quarta-feira, 23 de maio de 2012

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Saltita ansiosa no corpo agitado. Nos olhos encontra um corpo que não lhe pertence, na boca um gosto que não conhece. Lembra-se perfeitamente do seu crescimento. Ocorrido dentro de uma casa velhinha muito sua e a cheirar a madeira. Não precisava de soltar a língua para se aperceber ao que sabia só pelo odor, capacidade que hoje aplica a uso culinário sendo capaz de rectificar temperos em precisão apenas com o nariz, uma zona apurada dos seus sentidos. Anda estranha. Separou a alma do corpo por motivos de força maior, e tem dias em que já não se depara com o que conhece de si. Nessas alturas tenta recuar no tempo numa psicanálise própria e pouco eficaz, procurando nos meandros das memórias os dias em que o seu corpo vivia em consonância com a sua alma. Um tempo em que as flores cheiravam a flores, o mar cheirava a mar, e o seu cão cheirava a si. Lembra-se claramente de crescer. Quando os cheiros começaram a fugir-lhe do corpo ou a cheirarem a algo que não conhecia. Coisas que cheiravam a clareza e a doçura e que hoje cheiram a mágoa e a sofrimento, mantendo-se porém intacta a vivência interna. Gostaria por vezes de esquecer a originalidade dos odores, e cheirar com a alma e com o corpo o cheiro amargo que o mundo pode emanar de si, sem qualquer tipo de clivagem entre o externo e o interno. Poderia para tal esquecer memórias. Nesse dia, livre de guardas, sucumbiria à realidade de uma forma clara e precisa, sem qualquer tipo de resguardo intimo. Seria o caos? Ou seria, ao invés, a pureza da existência?

( Seria eventualmente um caos emocional, aliado a uma eficácia racional. Com a evolução da espécie à luz das teorias de Darwin, ganharíamos teclas no abdómen, antenas na cabeça, e compartimentos para ligar a uma qualquer fonte de energia, provavelmente situados nas costas. E ainda entradas para chips de programação diversa. Perderíamos órgãos como o coração e sentidos como o tacto, completamente dispensáveis e inúteis para este tipo de existência, apenas suportável e exequível em dias de incoerência profunda e manifesta.)

2 comentários:

  1. Não me parece que seria o caos. No caos vive ela, onde o corpo já não replica o passado e a alma não reconhece o presente. Seria, porventura e quando muito, um valente choque...

    (Eu também tempero pelo alfacto; sei exactamente quanto tem de sal e de pimenta. Não que seja apuradíssimo, mas foi devidamente treinado em ficheiros olfactivos :)

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  2. Também eu sou apreciadora de olfactos. Sempre fui, e sem qualquer treino. Quanto ao caos que não o seria, não sei. Não será fácil nem uma nem a outra.

    ( Bem vindo)

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