quarta-feira, 16 de maio de 2012

Lavagens

Entrou na banheira e sentou-se. Ligou o chuveiro que escorria água morna e deixou que a mesma lhe lavasse a alma, o espírito e o corpo, por dentro e por fora. A água entrava por uns lados e saia por outros, logo após lhe percorrer os vasos sanguíneos que a mantinham viva, os órgãos que a faziam pulsar, as outras vísceras nojentas que lhe limpavam o corpo. Enquanto isso e quase sem se dar conta, os olhos deitavam um líquido quente e salgado que lhe escorria na face e caia juntamente com a água no mármore branco onde se encontrava enrolada. Suspeitou daquilo. Por momentos pensou que o corpo se expulsasse para fora de si mesmo tal a emergência com que a água saia, em jorros fortes e longos, impossíveis de travar. Julgou até que se esvaia aos poucos soltando para o mundo toda a amargura reprimida, coisa que ia-se a ver e poderia até constituir um assunto de verdadeiro perigo, pela possibilidade de espangimento e consequente infestação. Toda a envolta adoeceria. Conseguiu afastar com esforço tão medonho pensamento, e percebeu então que o que acontecia era uma lavagem interna que misturava com a água limpa do banho todos os bichos que tinha embutidos no corpo, e que assim saiam para fora, mortos, afogados, capazes de deitar no ralo da banheira e sumirem-se para sempre no esgoto malcheiroso que vive debaixo do chão, e que trata o local exacto onde devem morar os ratos, as baratas, os percevejos, e todas as pragas que assaltam o corpo sobre diversas formas, e o deixam combalido, mortiço, invadido por manifestações humanas desprezíveis e condenáveis, animais a abater.

( Um remédio santo seria eventualmente a proibição da entrada. Os remédios santos não existem, eu, pelo menos, nunca consegui encontrar nenhum.)

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