terça-feira, 29 de maio de 2012

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Pela janela entra uma luz muito fraca que lhe acerta em cheio. Na mesinha de cabeceira dezenas de coisas pequeninas adornam o móvel castanho escuro e esburacado. Houve tempos em que a enfeitavam a ela, branca, transparente, brilhante. Na fotografia sépia que se encontra pendurada na parede veste um vestido pérola justo ao corpo enquanto um véu comprido lhe arruma os cabelos na nuca. No regaço repousa um ramo de jarros grandes e majestosos. Ao lado o marido olha-a com doçura, um estanho transparecer que lhe escorre dos olhos retratados. Houve um tempo em que os seus olhos repousaram. Mantiveram-se acesos ao longe, fugidiços, capazes de olharem coisas diversas. Hoje olham-na de novo. Miram-na de alto a baixo, meu Deus, onde é que eu já vivi isto. Vazam-se em lágrimas grossas que encerram a vida que passou, uma melancolia do adeus que atinge até os mais rijos. Tenho a prova provada disso, posso assegurar-vos. A rijeza amolece com o tempo, com o ardor da velhice, com a saudade e a culpa. Senão sempre, muitas vezes. Mesmo em improváveis vezes. E some-se, acreditem que se some, a ira da dor vivida, pela doçura do reencontro, pelo regresso do abraço. Senão sempre, muitas vezes.

( E é por exemplo por isto que os nuncas não me fazem sentido, que os sempres soam-me a relativo, e que o rancor é uma realidade reversível. )

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