sexta-feira, 25 de maio de 2012

Henrique

Hoje esperava-me com uma Visão debaixo do braço e um sorriso desenhado por uns lábios grossos cravejados de fissuras fundas e feias. Apesar disso, o sorriso era bonito. Era de gratidão e reconhecimento por algo que nada significa em termos de esforço para a minha pessoa, mas que representa uma possibilidade de ter um contacto efectivo com o mundo que corre à volta dele, sem que ele dê por isso. Retirou-se há muito. No tempo em que ainda era novo e quando a vida ainda dava desgostos. Agora já não há grande coisa que lhe possa fazer. Já lhe levou o que havia, já lhe lascou o chão que o sustinha fragilmente, um chão dúbio, de forte aparência mas de muito fraca constituição. Nesse dia em que o mundo se lhe sumiu aos pés, achou que não queria mais pertencer-lhe, e que o seu interior era a única realidade onde conseguia habitar, por entre órgãos sofridos, sangue fraco e dores incrustadas em cada encontro de veia, em cada sinapse ocorrida, em cada gesto  feito por alguma parte do corpo que ousasse mexer e movimentar-se. Passou assim uns anos que hoje considera perdidos. Não se encontrava, ou melhor, encontrava-se só a si mesmo, que é um desfasamento exactamente tão significativo como o de ordem inversa. Não sabe a que propósito despertou outra vez. Julga que foi por cansaço, uma amargura forte que lhe tomou conta do corpo e o obrigou a procurar pertença, nem que fosse no meio das flores e da bicharada que corre maluca no jardim.
Não podendo considerar o caminho terminado, até porque o estado final da evolução não existe, sendo apenas prudente encararmos a mutabilidade constante, considero-o e encaixo-o dentro de um exemplo de vida que muito louvo e admiro. Permanece aos olhos de quase toda a gente como o louco que fala consigo, que eleva as mãos e agradece ao Senhor graças que ninguém vê, e que agora acordou para um mundo que não lhe senta a falta nem dele precisava. Ninguém o encaixa na força, na capacidade de lutar em realidades adversas, na ousadia de desafiar quem um dia o apagou. A relatividade das visões da sociedade é um fenómeno considerável e que merecia debruce sério. Principalmente se tivermos em conta o papel do outro no aconchego humano, e as atrocidades que se cometem pela rudeza da superioridade.


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