quarta-feira, 16 de maio de 2012

Luís

Luís resolveu partir. Não sei se a vontade se contrariado, que desde há muito dizia que já era tarde. Não obstante isso, e segundo quem estava perto na hora em que o coração resolveu apertar-lhe o peito, gritou a bom gritar por socorro, enquanto o corpo padecia por ar e por sangue, que começou a ficar preso e lento, até lhe coalhar os gritos, a expressão, a vida. Não é a primeira vez que assisto a esta demonstrações incoerentes dos vivos que proferem palavras continuas com preces que rogam a morte, para depois, e na hora em que finalmente são atendidos, por ela ter passado ao lado ou aguçado o ouvido selectivo, gritarem pela ajuda de quem está perto, como se quem está perto pudesse valer de alguma coisa quando ela resolve arrastar quem marcou. A envolta ainda tentou. Chamou-se o 112 mas a viagem ficou a meio caminho, altura em que o coração deixou de bater e transformou Luís num corpo morto, algures entre duas pequenas aldeias que assistiram ao momento impávidas e serenas.
Luís pegou-me ao colo muitas vezes. Era dono do café da aldeia e presenteava-me com amendoins salgados e pevides descascadas, das quais eu lambia o sal com uma sofreguidão digna de criança, totalmente subjugada às minhas vontades. Também me lembro dele dançar comigo ao colo, enquanto sorria embevecido perante o meu ar traquina, em troca do ar das netas que tardavam em chegar e que chegaram longe, em distância de tempo e de lugar. Nunca fui substituída. Tinha ali um espaço na mesa, na casa, acima de tudo no coração, aquele que agora lhe atraiçoou a vida e o deixou à mercê da morte, numa incoerência que encontro no mundo a cada esquina, em muitos lugares, dentro de muitas pessoas. Corações bons também morrem. Corações bons também param. Corações bons também atraiçoam o dono. Guardo-o para sempre cá dentro do meu, bem como tudo aquilo que me sempre me proporcionou. Enquanto o meu corpo não me atraiçoar, aqui permanecerá. 

1 comentário:

  1. Há até quem diga que os bons são os primeiros a ir. provavelmente é o universo a dar oportunidade aos menos bons de se redimirem - alguns andam de oportunidade em oportunidade e nada...

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