Ainda me lembro de quando ela foi mordida por um cão. Uma sensação muito estanha, quase de descrença. Não que ser mordida por um cão seja uma coisa rara, mas é que aquela pessoa era a minha mãe, e à minha mãe não deveriam acontecer coisas más. Eu já era adulta, e muito adulta. A mordidela foi séria, com direito a pontos e afinidades. A minha mãe tinha sido mordida e eu estava incrédula, estranha, com dificuldade de interiorizar o sucedido. Imaginei a situação muitas vezes na minha cabeça. O meu pequeno cão julgou-se grande, e ladrou para um grande de verdade. O grande de verdade sentiu-se ofendido, e tentou comer o meu cão. A minha mãe, como qualquer dono de qualquer cão, meteu-se no meio e pagou por isso, mas salvou o meu cão. Depois foi para o hospital a jorrar sangue do braço. Após tratamento imediato, seguiu-se todo um processo, ainda moroso, de recuperação da carne que teve de renascer no local exacto de onde tinha sido arrancada.
Isto é só para dizer, e porque julgo que há gente que não entende, muito embora me diga exactamente o contrário por palavras escolhidas a preceito, que os pais são aqueles seres aos quais, e a não ser em situações específicas de longevidade, nada acontece. A nós filhos, pode acontecer-nos tudo. Podemos estar tristes, podemos cair, podemos magoar-nos e até estar doentes, que eles estão sempre ali para nos aquietar o corpo e o espírito, com beijos, afagos, palavras e remédios. O contrário, e pelo menos nas primeiras vezes, não pode acontecer. Não faz parte do mundo, do nosso mundo. Eles são os grandes, nós somos os filhos, e a aceitação do reverso, da fragilidade do nosso porto seguro, é uma das maiores provações que enfrentamos na vida. E existem provações que nunca deveriam acontecer antes da maioridade, que não tem nada a ver com 18, tem a ver com um conjunto de coisas diversas, sendo que tanto pode ser antes, como pode ser depois. E mesmo aí vai doer. E mesmo aí vai zangar. E mesmo aí vai revoltar. E quando a provação cai além da mordidela, e transforma a nossa segurança num ser que desaparece, ou que pode desaparecer rapidamente, tudo se acentua ainda mais. E a revolta é maior, bem como a zanga, bem como a fragilidade.
O que eu não percebo mesmo é o que surge muitas das vezes depois desta injustiça que a vida ousa cometer, e que trata o porquê de poucos compreenderam o tumulto que inunda a totalidade do ser, em caso de provação forte. Normal, impossível de conter, manifestamente necessário.
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