perto para a despedida, avisou, já num estado de loucura iminente, que este mundo não a queria mais cá, e que se iria embora muito em breve. Ainda incrédulos de que tal coisa fosse verdade, os demais foram-na vendo de perto, assistindo a um apagar que parecia programado, talhado a preceito nas linhas estranhas da vida, que usualmente surgem de improviso, quiçá guiadas por uma força maior. Mas aqui nasciam da boca de Sezaltina, tal e qual um livro que conhecemos de antemão, com todas as letras, todos os pontos, todas as vírgulas e todas as histórias que encerra, e que saltam das páginas com um rigor irrepreensível. Vou morrer já daqui a um bocadinho.
Primeiro o corpo emagreceu, deixando antever uns ossos que lhe emergiam da zona do pescoço, e que se evidenciavam por entre as gargantilhas de oiro que usava com medalhões de madrepérola grandes e imponentes. Depois foi a força que lhe desapareceu gradualmente a cada dia, primeiro nas pernas, depois nos braços e nas mãos, para por fim atingir a totalidade do seu ser, e a deixar sucumbida à ajuda alheia, que agia de acordo com as suas indicações, que sempre tinham sido utilizadas no governo dos seus dias. Logo a seguir, e já mais para o final, deixando a descoberto a terrível força do que previa, perdeu a consistência emanada das vestes que usava, deixando ao encargo do acaso o que previamente surgia enquadrado ao tempo, ao espírito e à ocasião, e daí em diante a torrente não teve mais fim, terminando apenas no dia que ocorreu ainda há pouco, em que a encontraram já morta, deitada numa cama de grades que lhe guardava os espasmos involuntários do corpo.
Ninguém queria acreditar na ante-visão sentida por ela, uma senhora pequena e bonita que se guardava do mundo embrulhada em sedas e caxemiras, e que se enfeitava com batom rosa forte, devidamente delimitado pelo lápis que lhe desenhava os lábios, de onde saiam disparates, impropérios, verdades escondidas vindas de um corpo enlouquecido que se esvaia lentamente, completamente sabedor do fim que chegaria em breve.
( Gosto do tema, confesso. Também por isso vou breve ouvi-lo e falá-lo aqui. A quem quiser, faça o favor de ir até Aveiro.)
Primeiro o corpo emagreceu, deixando antever uns ossos que lhe emergiam da zona do pescoço, e que se evidenciavam por entre as gargantilhas de oiro que usava com medalhões de madrepérola grandes e imponentes. Depois foi a força que lhe desapareceu gradualmente a cada dia, primeiro nas pernas, depois nos braços e nas mãos, para por fim atingir a totalidade do seu ser, e a deixar sucumbida à ajuda alheia, que agia de acordo com as suas indicações, que sempre tinham sido utilizadas no governo dos seus dias. Logo a seguir, e já mais para o final, deixando a descoberto a terrível força do que previa, perdeu a consistência emanada das vestes que usava, deixando ao encargo do acaso o que previamente surgia enquadrado ao tempo, ao espírito e à ocasião, e daí em diante a torrente não teve mais fim, terminando apenas no dia que ocorreu ainda há pouco, em que a encontraram já morta, deitada numa cama de grades que lhe guardava os espasmos involuntários do corpo.
Ninguém queria acreditar na ante-visão sentida por ela, uma senhora pequena e bonita que se guardava do mundo embrulhada em sedas e caxemiras, e que se enfeitava com batom rosa forte, devidamente delimitado pelo lápis que lhe desenhava os lábios, de onde saiam disparates, impropérios, verdades escondidas vindas de um corpo enlouquecido que se esvaia lentamente, completamente sabedor do fim que chegaria em breve.
( Gosto do tema, confesso. Também por isso vou breve ouvi-lo e falá-lo aqui. A quem quiser, faça o favor de ir até Aveiro.)
quarta-feira, 2 de maio de 2012
Método
É extraordinário o diagnóstico da nossa carta mental. A tradução por A mais B daquilo que não percebíamos, e que agora, logo após destrinçarmos os meandros, passamos a compreender melhor. Intriga-me que ainda haja quem afirme peremptoriamente que consegue avaliações psicológicas seguras, sem recurso a material destinado ao efeito. Mais ou menos como uma capacidade de fazer rx sem máquina, coisa que pode até ser indutiva, mas não conclusiva. Nunca pode fornecer a coerência dos resultados regidos a método, que quer queiramos quer não nos ajuda a orientar um mundo que muito embora caótico, sem ele sê-lo-ia muito mais.
( Trata isto, provavelmente, resquícios da minha veia obsessiva. Uma veia grossa que me atravessa ao meio, e que não me dá o sossego que eu mereço.)
( Trata isto, provavelmente, resquícios da minha veia obsessiva. Uma veia grossa que me atravessa ao meio, e que não me dá o sossego que eu mereço.)
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Não fui ao Pingo Doce, não me orientei a tempo de ir antes da loucura total, mas tenho pena.
( Não adianta estar-me aqui a armar em carapau de corrida. Dava um jeitão a dispensa cheia por 100 Euros, que afinal eram só 50. Ainda para mais o meu filho cresce e come, como se o amanhã pudesse já não haver. Mas há, e ele vai querer comer outra vez. E muito.)
( Não adianta estar-me aqui a armar em carapau de corrida. Dava um jeitão a dispensa cheia por 100 Euros, que afinal eram só 50. Ainda para mais o meu filho cresce e come, como se o amanhã pudesse já não haver. Mas há, e ele vai querer comer outra vez. E muito.)
Dança
Todos os dias dançava em frente ao espelho do quarto da avó Rosa. Ligava o leitor de cassetes que também lia discos, escolhia uma qualquer das muitas que povoavam a graveta, ligava o som e iniciava o treino intenso que poderia durar umas horas ou uns minutos, dependia da resistência dos membros residentes lá em casa. O gato branco costumava espreitá-la por entre a fresta da porta, enquanto ela deambulava de um lado para o outro do quarto, ornamentada com colares de pérolas emprestados pelo baú guardador de jóias, polvilhada com pó de arroz usurpado à socapa da caixinha redonda, e perfumada com uma borrifadela do frasco de vidro do qual não se lembra o nome, mas que exalava um cheiro digno de uma senhora. Havia duas ou três músicas preferidas. Duas ou três talvez seja pouco, uma meia dúzia, daquelas que já conhecia a letra, as pausas e os arranques, os refrões e os versos de amor. Não se preocupava muito com ele na altura. Estava mais concentrada em fazer boa figura para o espelho, que a olhava de alto a baixo sem deixar escapar um nadinha que fosse do seu corpo, vestido normalmente com saia de xadrez plissada, colã colorida de uma qualquer cor que combinasse ou não, e umas botas até ao joelho cinzentas, que a devem ter acompanhado durante muito tempo, sempre me lembro de a ver com elas. No entanto, aqueles versos de amor que as letras cantavam, e muito embora pouco lhe dissessem quando comparados com o espelho que lhe retribuía uma felicidade sem fim, deixavam-na um tanto ou quanto intrigada, curiosa, desejosa de saber o que aquilo era, uma vez que soava bem, era doce, e parecia uma melodia tranquila, segura, sossegada. Um dia ousou perguntar a alguém que julgou sabedor, o que diriam aqueles versos escritos por uns dedos impregnados de finura, que os transformavam num embalo suave e delicado, e se o amor era mesmo assim. Os olhos levantaram-se da função e sorriram perante a curiosidade vestida de oito anos, pintada e adornada por diversos tons pastel, que a tornavam terna por fora e por dentro. A seu tempo, saberás, disse-lhe, numa resposta que a deixou insatisfeita, encostada apenas aos poemas que ouvia, sem saber se os mesmos eram verdadeiros e autênticos, ou se por outro lado eram falsos e enganosos. Não se incomodou em demasia com isso. Voltou ao quarto e dançou, enquanto a harmonia lhe povoava o corpo magricela, o gato a espreitava da soleira da porta, e o sol a benzia com um calor forte e quase tão intenso como o amor que se ouvia.
( Apercebeu-se muito tempo depois que não tinha escolhido a pessoa certa. Sofria por amor, aquela que escondida por detrás dos óculos de massa castanha, bordava panos com cores garridas. Lá dentro do corpo entravam-lhe saberes que não queria possuir, que lhe vinham disfarçados, dissimulados, mas suficientemente perceptíveis para que os guardasse por dentro, sem nunca mais os conseguir libertar. A seu tempo, saberás, recorda. E foi mesmo verdade. )
( Apercebeu-se muito tempo depois que não tinha escolhido a pessoa certa. Sofria por amor, aquela que escondida por detrás dos óculos de massa castanha, bordava panos com cores garridas. Lá dentro do corpo entravam-lhe saberes que não queria possuir, que lhe vinham disfarçados, dissimulados, mas suficientemente perceptíveis para que os guardasse por dentro, sem nunca mais os conseguir libertar. A seu tempo, saberás, recorda. E foi mesmo verdade. )
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