sábado, 31 de dezembro de 2011

Fim de ano

Um fim implica sempre um inicio. Não existem fins por si só, na verdadeira acepção da palavra, de um fim de todo, um fim final. Poderemos até referenciar aqui a morte, mas ainda assim, e a agirmos em prudência, não deveremos fazê-lo, que até hoje ainda não se descobriu verdadeiramente o que existe para além dela. Há quem arrisque a eternidade, agarrado a uma fé maior, poderosa, que permite uma existência para lá do corpo. Existe ainda quem considere a alma possível apenas enquanto o físico existir, e que acredite que uma vez este terminado, terminado tudo o resto, deixando a magnitude da essência entregue a uma existência terrena, fraca e mortal. Crendo numa ou crendo em outra, mais não cremos do que em suposições, que a verdade verdadinha é que o desconhecido faz parte da vida, representando portanto quantidade razoável de coisas por perceber, para as quais não me parece nada que caminhemos. Estamos longe, somos assim. E partindo então deste meu raciocínio, volto a dizer que o final de uma qualquer coisa implica necessariamente o início de outra, pelo que o que vos quero desejar é que os inícios de hoje em diante, sejam os inícios que ambicionam. Voltando também aqui para vós, o que desejo sempre para mim mesma, e que é o desejo real de que isso aconteça a cada dia e para sempre, e não apenas amanhã. Digo-vos hoje porque fica bem dizê-lo hoje, faz parte dos votos, da educação.
Não me importam muito as vozes que dizem que estes dias não são importantes, e que são dias iguais aos outros, que existem exageros de consumismo, e afinidades. Para mim, a existência de datas que marcam pode não ser primordial, mas é importante. Como pretexto e reunião de esforços para cumprir o que por vezes ao longo do ano deixamos para trás, por indisponibilidade, por cansaço. Sim, às vezes ando cansada. Sim, por vezes esqueço arranjar tempos para todos os que gosto, horas de visitas, presença efectiva. Faço o que posso, mas por vezes o que posso não chega. Nestas alturas, tento reunir o meu tempo. Esquecer-me de mim, e dar-me um pouco mais. Se é porque é Natal e Fim de ano? Também. Mas é também porque sou gente e nem sempre consigo dar o que quero. E os pretextos também não são assim tão maus, se forem sinceros e vindos da vontade.
Um bom ano a todos. E não comam passas se não gostarem delas. Têm caroços que se metem nos dentes, e não resolvem nada do que vocês não conseguirem resolver sozinhos.

Irmãs

Nasceu há uns anos, e mudou muito a minha vida. Se existe quem deseje um filho, eu desejava muito, aos nove anos de idade, uma irmã. Irmão é aquela pessoa que nós temos e que é nossa. Pode ser dela, mas também é nossa, faz parte de nós. É como se o nosso coração existisse dividido em dois, uma vez que as nossas dores e as nossas alegrias surgem de mãos dadas e sempre muito partilhadas. A partir daquele dia a minha vida foi muito mais feliz do que teria sido sem a sua existência. Hoje, passados uns anos, cresceu muito e é uma das pessoas que eu mais admiro. E não é só por ser minha irmã, é também por ela ser quem ela é. Tem um coração do tamanho do mundo, e as pessoas de coração grande merecem um mundo bom para elas.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

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Há muito que tinha enjoado aletria doce. Agora, como que por magia, desenjoei. Se calhar tinha antes seguido o caminho inverso. E tinha enjoado farófias, por exemplo. Ou então Bolo Rei. Ou então qualquer outra coisa.

Lideranças

Penso ser digno de reflexão o que se viveu na Coreia do Norte. A morte de Kim Jong-il, trouxe ao de cima uma histeria colectiva inigualável, que nos dá informações preciosas acerca do funcionamento do ser humano. Surgem questões inerentes. O que fará a população em massa chorar desesperadamente um líder opressor? O que se eleva nestas mentes controladas, perante a perca de um dos responsáveis por um existir castrado e diminuído? O que faz crescer dentro de um povo uma devoção sem limites, a líderes do género? Representará, tal como foi levantado, uma encenação, executada também ela por medo de alguma represália? Não havendo conclusões sólidas, pois trata fenómenos culturais dos quais estamos ausentes, e logo limitados para uma análise efectiva, poderemos no entanto debruçar-nos sobre estas e outras questões importantes, que nos ajudam a perceber o Homem. A mim, e encarando com a devida cautela este meu entender, parece-me honestamente que as manifestações de tristeza nem sequer são encenadas. Tratarão por certo um verdadeiro pesar, sendo que não é pouco frequente, e encarando um carácter mais simples, num seio familiar por exemplo, o oprimido ganhar verdadeira admiração ao opressor, que encara com um respeito supremo, como se de lá apenas viesse protecção, por demais urgente para mentes mais fracas. Não é a primeira vez que encontramos este tipo de mente alienada, pelo que poderemos por exemplo pegar, embora em outra dimensão, no líder Cubano Fidel Castro, que representava para a sua população um exemplo a seguir, uma figura a idolatrar, embora o regime apontasse para a ditadura. Ele era o Líder da Revolução.
O que isto revela sobre nós, em termos de evolução e crescimento, é o que todos sabemos, mas que por vezes esquecemos. Somos um produto construído e moldado à envolta, à sociedade, às interacções dialógicas. Vamos, na maioria das vezes, até onde nos deixam ir, ficando em caminhos fechados a meio, quando não nos permitem espaço para mais avanços. Habituamo-nos a viver cercados, se não conhecemos o exterior, e damos graças verdadeiras a quem assim nos trata e supostamente protege. Um fenómeno sociológico, que nos ajuda a entender muitas outras submissões. O facto de por vezes se exercerem actos de violência e de violação de direitos, parece aqui perder significado, e honestamente, é exactamente o ponto que menos percebo. Ainda assim, e encarando que em grandes alheamentos de espírito, a debilidade toma-nos conta da alma, depressa concluo que o que se pensa, muitas das vezes, será que os castigos e punições são merecidos, porque somos indignos, e não conseguimos chegar à perfeição dos Senhores.
Assusta sermos assim.

Desejos

Para o próximo ano tenho o corpo carregado de sonhos, como todos os inícios de anos, como todos os dias, como em todas as horas. Sonho desde que existo, e já existo há um tempo, por isso carrego em mim toneladas de projectos inacabados, objectivos por conseguir, metas a atingir, sítios onde ir, para além dos já cumpridos. Nem consigo bem enaltecer algum mais específico que gostasse de concretizar, que vão desde pequenas coisas a outras mais grandiosas, umas possíveis outras quase impossíveis, vontades apenas, utopias, ambições desmesuradas. Tenho porém alguma flexibilidade, e não costumo regredir na espera de projectos inviáveis, na vã esperança que eles aconteçam. Enquanto os espero, vivo outros, tão intensamente como viveria os que realmente eu desejava. Não quero com isto dizer que quebro às primeiras contrariedades, ou que me entrego ao que me é mais fácil, com desistência pronta do que realmente quero. Quero dizer apenas que caminho sempre em função do meu progresso enquanto pessoa, à medida do que me surge e do que me é possível, e que gostaria muito de continuar sempre assim. À parte dos tradicionais, para mim, e para os que me são queridos, talvez até seja esse o meu maior desejo, não para 2012, mas para a minha vida.

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Não me choca nada a vida sexual do público em geral. E quando digo nada, é nada, incluindo o tal de Marco ( Os Marcos têm um qualquer karma, será?), que anda envolvido com duas ao mesmo tempo, numa casa que se diz cheia de segredos. Parece que a TVI incorre em risco de multa, por alegadamente ter trazido a público cenas eventualmente chocantes, entre os referidos membros. E isso sim, já me choca. Uma televisão que necessita disto não é uma boa televisão. Uma televisão que carece de transmitir este tipo de cenas para entrar na guerra das audiências, não é uma televisão de qualidade. Uma sociedade que continua a consumir este tipo de programas à descrição, está necessáriamente conturbada. Será da crise? Se calhar era bom que fosse. Era sinal que entretanto passava.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

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O DN refere as remodelações nas prisões, devido aos elevados gastos por cela. E prevenir o crime, em prevenção primária, para que daqui a uns anos o problema não tenha aumentado, ao invés de diminuído? Não sou utópica ao ponto de pensar extingui-lo. Mas sou crente ao ponto de considerar ser possível diminui-lo. Nunca percebi o porquê de aos olhos de números consideráveis de pessoas, a prevenção nunca parecer importar, quando é nela que reside tanto. Para depois se investir a sério no remedeio.

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Acabei de morfar uns bombons, que se alojaram em mim exactamente ao lado da mousse do chocolate, do arroz doce e do bolo rei. Isto tudo junto dá um festim que se vê ao longe. E vale o forrobodó acabar já no Domingo. Mas até lá, que cantemos e comamos muito. Depois era giro continuarmos a cantarolar. Já a comer, enfim.

Tempos

Voltou lá. Tinha sido exactamente ali que tinha passado os melhores dias da sua vida. Os melhores de todos, talvez até nem tivessem sido, que temos este estranho hábito de colocar no tecto das emoções determinadas vivências passadas, quando por vezes até já tivemos outras de ordem semelhante, correndo aqui até o risco de nem deixarmos novas ocuparem o lugar cimeiro, tal a vontade que temos em que as idas continuem ali para todo o sempre. Foram bons, foi isso. Ia portanto no encalço de se encontrar outra vez, de conseguir dormir de olhos e corpo fechados ao mundo, de acordar toda ela pela manhã, enquanto lá fora a vida corria, a chamá-la com força, recebendo-a de braços muito abertos. Poisou o saco e olhou a envolta. O cheiro não era exactamente igual, a colcha da cama tinha umas flores garridas iguais ao costume, mas estranhamente desconfortáveis. As cortinas tapavam de todo uma janela que em tempos sorria. Na mesinha de cabeceira, a mesma bacia com água, a mesma toalha branca imaculada, o mesmo sabonete com cheiro a alecrim. Abriu as portas do armário, muito escuras e trabalhadas, e sentiu de lá de dentro o cheiro a alfazema, vindo de uns saquinhos pequeninos bordados a ponto de cruz, cheios de ervas perfumadas, que deixavam na roupa a essência antiga mas doce, perdida à muito nas gavetas da cómoda de sua avó. Não resistiu e pegou num que cheirou com vontade, sendo que de olhos fechados entrou em épocas muito distantes, algumas das quais já nem lembrava terem existido. Surgiram de repente, emergidas num estalido interno, que num instante desapareceu outra vez. Sentou-se na cama e descansou qualquer coisa, delineando por dentro os planos do dia, da noite, do outro e do outro. As horas passaram e sentiu estranho o seu corpo. O chá príncipe não lhe aqueceu a alma, o biscoito doce não lhe atingiu o coração, o vento morno teimou em deixa-la de fora, sem embalo e sem paixão. O ranger das traves de madeira antiga já não lhe embalava o sono, as cortinas que voavam da janela não lhe benziam a alma, em nada parecia pertencer ali. Deixou o tempo passar devagar.
No final saiu sem a vontade do regresso. O que já foi dela deixou de o ser, ou melhor, ela, é que deixou de ser dali. O tempo tem destas coisas. Quando passa, pode deixa-nos diferentes. E às vezes até indiferentes.

Mandos

Triste é ainda haver quem se julgue dono do corpo de alguém. Como se um ser humano pudesse ser pertença, perdendo aqui qualquer acesso à individualidade. Como se os direitos fossem esquecidos, e apenas existisse a vontade de quem por alguma manobra interna, de pouca nobreza e muito pretensiosismo, se julga capaz de mandar. E ainda mais triste é o governado não ter a ousadia de se sobrepor, o que no fundo não seria mais do que existir. E se deixe amarfanhar por imposições alheias, arbítrios que não são seus, decisões que lhe são externas. Pudesse eu mudar o mundo, e dotaria as almas submissas de poder de mudança. E deixaria as opressoras sozinhas, sem terem em quem mandar. Talvez fosse aí que aprendessem a gerir-se a elas próprias.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Tudo

Ganho sempre esgares quando ouço alguém dizer que o menino tem tudo, quando o menino tem briquedos, roupas, jogos, consolas e muitas actividades extra curriculares. Tudo, não é isso. Melhor dizendo, isso às vezes não é quase nada. Ou então é um tudo estranho e vazio, um encher por fora, enquanto se vaza por dentro. Poderemos ter exemplos de tudo muito mais simples, e garantidamente muito mais cheios.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Oração

Dona Justa reza por mim a bom rezar há cerca de dois anos. Isto está a fazer-me mal. Tendo em conta que a velha sabe rezar, uma vez que pouco mais fez vida fora, e dada a ausência de resultados fabulosos, concluo que os Santos devem andar entretidos ou demasiado ocupados, sendo que nenhuma delas é uma boa notícia, e deixa-me a modos que descrente. Carecemos de milagres, de atenções divinas, de olhos de anjos postos em nós. Por ora, reza a São Judas Tadeu, que segundo consta é um Santo muito milagreiro. Todos os dias me pergunta se já aconteceu alguma coisa. A parte de eu ainda não ter descoberto o que ela quer exactamente que me aconteça, nem vem ao caso. Respondo sempre que sim, já aconteceram muitas coisas, que não sei se ocorrem por mor da força do Santo, se por mor da minha. Olhem, acontecem. É nestas horas dos dias que os olhos de Justa sorriem. Afinal deve continuar a rezar, o seu entretém de todos os dias, o seu préstimo destinado a almas ocupadas e impuras que deixam este mundo correr insano, sem se darem a preces e orações.

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Quer queiramos quer não, a beleza faz parte do mundo. Ainda ontem, deambulando no facebook, encontrei ceias de Natal com caras bolachudas, ares despenteados, bocas abertas mordendo rabanadas, enfim, natais iguais ao meu, que não está por lá porque é muito meu, e porque há coisas que não são bonitas de mostrar, são bonitas de se viver e de se guardar.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Saudades

Era uma figura muito pouco querida. Nem que a aparência fosse demasiado rude, pelo contrário, que o ar era quase meigo, os olhos eram claros, os cabelos faziam umas ondas certas polidas a Olex, o que as deixava brilhantes, ainda mais bonitas. Cheirava bem, sendo que uma das suas grandes paixões eram sabonetes. Feno, Palmolive, verdes, cor de rosa, amarelos, todos guardados religiosamente dentro de uma gaveta de um armário branco, destinada exclusivamente aquele efeito. Retirava um quando necessário, e tinha sempre reserva. Tal como tinha reserva de paletes de leite, guardadas ao monte por trás da porta da cozinha. Bebia um litro certinho todas as manhãs, embebido em café com leite e muito açúcar. Gostava também de pêras, maçãs e bananas, que devorava no final de cada refeição, com gosto e sofreguidão. Olhando à primeira até parecia dócil, tornando-se porém mais amargo à medida que se conhecia. Sempre a intrigou o porquê das gentes se mostrarem umas com os de dentro, e outras com os de fora. Uma com os conviventes, outra com o desconhecido, quase como se o que interessasse fossem os olhos de um mundo que nem é nosso, e os olhos de quem nos é próximo, fossem uns olhos indignos de respeito, de carinho, de prontidão. Foi conhecendo muitos ao longo do tempo. Pessoas que parecem viver para quem delas pouco se importa, e que deixam dependuradas em despeito, aqueles que os amam. Trataria isto algum tipo de incapacidade? Estaria ela presente a algum fenómeno de iminente ignorância congénita, que ataca forte algumas mentes pequenas, que não abrangem para além do próprio corpo? Percebeu entretanto que não é tão simples. Ajudou-a claro, que a incompreensão é algo que lhe atormenta a alma, e ainda hoje ambiciona continuar a entender o que pode parecer nem ter explicação. Trata isto gente que ficou pelo caminho, em algum recanto obscuro vedado à emoção, sendo que apenas conhecem verdadeiramente o seu próprio eu, com um ligeiro cheiro, muito ténue e mortiço, do sentir do outro, que só existe para dele cuidar. Ele, ao invés de retribuir, centra-se dentro de si mesmo, sorri para quem algo lhe possa dar, ou opinião a respeito possa emitir, que se for favorável, tanto melhor. Neste seguimento valorizam verdadeiramente grandes senhores, que por norma, nada lhe têm a apontar. No fundo, sabem-se dar. Aquele, o que lhe esteve mais próximo, acordou tarde. Careceu de sentir uma falta no corpo, do que sempre teve, e estaria na iminência de o deixar. Num ápice, virou a acção. Do nunca passou ao sempre, do mau passou ao bom, do rijo, passou ao doce. Não fosse a circunstância, e teria havido ali felicidade. Assim, houve um volte face de alguém que por medo mudou, e o sorriso de outro alguém que nunca assim se viu, e que ainda que em doença, conseguiu um sossego que a aconchegou. Ela partiu primeiro. Ele, quiçá por remorso, a mais terrível das cargas que podemos acartar, rumou dias a fio a iluminá-la de luzes, a enfeitá-la de flores nunca antes dadas, a cuidá-la como nunca houvera feito.
Pelo caminho morreu de amor. Ou da falta que ela lhe fazia. Ou de uma loucura vinda de dentro, de um local ermo e entorpecido.

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Matar é uma palavra estúpida. Mas que aplico com especial agrado à saudade. Um requinte, uma perdição.

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Estar de férias tem sempre esta coisa do regresso. Inicia com o despertador, silencioso nos últimos dias, passando para a correria da manhã. Num desejo impossível queria correr menos no próximo ano. E caminhar mais para onde me apetecer. Nunca percebi muito bem o porquê das vontades serem tão pouco atendidas. Uma qualquer dessincronização interna, deve ser isso.

Balanço

Na semana do balanço, por certo haverá quem pondere se vai ou se fica. Eu nunca faço balanços finais. Limito-me a balançar diariamente, numa corda bamba que a vida me deu. Já começo a crer que vai ser minha até ao fim. Se calhar, vai-se a ver, e se me derem chão eu caio.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Natal 3

Sai de casa e está muito frio. Abafa-se numa agasalho quente e percorre a aldeia deserta. Por entre as pedras calcadas pelo tempo, encontra experiências de vida que já se foram, resquícios de momentos passados, batidos pelo sol e pela chuva, exactamente com a mesma intensidade com que os dias a poliram por dentro, sendo que por isso hoje se encontra lisa, delicada, quase subtil. Houve tempos em que tentou uma existência mais dura, um ser mais inteiro, uma imposição de presença forte e marcada, um não se deixar ir. Era assim que era gente, mas achou-se em engano. Hoje, e no seguimento do crescimento, prefere esta existência singela. Já não lhe importa muito o que a julgam, se a acham forte ou fraca, dura ou submissa. Tempos passaram em que a julgavam forte quando ela se sentia fraca, ou até dura quando ela curvaria num bafejo, sem ninguém o perceber. Por isso mesmo hoje já não faz caso disso. Apraz-lhe uma existência mais branda, marcada pelo silêncio ou pela isenção, quando se sente incompreendida. Lá dentro dela mesma, ela entende-se sempre. Prossegue. Na porta de Dona Alexandrina, a velha que colecciona baús de antiguidades preciosas, que guarda como se do mundo inteiro se tratasse, encontra um cão aninhado na porta, encolhido ao frio. A velha resguardou-se do mundo de tal forma que já não ousa sequer deixar entrar os bichos, que alimenta ao longe, da soleira da porta, temendo quiçá que o afecto a tome outra vez, e que de novo perca o aconchego do sentimento. Assim, já nada tem a perder. Percebe-a, nem sequer a condena, embora não partilhe. Continua o caminho e passa pela fonte. Por ela escorre uma água gelada, que nasce de dentro da terra puríssima, para logo depois se adulterar por uma aldeia inteira que ao invés de a proteger e de lhe reconhecer a importância, a desdenha, numa injustiça tremenda, perante a necessidade manifestada. Fossem as pessoas justas, reconhecessem elas o que carecem ao longo do tempo, e tratariam-na em respeito, em cuidado e em protecção, que vem ao mundo para nos servir e para nos permitir a existência dependente, da qual somos portadores sem pensar nisso. Vai embora. Na eira que se segue, alta, redonda, onde em tempos se secava o milho, ousa sentar-se. Sente uns raios de sol fracos que lhe acertam no corpo frio, e pensa na relatividade das coisas. Está em paz. Sente-se tranquila, rodeada de um mundo que carece com urgência de transmitir harmonia, enquanto sangra desgraça por todos os poros. Fome, miséria, abandono, solidão. Infelicidades que se remendam com remendos muito frágeis mas que se julgam deveras poderosos, e que nos deixam num estado insano de sossego vão, uma mixórdia de sentimentos fictícios. Enquanto ela recebe o sol e a paz, neste mundo que se enfeitou de luzes natalícias, presépios e velas coloridas, encontramos submersa a podridão, aguçada por um espírito mesquinho que conquistamos com o tempo, onde o que se vê pode valer muito, e o que se sente e se vive, chega a valer quase nada. Só uma sociedade profundamente doente pode viver assim. Só um homem alienado, consegue ser completamente feliz aqui.
Põe as mãos nos bolsos e regressa. É Natal. E que a esperança dele exista, e que nos escorra das mãos. Assim como a coragem, a hombridade, o respeito e o poder da mudança. O balanço não é bom. Cabe às mãos do mundo fazer melhor, ao invés de aguardar colapsos inevitáveis, vindos de guerras evitáveis.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Agora Natal a sério

Gosto do Natal, apesar dos exageros que acarta. Traz-me porém alguma melancolia, aguçada pelo passado e pelo que de menos bom me circunda, ao longe no Mundo, que numa presunção tamanha quase considero meu. Não consigo por isso nunca desmembrar de mim os que nada têm, os que estão sozinhos a contra gosto, os que por qualquer coisa, carecem de paz sem a alcançar. Pouco posso fazer, e a minha lembrança no mundo deles de nada lhes vale, mas não consigo contrariar este meu sentir. Sendo assim, desejo-lhe um Natal tranquilo a todos eles, que não me lêem, mas não me importa. Fica a vontade que sei impossível. Aos meus leitores, aos que por cá passam, com carinho e paciência, deixo também tudo de bom. Um Natal feliz, cheio de saúde e amor. Porque por vezes esquecemos que é isso mesmo que importa.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Natal 2

Pela primeira vez, consegui não ficar com nenhum dos presentes que comprei. Houve um, que para não incorrer em risco, comprei em duplicado, mas isso não conta. Fiquei ainda com um livro atravessado, que já entreguei, não fosse cair em tentação e passar a noite a lê-lo, antes de o ofertar. Não me lembro de um outro ano assim, em que não tenha surripiado meia dúzia dos presentes que comprei. Isto não quer dizer que quero tudo para mim. Quer dizer que nunca ofereço coisas que não gosto, aqueles de quem gosto muito.

Natal 1

Tenho dois chocolates, um branco e um preto. Ambos se encontram em vias de se tornarem mousses cremosas, misturadas dentro da mesma taça. E eu desconfio que não sossego esta noite.

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Num género balaço que hoje me veio à ideia, penso na instabilidade. Não me lembro de ter vivido outra época em que as directrizes do País mudam de dia para dia. Tudo se analisa, reanalisa, se pondera e se muda. Quase sem critério, concluo, tal a dimensão das mudanças. Nada do que se ouve é concreto e assume carácter efectivo. Tudo é susceptível de mudança, não a médio prazo, ou após falhanço, mas logo após pensar-se melhor. A nível social, e já existe obviamente que se debruce no assunto, isto traduz-se em sérias repercussões. Crianças perguntavam-me ontem, mas porque é que tanta gente junta e grande, não sabe mandar? Retirando a ingenuidade própria que as caracteriza, e deixando de lado o exagero da pergunta, quase me apetece adaptá-la, e questionar o porquê de tanta gente junta e grande, não saber pensar, ponderar, e só então decidir. Ao invés de decidir, pensar, e depois alterar. A coerência é um sonho utópico também aqui.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Bengala

Está sentado num banco de jardim carunchoso, e apoia-se numa bengala em caracol. Não carecia dela, está em apoio, mas a dita dá-lhe um sossego forte, um sustento, pertence-lhe, não quer largá-la. Está frio. Ao longe meia dúzia de crianças saltitam sobre o olhar atento das mães. Uma vivacidade em botão, já não sabe o que aquilo é. Apenas a sente se entrar em esforço, se percorrer as veias do passado e o sangue que já lhes escorreu. Aí sim, lembra-se de ter vida. Precisa porém de ânimo para que tal sentir apareça, que a deixar a mente em repouso, apenas consciencializa a sua dura realidade, como se nem nunca tivesse tido outra, e como se desde sempre estivesse confinado a três pernas ao invés de duas. As memórias são uma coisa estranha que lá tem dentro. Não deveríamos dar-lhe caso, tê-las em conta, profere. Embora saiba que é do nosso passado que nos vem a vida, e que é dele que nascemos, a cada dia e a cada instante, sabe também ser ele o responsável por muitas existências presas à saudade, que ao invés de caminharem para a frente desandam para o lado, tal e qual como os caranguejos. Deveria morrer sozinha a saudade, num abandono frio e amargurado, que é exactamente o que merece. Talvez por isso já se habituou a não ligar às memórias. Tem-as lá dentro, chafurda nelas de vez em quando, mas logo depois deixa que descansem, num repouso longo e prudente, que o deixa caminhar devagar num jardim com flores. Não o preocupa o que já não tem. Não o preocupa sequer o que vai ou não ter. Preocupa-o apenas a sua existência vagarosa, o seu andar lento, a sua vida compassada. Chega-lhe, e por isso quer cuidar bem dela. Já se acomodou, já percorreu.
Porém, e numa inconsonância com toda a quietude onde chegou, encontro-lhe ainda um sonho. Sonha que o entendam. Sabe ser sonho vão, que não há nada mais difícil do que entender realidades alheias. Mas não há nada que mais procuremos, sempre, a cada passo, do que o acolhimento constante.
- A bengala, sabe. É para me amparar o corpo que já não consegue sozinho.
- O passeio sabe, é para me animar a alma que já não consegue sozinha.
E ficaram os dois à espera.

Sentires

- Podias sentir...
- Prefiro muito mais racionalizar.
- Não devias, sentir é melhor.
- Mas racionalizar é muito mais fácil.

Somos distintos, temos duas partes. Uma que sente a outra que explica e entende. A que sente, eleva-nos, mas pode vergar-nos. A que explica e entende, controla. Racionaliza. Não nos permite, mas também não nos falha. Daí deambular-mos internamente entre as duas, ora crendo numa, ora tentando a outra, quando a dor é grande e já não a queremos. É nessas horas que abafamos o corpo dentro de um invólucro fechado e apertado, acessível apenas a nós. E seguimos em coerência, segurança, sossego, mas ao mesmo tempo trémulos, carecidos. Ficamos ríspidos, amargos, não de essência, mas de abrigo. Um qualquer sítio que sustenta o ardor da alma, e agarra o corpo. Estranha-se por vezes esta excessiva capacidade que alguns adquirem, de se auto protegerem. Critica-se, diz-se ser medo, cobardia. É verdade. Não deixa de ser antagónica esta transformação em rocha, de um corpo que por fraqueza sucumbiu.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

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Fez hoje 58, e é minha mãe. Existem dias em que quase não a aturo, talvez por ser minha mãe. Recorro sempre a ela quando preciso, e quando não recorro, ela aparece. Tem na ponta dos dedos um carinho que esbanja por filhas e neto, de tal ordem que por vezes cansa. Se dormimos, se comemos, se agasalhamos, se convivemos, se descansamos, se trabalhamos, se precisamos, se de alguma forma, não estamos bem. Tenta com todas as forças que reúne, viver as nossas dores, e consome-se quando tal não consegue, ou seja, sempre. Mas todos sabemos, de uma certeza segura, que enquanto existirmos, nunca, mas nunca, sofreremos sozinhos. Se isso me ampara? Ampara. Mesmo nos dias em que teimosamente julgo que não.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Crise

Fui ver aquele filme dos esquilos, mas não me lembro o nome. Alvin, qualquer coisa. Havia tanta gente, que uma hora antes dos filme, já só consegui bilhetes com duas filas de intervalo. O puto tá crescido, e o único problema foi o acesso vedado às pipocas que ficaram com ele. Mas assim dormi sossegada, por isso não me perguntem pela história, pelo menos ali nas partes do meio. Por engano ao entrar na sala, erramos o número e demos de caras com o Gato das Botas. Também à cunha. Depois disso demos uma pequena volta. Não podia ser grande, que não cabíamos nas lojas. Quase não cabíamos nos corredores. Entramos numa quase briga, para estacionar num lugar que mais vinte queriam. Eu sei que há crise. Sei, que não é coisa da cabeça de toda a gente. Mas honestamente, por vezes, acho que o País se queixa de mais. Podíamos sei lá, vivê-la, cada um à sua forma, mas sem tanto alarido. Assim soa a falso. Seremos nós isso? Gostaremos assim tanto do queixume, real ou de embalo?

Companhias

Ela sabe-se tensa quando invade os chocolates. Tem preferência pelos simples, de leite, mas se tiverem amêndoas, secas e estaladiças, também lhe sabem bem. Quando neste estado se encontra, ainda o dia mal amanheceu, e já o apetite voraz lhe toma conta do corpo. Entretém-se com qualquer outra coisa, ainda é cedo, mas assim que a sua mente permite, corre para o frigorífico onde os guarda criteriosamente, por sabores, marcas e cores, e inicia o pecado. Nunca ousa comer muito de uma vez só. Sabe que a isso nunca se perdoaria, e não existe maior punidor do que o próprio corpo para si mesmo, um desassossego constante, apunhalado por nada, banido por coisa alguma. Um verdadeiro tormento. Devido a isso, contêm-se. Um quadradinho de cada vez, pequeno, doce, aquecedor de uns sentidos frios e azedados, que carecem com urgência de apaziguamento. Existem dias em que são suficientes para que se distraia das dores maiores, nem bem sabe como o faz. Tem presente que estas pequenas distracções, que lhe adocicam a língua e lhe adormecem a alma, mais não fazem do que isso mesmo, distraí-la, de um mundo um tanto ou quanto imenso que a circunda, onde por vezes se perde e sente medo. Poderá o mundo não ser tão imenso? Poderá ao invés acolhê-la, arranjar-lhe um sítio confortável, um local onde possa estar? O medo não é mais que um desconforto, um não saber ser, um não saber encarar, um não conseguir aceitar. Hoje, sente-se acima de tudo distante. A distância é uma grandeza pouco absoluta, parecida com coisa nenhuma. Não há nada que se assemelhe a ela, nem que se assuma de uma forma tão pura, com relatividade. Varia de gente para gente, e de dentro para fora. Logo, e neste seguimento de pensamento, poderemos estar muito próximos de alguém que se encontra longe, e muito longe de alguém que temos mesmo ali ao lado. E por incrível que pareça, a distância de espaço é qualquer coisa como ninharia, quando a proximidade interna é real. Já a proximidade efectiva, com toque e presença, pode chegar a ser incómoda, de tão distante que pode ser. Um chegar que não se sente, um beijo que não percorre, um coração que não acelera, apenas bate. Vozes que não entram. Enquanto deambula internamente sobre isto, come chocolates. O de hoje tem recheio de morango, macio e cremoso, uma novidade. Em cada quadrado mastigado, sente um pingo que lhe escorre da boca, que de imediato apara com os dedos, não vá perder-se. Seria esbanjamento. Entretanto alguém entrou. Passou pouco tempo, e come outro quadrado. Doce, delicado, aveludado. Uma companhia perfeita, um desperdício ficar ali.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Afirmações

Trato a política com a devida distância. Nem sempre a percebo, nem sempre me interessa, encontro-lhe podres mal cheirosos e maléficos dos quais me apetece fugir. Quando tentei aproximar-me mais dela, assustei-me. Não havia gente sã, havia gente com interesses. Ainda assim e como cidadã, não posso negá-la, ou simplesmente ignorá-la, pelo que a sigo, numa distância que considero de salvaguarda. Existem actos políticos mais sensatos, outros menos, outros ainda nos intermédios da coisa, enfim, para todos os gostos, direcções, ideais, crenças e convicções. E existem afirmações que, ainda que se pensem, não devem ser proferidas. Não fazem sentido, infestam o povo, que infestado já está. E desanimam quem ainda crê qualquer coisa, por pouco que seja. Já perdemos muito, e se perdermos de vez a crença, entraremos num desânimo perigoso. O desânimo é inimigo do homem, tapa-lhe os olhos, os ouvidos, prende-lhe as mãos. Tudo, porque a mente fica entorpecida. E é por ela que passam todos os sentires.

Afinal, o puto não é parvo não senhor...

Após longos anos a querer ser paleontólogo, hoje, amanheceu com dúvidas.
- Já não sei o que quero ser mãe.
- Não?!?! Então filho, não é paleontólogo?
- Estou indeciso entre paleontólogo, cientista, inventor, médico investigador, ou director bancário.
- Director bancário???
- Sim, porque assim quem mandava no dinheiro e nas maquinas do multibanco era eu. E para além disso os paleontólogos e os cientistas só andam no meio do pó, e isso faz-me mal às alergias.

Férias

Diz-se que estou de férias. Uns dias guardados criteriosamente para esta época, altura em que o rebento se encontra em casa. A agenda está de tal forma carregada, que quando me perguntam se estou de férias, apetece-me responder qualquer coisa como, estou fora do meu local habitual de trabalho. E nada do que me assalta tem a ver com a época, que se fosse esse o caso, a coisa seria pacífica. Conforme fico velha, estou a tornar-me esquisita, também deverá ser isso. Férias para mim significa ausência. Da casa, da mente, da minha realidade. Dias entupidos de afazeres, que se arrastam propositadamente para esta altura em que não me desloco ao local de todos os dias, e onde me desdobro em duas para que tudo fique em ordem, e o ano se inicie sem problemas, não se podem chamar de férias. Quando arranjar um nome decente para isto, transmito.
A propósito, estou a precisar de férias. De casa, da mente, da minha realidade.

Jovenaldo II

Ora nada disso se passou, que aqui os santos nem se encontram com tamanha arte, e de santos têm pouco mais do que o nome, pelo que o que aconteceu na realidade, foi a galopada desesperada do Dr. Cunha e Silva pela colina, de bofes de fora, prestes a cair em desfalecimento mal atingiu a casa, com a terrível desgraça lá dentro.
E foi exactamente ali naquela hora que sentiu falta das graças dividas, que aquando da subida, o seu corpo ainda que fraco, acompanhou-lhe as necessidades, tendo sido prestável o suficiente para o levar com valimento ao local de sua função. Foi quando os seus olhos se puseram em Jovenaldo, encolhido na cama e retorcido com dores, sem quase mexer, que em suas entranhas se reuniram com todas as forças que tinham, numa prece que temia vã, perante o cenário de calamidade.
Mal viu o médico, Jovenaldo remexeu-se na cama conforme pode, e tentou esconder-se o mais possível, que da última vez que aquele velho lhe assolara a porta fora por mor de uma amigdalite, curada a penicilina, daquela que se enfia no corpo devagarinho pela bochecha do rabo, com a ajuda de um tubo contendo uma agulha na ponta, capaz de o fazer gritar de dores colossais e de coxear uns bons dois dias, da perna apanhada. Vá lá, curou-se a garganta e pode falar outra vez, que se tal coisa nem tivesse ocorrido, já o tinha planeado, teria feito uma espera aquele médico maluco, que ao invés de curar as crianças enfermas lhes coloca ainda mais dor, e onde ela nem existia vejam só, tamanho descalabro. Mas adiante. Ora se uma mísera dor de garganta é coisa para ter uma cura de tal calibre, hoje, e logo após o aterro no chão seguido da dor lancinante, que o acompanhou desde o osso rábico até às costas que ficam ao pé do pescoço, espera um remédio muito mais aterrador, vindo de dentro daquele saco cruel e maligno, capaz, quiçá, de o levar à beira da loucura. Se calhar o melhor, seria esvair-se nas dores da queda de uma vez por todas, e deixar as dores das curas para quem delas quisesse padecer. Haveria de arranjar-se de alguma maneira.
Ninguém lhe acudiu às ideias, que o que aquela gente queria era analisa-lo a pente fino, vê-lo de fio a pavio, começando nos pés, passando nas pernas e nas costas, com especial incidência no rabo, para depois se concentrarem na cabeça, que nem sequer bateu, mas que poderia ter batido, e estar adormecida perante a dor óssea dos membros inferiores. Num desleixo que ali ocorresse, sob as mãos do Dr., poderia até deixar-se escapar algum traumatismo, infortúnio com poder suficiente para lhe deixar lacunas sérias, e incorre-lo no risco de algum fado menos bom, consequência essa, temida a preceito pelos seus progenitores.
Após a cuidada análise, o médico coça a cabeça parca em cabelos, rufia o bigode farfalhudo e esfrega a ponta do nariz, sinal de que se encontra em análise aprofundada dos dados que acaba de recolher, e que vai dar inicio ao processo de diagnóstico.
- Nem sei que vos diga, caros senhores. O menino precisa de exames médicos mais detalhados. E isso, só em Lisboa. Perante o olhar incrédulo dos pais, volta a falar e adianta. - O melhor é irem, que não sabemos o que por aqui está. Alguma lesão não detectada, e poderá o moço comprometer o seu crescimento.
Ninguém ali estava preparado para tal veredicto. O pai, homem de trabalho do campo, de taverna, e de vinho tinto, nem se via agora a rumar para a capital, ainda longe das terras do Ribatejo. Mas seria aquilo mesmo preciso, ou tratar-se-ia de um desaire daquele pobre médico, velho e cansado, que de tanto diagnosticar bicos de papagaio, diarreias ou comichões, já se encontra turvado para os outros males do mundo, e encastoa uma simples queda, no rol das desgraças terrenas?
A mãe, por sua vez, e ainda que se constituísse como uma espécie de trato afastado, nada afectuosa, e muito pouco dada a preocupações desmesuradas, ficou-se com as ideias obstipadas pelo discurso do médico. A mulher ainda tentou pensar a rigor, mas os gritos desesperados do infante, juntamente com o ar pálido do médico, que tinha esvaído a cor inicial que trazia, não lhe permitiram um raciocínio digno de tomar qualquer tipo de decisão no que respeita à situação, pelo que o que optou por fazer, foi questionar o médico sobre o que deveria ser feito naquele exacto momento, enquanto se pensava a derradeira decisão. Não havia muito a fazer senão dar-lhe um xarope doce para as dores, e leva-lo dali para fora, quanto mais depressa melhor.
A reunião de família nem por isso foi considerável, que eles eram poucos, e dos poucos que haviam, alguns, nem se pesavam. Nem parecia existirem grandes alternativas, que há medida que o tempo passava, os esgares do petiz aumentavam de intensidade, pelo que algo teria de ser feito rapidamente.
- Vou eu, se não fores tu também. Profere a mãe. O pobre está mal, precisa curar-se. Um dia mais tarde, ainda poderemos precisar que vele por nós.
E assim foi. Na cura e no resto.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Jovenaldo

Sabe ter nascido do desejo. Se não propriamente a ele, pelo menos um desejo inerente ao seu enceto, que daí em diante andou em trambolhos desesperados pelos cantos do mundo, como se a lado algum concernisse. Não apareceu na época exacta, sabe disso, que a tal ter ocorrido, por certo lhe teria sido dado um lugar, por reles que fosse, coisa essa que nunca ocorreu, sendo que a única explicação que lhe parece plausível de entendimento, é a incongruência da hora, acontecimento no qual tem poder nenhum, dado que uma vez cá, cá estamos, acontece a todos, e de nada nos vale o esbracejo desesperado na vontade da fuga. Ainda chegou a pensar ser uma questão de lugar, teoria essa refutada após buscas incessantes de novos sítios, sempre cheios, sempre ácidos, sempre amargos.
Começou cedo a desavença com a vida. Sua mãe, trabalhadora no campo desde o nascer ao pôr do sol, deixava-o entregue às vizinhas, que mal delas cuidavam quanto mais daquele pequeno ser, muito feio e desajeitado, que mais não fazia do que diabruras. Chegou a ser levado para a horta e deixado na sombra de uma árvore, mas a agrura da lavoura não se comovia com os seus choros desesperados, o trabalho era para ser feito, quando muito ao toque do canto emitido pelas bocas que trabalhavam, mas não pelo choro de um bebé azedado, tido pelo demónio, que bramia assim a céu aberto. Cresceu aos estorvos, foi o que foi, de vizinha em vizinha, de tia em tia, debaixo de sol e de chuva, por entre árvores de azeitona, ramos de sobreiros, flores de azinheiras, cães, gatos, cabras e bodes, vacas e porcos.
Deveria ter uns seis, mais coisa menos coisa, quando uma malvada de uma queda o deixou inerte no chão. Estava a brincar com Hermengarda, uma prima nascida em hora certa, abençoada por alguma divindade que a escolheu a dedo e a colocou no seio de uma família abastada por parte do pai, vindo de longe, que pegou em sua tia, irmã de sua mãe, e a desposou de imediato.
Ficou tudo numa grande aflição. Nem que a preocupação de seu estado fosse verdadeira, que o que mais assanhava o desespero de seus pais, era, lembra-se bem, a iminência de alguma consequência devasta, capaz até de lhe comprometer o movimento, e para que serviria tal homem se não para angustiar? Perante tamanha ameaça, pior até do que própria morte, que ao menos essa era certeira, definitiva e isenta de aborrecimentos permanentes, era necessária a busca de ajuda médica, sendo que se chamou a casa o Médico da aldeia, o Dr Cunha e Silva, um velho corcunda e coxo que se passeava entre as casas, o consultório e a taverna, e que levava, num peso considerável para o seu ser frouxo e reles, uma mala preta, onde depositava todos e mais algum utensílio que pudesse vir a ser necessário para curar quaisquer tipo de males, fossem eles graves, muito graves, ou ligeiros. O médico veio depressa. A queixa foi dura, a criança tinha caído, havia dores, não ousava mexer-se. Acelerou o passo até onde a ciática lho permitia, e era vê-lo galgar a colina, numa figura caricata que faria rir quem o visse e nem sonhasse a desgraça que encontraria, que aos outros, aos anjos, santos e deuses, que de lá de cima velavam o menino, a única coisa a povoar-lhes o espírito, a única atenção para a qual conseguiam dar-se, era acelerar dentro de seus possíveis os passos do pobre do velho, que de tanto correr já se esvaia em gotas de suor amarelado, que lhe pingava da testa em gotas fortes e fedorentas, as quais ele limpava ameaçadoramente com um lenço de bolso bordado à mão com as suas inicias, que nem sequer chegava para tal gotear. E pensarão vocês por certo que se bem o cogitaram melhor o fizeram, que o que não deverá encontrar-se em falta na terra dos santos serão poderes milagrosos, sendo que o que terão realizado, clandestinamente, sem ninguém notar, terá sido transportar o pobre do velho ladeira acima, deixando-o plantado bem na entrada da porta, isto para não ser já lá dentro, não fosse o milagre ser visto. (Continua)

...

Sempre que ponho na mão de algum miúdo um papel e lápis de cor, fico à espera de desenhos livres e coloridos, reflexo de um mundo bom. Não vou habituar-me nunca ao facto de por vezes me surgirem sombras negras, muito esborratadas e fortes, vindas de umas mãos que se queriam ingénuas. Nunca vou, posso dizê-lo. Posso ter de lidar, mas vai revoltar-me para sempre. Logo, nunca vou estar habituada.

sábado, 17 de dezembro de 2011

...

Em revista passaram um conjunto de fotos onde eles se riam, batiam palmas, dançavam, ou simplesmente olhavam. Uns já não estão, já se foram para um outro mundo distante que não sei onde fica. Outros estão, mas estão mais velhos, mais enrugados, menos bonitos. Uns deles sorriram a ver, outros choraram, outros ainda mantiveram-se indiferentes, seriam eles que ali estão, projectados na parede? Não sabem. Eu sei que são eles. Uns já foram, outros estão cá. Não pertenço à classe dos egoístas que querem guardar para sempre, pessoas que já acabaram. Num egoísmo quase inocente, mas egoísmo, ainda assim. Que os guardem na alma, e que se contentem por isso. Tudo acaba, até a gente. Guardo-os então cá dentro da memória, e hoje, só hoje, chorei. Ninguém viu, claro, que eu choro para dentro. E não foi sequer de tristeza pelos que não estão, pelos que estão mais velhos, mais doentes, menos bonitos. Foi pela alegria de os ter, ou ter tido a todos, e de lhes ter sempre deixado um sorriso. E eles a mim. São meus eles. Todos eles.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Partida

Sua mãe morreu há muito. Ele era pequeno, mas recorda o dia com uma exactidão amarga, sabendo ter sido essa a data que lhe arrancou o sossego do corpo, e o deixou entregue ao destino, como se ele de si soubesse cuidar. Era forte a sua mãe. Não fosse aquela penosa doença ter-lhe levado a existência, e provavelmente ainda por cá estaria, motivando por si só uma vida para si também, mas nada disso aconteceu. O dia era de inverno, e ela já se ia aos poucos há muito. Primeiro foi a força de trabalho que se esvaiu, para depois se lhe fugirem do corpo, a pouco e pouco, todas as rijezas que lá reunia. A maleita soube bem em quem buscar alimento. Fosse ela asna, e teria por certo escolhido uma qualquer velha podre e mirrada, já sem dentes, que se encontravam por lá aos troços, mas não. De todas as escolhas que havia, pareceu-lhe aquela a mais sensata, para que devidamente crescesse e vingasse, e dali partisse depois, muito mais tenaz e endurecida, capaz de atacar um elefante, se de animais resolvesse alimentar-se, ou qualquer outra gente ainda maior, se fosse essa sua vontade. E diz-se então que lhe foi crescendo por dentro. Primeiro, e logo após o fraquejo, levou-lhe os olhos, deixando-a entregue a quem a guiasse, que cegueira desta é cegueira má, muito pior do que a do cego que nunca viu, e que, pobre de si, aprendeu a ver com outros olhos, nascidos a seu tempo na ponta dos dedos, no extremo do nariz, nas plantas dos pés. Tem para ele que a esses, que conhece alguns, nascem olhos em todas as partes do corpo, que se movimentam num embalo perfeito, quase parecendo, muitas das vezes, que vêm tanto como qualquer um de nós, detentores de dois olhos sãos e visuais, daqueles que vêm as cores e os traços, os caminhos e as pessoas. A ela, e dado o tardio da cegueira, já nada nasceu, para além de uma dor pungente que lhe escorria em cada palavra, deixando a envolta ler uns olhos que não viam, mas que tanto diziam. Ironias do destino, que nunca na vida tanto tinham dito, como quando perderam o dom de olhar. Pensou sobre isso. Porque nunca lhe teriam assim falado os olhos de sua mãe? Talvez porque necessitassem perder a função, para se amedrontarem de vez e se darem, conscientes que estavam de que a dádiva era urgente, ou então, correria o risco de vir a ser dádiva nenhuma. Num desespero amedrontado, não poderiam pois deixar-se morrer ainda mais, que de nada lhes serviria, ia-se a ver e ainda se apagavam de todo daquele rosto, tal a inutilidade de que se cercariam, perante tal incapacidade. Dado que sua atribuição lhe tinha fugido ao acesso, dado nada vislumbrarem na sua frente para além de umas sombras pretas e indefinidas, que mais valia nem ali poisarem, resolveram então dar de si, e encontrar na sua volta quem lhes recebesse as emoções, que tantas eram, a carecer de direcção. Ele, limpava-as com jeitinho.
O andar foi logo de seguida, confinando o seu já magro corpo a uma cama resguardada, que a pobre perdeu o controlo dos movimentos, coisa que a deixou portadora de uns espasmos violentos, capazes de a atirar do leito em algum descuido, o que poderia originar alguma lesão ainda mais considerável, naquele ser já doente. Usava umas fraldas atadas que lhe seguravam as sobras do corpo, limpas duas vezes por dia pela tia Ermelinda, que se dedicou a ela de coração. A tia Ermelinda foi a sua segunda mãe, logo após a primeira ter partido. Não tinha a mesma força nem o mesmo amor, que o amor de sua mãe era uma coisa nunca vista, mas esforçava-se muito. Levo-o para casa para o acabar de criar, juntamente com as suas duas filhas, as primas Lúcrécia e Hortense, duas moçoilas irritadiças que mais não faziam do que pentear ao espelho uma cabeleira medonhamente enriçada, de uns caracóis finos e quebradiços. Eram ambas feias de meter dó.
Nem bem entende o que motivava as gentes da aldeia, que o olhavam de lado como se de um ignorante se tratasse, e nada lhe explicavam, como se ele nem bem estivesse atento, à desgraça que emanava daquela casa. Houve um dia, uma noite, para uma maior precisão, em que viu sair pelo telhado um conjunto de nuvens negras que fugiam depressa, como se dali, nada conseguissem ter levado. Eram forças maléficas, não tem disso qualquer dúvida, que vinham leva-la, tendo-se ela debatido ferozmente, e aguardado nova vez. Não era aquela que queria, e estava em seu direito. Ele porém ficou na espera. Sabia-as fortes, ainda que a envolta o jurasse criança e ignorante, e tinha em consciência que a vitória de sua mãe, era frágil e mortiça, capaz de se submeter para a próxima vinda, que não tardaria, por certo. Não tardou. Passaram dois dias, e ele dormia. Sonhava que vivia num mundo estranho onde se flutuava, e onde as pessoas não morriam nunca. Dada a possibilidade de levitação, nem inquietava ninguém o descomedimento de pessoas, que o espaço era mais do que suficiente para albergar ao infinito todas as criaturas que Deus ao mundo deitasse. Não haviam problemas de excessos populacionais, podendo cada um habitar o local desejado, desde que livre, numa perfeita harmonia que estranhou, até em sonhos.
Na aurora, entrou-lhe um raio de sol quente, muito certeiro, que o atingiu em cheio e o acordou. A seu lado estava a tia, que lhe afagou a cabeça, e nada lhe disse. Nada era preciso dizer.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Não sei se é muito notório que tenho uma família dedicada à agricultura e afins, e um filho poupadinho...

Mãe - Temos de comprar uma prenda de Natal à professora filho.
Filho - Não é preciso mãe, damos um frasco de mel.
Mãe - Um frasco de mel demos no ano passado...
Filho - Então damos uma garrafa de azeite!

Última parte

Senta-se na mesa, engole um naco de pão duro e um pedaço de queijo seco e esburacado, retirado do frasco do azeite, e espera que aquela aflição a desampare, que nem lhe apetece aturar tal coisa. Nem bem sabe a que santo pediu o sossego, sabe sim, e isso muito bem, que o dito se lhe deu a bênção em defeito, que ao invés de lhe levar a agonia, aumentou-lha cada vez mais, sendo que nada lhe valia para o sossegar do costado, cada vez mais dorido e amargurado. Precisava de saber do que se tratava. Saiu, e encaminhou-se em esforço importante para casa de sua mãe, que mal a viu naquele estado, de imediato percebeu que iria, naquele exacto dia, ser avó, permanecendo apenas a dúvida, relativa ao número de netos. A parteira ainda era uso na aldeia, tendo sido de imediato chamada, a fim de dar contimento aquele acontecimento há muito esperado. A pobre mulher, velha e cansada, arrasta-se então para o seu propósito, que não duvida que disso se trate, um destino, que desde sempre traz gente ao mundo, numa sapiência herdada de sua avó materna, também ela capaz de fazer nascer pessoas. E foram dezenas diz com orgulho, incluindo, e só para que percebam a dimensão de quem se trata, o nascimento do senhor excelentíssimo presidente, uma alma pouco dada a celeridades, que já na vinda para este mundo, se mostrou em demoras sérias. Foi preciso, segundo lhe confidenciou sua sábia avó, um retorcimento ainda dentro de sua mãe, a fim de possibilitar a passagem daquele ser já teimoso, que no final da primeira guerra, por si travada e por si perdida, teve de sair, guinchando que nem um moiro desaforado, para o orbe que o acolhia.
Aquando da chegada da velha, já o trabalho ia em adianto. Já lhe cabiam uns bons dedos, atestando uma passagem já preparada para a vinda do que lá estivesse dentro, apto para sair. A água foi aquecida, as toalhas trazidas, os utensílios preparados, tudo, enquanto os gritos esganiçados da pobre da moça, se faziam ouvir, bem ao longe.
No meio da giga joga da vida, nascem-lhe dois seres de dentro da alma, um macho e o outro fêmea, ambos detentores de uns pulmões apurados, capazes de berrar muito mais ainda do que sua mãe houvera feito, a fim de os botar neste mundo. Ela, ao vê-los, enrugados e ensanguentados, logo após lhe terem esfrangalhado as entranhas, teve vontade de arremessa-los. Sabia porém nem ser esse o sentimento esperado, pelo que fechou os olhos com força, numa feroz tentativa de sentir uma qualquer outra coisa, fosse ela qual fosse, que nada do que viesse, poderia ser pior do que aquilo. Fez bem. Nos instantes seguintes, e perante tamanho milagre, ganhou-lhes um amor indescritível, que lhe vinha de dentro do peito, quase parecendo, que mais nada lhe cabia dentro. Daí, em diante, nunca mais isso lhe passou. Por esse sentimento, deixou de ter sonhos e ali ficou.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Ok, já deve ser sobejamente conhecido, e eu aqui a julgar que deixo notícia...

http://www.escreveretriste.com/

Parte II

A história dela nem se assemelha, sendo que a trouxe de referência apenas para atestar a desgraça que pode ocorrer a uma pobre rapariga, que se veja envolvida em meandros destes, onde os homens entram de mansinho, e saem quase sem serem vistos, deixando entregue aos corpos de quem os recebe, a amargura eterna da geração no ventre, quando esta se dá amaldiçoada pelo demo. Ela casou primeiro, com o seu noivo de sempre, conhecido no bairro como um sério e honesto trabalhador, vindo de boas famílias, endinheiradas. Seus pais de imediato abençoaram a união, que melhor partido do que aquele, para a sua adorada filha, nem deveria haver na terra e nos arredores, pelo que ela deveria mantê-lo em respeito, e não se dar cá a grandes devaneios de rapariga moderna, pouco dada a cuidar da casa, e muito ambiciosa. Estudos e outros percursos, são para os homens que para isso foram feitos, para elas, resta a lida dos dias, a educação dos filhos, a obediência a quem lhe governa a casa, e o cuidado e zelo a esse mesmo, seu marido. Ainda longe de entender a preceito os meandros da feitura de gente, e já uma dessas lhe crescia na barriga, coisa de imediato detectada por quem a conhecia de perto, que o apetite voraz, nunca antes visto, pareceu toma-la de vez, não lhe deixando espaço para descansos, que de manhã até ser noite, e até, muitas das vezes, ainda sem raiar a aurora, e lá tinha de se deslocar à cozinha, munir-se de um prato de sopas e comê-las, sob pena de o sossego nem lhe subir. Um descalabro, que nunca se tinha visto por aquela terra, que chegava seu esposo a dizer, que nem bem conseguia estancar tal avidez, que todo e qualquer mantimento que lhe poisasse naquela casa, era de imediato surripiado por ela, que o engolia vorazmente, com um desfastio de meter intriga. São dois, dizia sua mãe, mulher que já parira uns poucos, e que nunca em suas panças, tinha sofrido tal apetite, nem na do seu primogénito, filho homem e viçoso, que lhe nasceu já entroncado, passando-lhe por entre as pernas nem se sabe bem como, tal o tamanho com que avistou a luz deste mundo. Ela nem se queria querer em tal teoria, que de resto, nem nunca tinha visto ali perto, ventres de onde nascessem mais do que um, número ideal nestas lides, pelo que nem percebia tamanhas aleivosias, vindas de boca de sua mãe, que ao invés de a tranquilizar a deixava numa pilha de nervos miudinhos, capazes de lhe levar o sono, a alegria, a energia, tudo, menos a fome.
Houve então um dia, situado na Primavera, mais precisamente a 22 de Março de 1978, em que logo pela manhã, sentiu um aperto estranho que lhe sugava as costas, um vai e vem de umas dores que lhe moíam as vísceras, numa inconstância que nem bem percebia. Seria talvez fome, pensou. (Continua...)

Nós

Ainda encontro frequentemente os pseudo psicólogos. Gente que se julga muito capaz, apenas porque ouve, ou porque de quando em vez dá um bom conselho. Não o fazem em presunção, sei disso, e não trata crítica o que aqui escrevo. Gostaria porém que se generalizasse, que compreender gente, não é só ouvi-la. E que ajudá-la, não é só dizer o que se pensa. E que se fosse assim tão fácil, não andaríamos nós, psicólogos, a queimar neurónios de empreitada. E ainda assim, sabe Deus o que nos escapa.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Estiquei-me neste. Por isso está divido. A quem tiver paciência é esperar, que já vem o resto.

Não era muito dada a sorrisos. Foi em tempos, segundo lhe contava sua falecida mãe, que sempre tinha sido uma criança bem disposta, munida de uma simpatia instintiva que lhe dourava o sorriso, mesmo por baixo das agruras que a vida lhe foi dando, mais do que muitas, como de resto, traz a todas as gentes que por cá deita, nem havendo por certo maior madrasta do que ela. Foi mãe muito cedo, não por obra da vontade, mas por obra do acaso, coisa tão ou mais poderosa do que a primeira, na qual não se tem nenhum tipo de imputação de tenção, são desígnios escolhidos vá lá saber-se por quem, que resolve salpicar o mundo de coisas diversas, incluindo pessoa nova, sem qualquer tipo de opinião sob os seus intervenientes, que à parte de proporcionarem o corpo à orgia da concepção, mais não fazem para além disso. E tal, tenho a dizer, não deveria trazer de arrasto tamanha consequência, que todos os seres do mundo, são susceptíveis de se entregar a tal comportamento, que constitui necessidade , ainda que inundada de devassidão. Mas traz, todos nós disso sabemos, e o melhor, em caso de desconsentimento extremo por tal estado de graça, é o devido cuidado, encabeçado pela privação, de carácter totalmente eficaz. Ainda se lembra de sua vizinha Aurora, muito moça quando arranjou encosto, num rapaz bem parecido da aldeia vizinha, dono de uma motorizada que lhe permitia a vinda até aos lugares do lado. O dito, vinha à terra aos fins de semana, frequentava a casa da rapariga, sob o olhar atento das mulheres do lar, que num certo dia, por altura de um qualquer acontecimento importante, se perderam em vistas pela TV recém-chegada à aldeia, e se esqueceram de fazer a devida guarda, desleixada por tempo suficiente para que os dois se escapassem para as chãs de fora, e dessem umas grandes voltas no meio do milheiral. No regresso, apanharam a mãe de Aurora num estado de desespero, que ao vê-los chegar são e salvos, nem bem se inquietou com sermões ou outros que tais, que a sua única ralação, era o estado de saúde dos dois, que se tinham sumido sem deixar rasto. Mal ela sabia que o estado, era já, naquele exacto momento, não de dois, mas sim de três, e que a sua ralação momentânea, nada constituía perante a outra, muito maior, que por aí vinha. Passou o tempo, e Aurora estanhou a ausência do sangue que lhe escorria da boca do corpo todos os meses, nem bem sabia, o que poderia estar a ocorrer-lhe, um sério problema de saúde, poderia ser. Para além disso, estava gorda e engrandecida, parecia até que agora, deitava um novo corpo até então adormecido, e lhe cresciam determinadas partes a contragosto, quase como se tivessem vontades próprias, nunca houvera visto nada assim, a emanar-se de dentro das suas entranhas. Os sutiãs que sua mãe lhe costurava, deixavam-lhe de fora parte considerável de carnes, coisa essa que a incomodava de sobremaneira, que faria ela, para esconder tal pecado? Em estado de desespero, perante um novo corpo que nem era seu, e que agora a sacudia por dentro, tal e qual como se um mafarrico ensandecido nela se tivesse aninhado, procurou ajuda em sua avó, uma velha senhora, que de imediato percebeu o que acontecia à sua neta. A coisa foi composta o melhor que se podia, as reuniões familiares deram-se no maior dos segredos, e o casamento ia dar-se depressa, se o moço bem-parecido, perante tal imposição, e quase na hora do enlace, tivesse aguentado o embate, coisa essa que não se verificou, pelo que deixou a pobre da Aurora num abandono sem igual. Desse dia em diante, nunca mais homem algum lhe deu mão, que era moça já de segunda, que nem sequer se tinha sabido guardar devidamente, ia-se a ver, e se algum interessado lhe deitasse o olho, quem sabe incorreria em algum risco considerável de ela vir a cometer nova desvirtude, ainda antes de chegar ao casamento, sabe-se lá com quem.

Estatística

Lembro-me bem dele. Um homem muito magro e já velho, que usava uma pêra cinzenta, que devia por certo ser mal cheirosa. Os homens de pêra não deveriam fumar, ou então, e a manter o vício, deveriam cortar a pêra, que aconchegar as baforadas soltas num monte de pêlos, mesmo à saída da boca, não me parece coisa digna de um senhor de posição. Para uma qualquer outra profissão, sem carência de apresentação cuidada, que existem muitas, sem qualquer desprimor por quem as pratica, atenção. A um pedreiro, a um operário, daqueles que passam os dias de cigarro definhado preso nos dentes, envergando um macacão azul petróleo, tudo se perdoa, agora a um professor universitário, convenhamos que já não. Ainda para mais, que o objecto que lhe ardia em mãos, nem era um vulgar cigarro, mas sim um cachimbo. Bem sei, sinónimo de algum estatuto, o que talvez defenda um pouco o que atrás relato, mas ainda assim, não gosto de homens com pêra, que fumem o que quer que seja. Coisas minhas. Era muito pequeno, tinha uns óculos redondos e era fanático por estatística, uma das minhas maiores fragilidades. Gosto muito de ler estudos conclusivos sobre isto e sobre aquilo, uns muito interessantes e outros que não interessam nem ao menino jesus. Enfim, que hei-de fazer, apesar de não ser apaixonada por números, aprecio quantificações já efectuadas, resultados prováveis, com margens de erro totalmente controladas, e que nos dão informação mais ou menos preciosa, para a nossa existência. Se somos muitos ou poucos, quantos bebés nascem por família, quantos saem do País, quantos estudam, quantos são analfabetos, entre outras. Ele vibrava com os resultados obtidos, e falava de estatística mais ou menos como eu falo de mentes, ou até talvez com maior empolgamento, tenho de o considerar, que vê-lo a dissertar sobre o assunto, era assistir a um gesticular efusivo, a um fechar de olhos pausado e prazeroso, enquanto o cachimbo fumegava devagar, pendurado sob os seus queixos, e inundava a sala de um cheiro pestilento. Tinha uma mala preta muito antiga, de onde saiam diariamente as obras necessárias ao exercício de sua profissão, coisa pouca, que aquela cabeça pequena, quase careca e com barba a cheirar a fumo, guardava um mundo lá dentro. Hoje, e num interesse oportunista, próprio do ser humano, perdoava-lhe a pêra e o cachimbo. Precisava dele e aguentava o resto.

Instantâneos, ingenuidades, grandes verdades impossíveis, ou de como eu tenho saudades disto...

- Filho, despacha-te...
- Aiiii mãe, não vês que eu estou a brincar???
- Mas esta não é uma boa hora para brincar!!!
- Mas as horas não são todas boas para brincar????

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Intento

Todos os dias dá a volta inúmeras vezes. Foi-lhe ofertado um boneco bebé, vestido de cor de rosa, com touca e corpo de esponja, que embrulha cuidadosamente de minuto a minuto, compondo agora o pescoço, depois o pé, daqui a pouquinho a mão. Não simpatiza muito com quem lhe chega perto, talvez por medo, insegurança, mas isto já sou eu que divago. Eu, tenho alturas em que me aventuro, e outras em que guardo uma distância de segurança, não vá a coisa torcer-se. Nos dias bons, encontra-se por norma a sorrir, coisa normal, que não foge ao padrão de acção habitual da maioria das gentes. Nos dias não, costuma apresentar um semblante carregado, de olhos semi fechados, que espreitam discretos quando lhe passamos na beira. Um risco quase incalculado, que a sacaninha é imprevista. Gosta particularmente de tapetes, que enrola debaixo do braço e deposita onde bem calhar. Também aprecia plantas, das mais diversas espécies, desde as Hortências que crescem na rua, a plantas de interior, que são sempre para arrancar pela raiz. Nas horas de passeio devemos sempre deixa-la passar, e mesmo que alguma intempérie se faça sentir lá fora, a rua é um território que é dela. Existem dias em que da janela, vejo uns cabelos branquinhos que esvoaçam ao vento, a uma velocidade vertiginosa, quase impossível de conceber, dada a idade. Entra por qualquer uma das portas, e pode chegar a deitar-se em camas alheias, que julga suas. Tenho dias em que me julgo forte. E em que gosto de pensar que não tenho medo de nada. Minto a mim mesma, a pior das mentiras que pode haver. Tenho um medo pavoroso, de perder a intenção.

domingo, 11 de dezembro de 2011

...

Aquelas bolinhas do meio, são de caramelo crocante. E o resto é chocolate. O caramelo, pode deixar-se para o fim, e degustar-se devagar, depois do chocolate se esvair na língua.

Grandezas

Julgo ainda ter presente em memória, alturas em que os grandes eram os grandes. Sim, creio mesmo que é lembrança, e não aquela sensação vaga que por vezes guardamos, não tendo bem ao certo se a recordação é efectiva, ou se emergiu do que se ouviu dos avós, ficando porém na latência. Lembro-me, é um facto. Haviam os grandes da literatura, os grandes da história, os grandes jornalistas, os grandes médicos, os grandes da televisão, os grandes da terra, só porque eram gente com G grande. Hoje, e salvando as devidas, como sempre faço questão de ressalvar, encontro muitas grandezas vagas. Umas grandezas ausentes de mérito, cravejadas de insignificâncias, mas muito reconhecidas pelo povo. Não tenho nada a opor, não fora o facto de muitas das vezes sentir, que as grandezas verdadeiras chegam a passar despercebidas. Abafadas por um imbecilidade que avassala as gentes, e que parece encarcerar os espíritos. Existe tanta gente grande por aí. Muitas vezes esquecida, pouco referenciada, perdida num mundo que parece escardeá-la, em prol dos fátuos magnânimos. Temo ainda que um dia, e numa evolução lógica da espécie, esta raça desenxabida assole de vez os pensamentos do mundo, e o adormeça para sempre, numa evolução só de nome.

Oportunidade

Existem coisas simples às quais todos deveríamos ter direito. Serei eu conhecedora de algumas, serão vocês de outras tantas, provavelmente diferentes, dadas pela vida, proporcionadas pelas oportunidades. Ainda assim a poder, e do que tenho conhecimento, seleccionaria umas tantas, que todos os seres do mundo deveriam poder experimentar. Coisas simples, nada de grandes ou complexos sentimentos, que ainda que essenciais, não vêm por ora ao caso. Deixo a exemplo as corridas em prados verdes, que não mais acabam e que por isso, nos dão uma liberdade para além dos limites do corpo, um alargamento sem fim, uma sensação de pertença ao mundo, numa osmose muito perfeita. Corri tanto em prados verdes e hoje correria outra vez. Estas emoções, as sentidas no momento, são por vezes desvalorizadas, centramos os objectivos em grandezas tocáveis, em feitos conseguidos, esquecemos porém de sentir o ar que respiramos, até à chegada ao destino. Um desperdício, um viver enfraquecido, onde se perde tanto apenas por ambição exacerbada, e talvez por pressa. Esquecemos, que a contemplação do mundo não nos limita a acção, permite-nos sim uma existência mais cheia, que julgo não caber dentro de muitos de nós. O mundo é grande, nós podemos ser pequenos. O mar, deveria ser dado a todos. As montanhas imensas, os bombons, os afagos na cabeça. Os presentes, os agrados, as partilhas. Os livros, as histórias que se ouvem, a papa cerelac. Mousse de chocolate. Uma bicicleta, a lua cheia, os rios que entram no mar. Atravessar uma ponte e ver que há outro lado. Há sempre outro lado nas pontes. Um aglomerado de gente que vibra com música. Dormir numa tenda, ou até ao relento. Um amigo daqueles mesmo verdadeiros. Dançar encostado. Tomar um banho numa nascente, e ver a água escorrer para o mundo, e perder a pureza que trazia. Às vezes pelas nossas próprias mãos. Subir a árvores para apanhar frutos, e comê-los ainda empoeirados. Sentir a fidelidade de um cão, perceber a independência de um gato. Comer gelado, algodão doce, beber coca cola. E muitas outras. Bem sei, é certo, que as coisas não sabidas chegam a não nos fazer falta. Mas não creio haver algum ser neste mundo, que mesmo no desconhecimento, não sinta a falta do entusiasmo da existência. E de uma mousse de chocolate, de um bombom, de um presente...

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Admirações

Não havia dia em que não rezasse por alguma alma. As almas eram mais do que muitas, desde as almas da casa, às da família mais afastada, às dos amigos e da vizinhança. Logo pela manhã, ajoelhava-se defronte ao oratório envidraçado, cheinho de santos de papel e de gesso, velinhas pequenas e redondas, terços e novenas. O terço rezava-se sempre, a novena, em pedido, e os papelinhos de orações serviam propósitos diversos, desde responsos para preciosidades perdidas, a outras orações de Santo António para moças rejeitadas, passando por rezas a Nossa Senhora dos Aflitos, em caso de algum tormento. Nunca se ajoelhava sem tapar a trança com um lenço preto, atado com força no pescoço, lenço esse que a perseguia quase sempre, andasse por onde andasse. Lembro-me do odor dela exactamente como o emanava do corpo. Um cheiro a roupas velhas e gastas, tecidas a lã de carneiro, misturado com um cheiro acre que lhe saia dos poros, entranhado e carregado, em qualquer ocasião. Dava tudo quanto tinha, desde as suas preciosas violetas, aos coelhos gordos que criava na coelheira de madeira carunchosa, aos ovos das galinhas poedeiras, que a debicavam com força, sempre que lhe assaltava o ninho. Não tinha qualquer tipo de vaidade. Vestia-se de preto desde que perdera um filho que Deus lhe deu, para logo depois lhe tirar, uma provação, sempre soube disso, atiçada em direcção à sua fé, que se manteve inabalável até ao final dos seus dias. Quando lá passo, coisa que aconteceu ainda agora, olho para o sítio no alto do monte e vejo uma casa pequena, caiada de branco, com uma figueira na frente, um poço de lado, uma coelheira a cair e uma janela que conheço como a palma da minha mão. Era lá que rezava por um mundo melhor. Era pura Rosalina. De uma pureza clara, muito transparente, boa como poucas encontro. Outro dia, disseram-me que me assemelho a ela. Ainda engrandeci, perante a possibilidade de alguém sabedor da sua existência e conhecedor da minha, ousasse tal afirmação, por enganosa que fosse. Afinal é porque sou seca, fraca de ossos, com mãos magras e definhadas. E não sabe ele que também sou anémica.

Existem cheiros que me acompanharão sempre. Talvez vivesse, por mal que fosse, sem algum outro sentido. Não poderia viver sem odores.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Sonhos

Apanho numa série banal, um cozinheiro que quase foi psiquiatra. Ainda não desisti da ideia de fazer essa troca. Trocar mentes complexas por tachos e panelas, pratinhos gourmet feitos de caviar, foie gras, ou até banalidades como beterrabas, courgettes, carnes de novilho ou bacalhau e azeite, é talvez um dos sonhos da minha vida. Profissionalmente falando, claro. Iguarias puras, limpas, tesouros que me chegam às mãos ainda virgens, prontos para que eu os trabalhe e os transforme em pratos deliciosos. Um paraíso.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Corações esburacados

Já entendo umas coisas. Ando em esforço, claro, que certos entendimentos exigem-nos o impossível, fosse fácil, e todos nos entendíamos uns aos outros, coisa que até soa a absurdo, dada a impossibilidade de aplicar tal proeza à humanidade. Encontro-me aquém em tanto. Umas das coisas onde já tentei utilizar o estatuto de compreendido, mas em vão, foi a acção deliberada que tantos temos, não importa quem, daí utilizo o nós, de consertar corações que sabemos que iremos partir. O coração é o órgão mais santo que nos povoa o corpo, e deveria por isso ser respeitado. Não falo obviamente em situações de desenvolvimento, que encalham por um qualquer devir, por uma qualquer evolução, por inocência, por assim dizer, dos intervenientes. Falo das outras, das deliberadas. Daquelas que surgem de forma dissimulada, mas completamente arbitrária e consciente por quem as pratica. Provavelmente, pessoas que no lugar do dito órgão deverão possuir um qualquer caco, ou um madeiro empedernido, que os torna capazes de utilizar tal artimanha, a fim de gerar proximidade. Poderá até ser escorrência da vida vivida, por vezes martirizada desde cedo, constituindo uma madrasta, muito má e gelada. Mas ainda assim, e perdoem-me a franqueza, más vivências não podem perdoar tudo o que fazemos, que vai-se a ver e se assim fosse, perdoaríamos todos os criminosos do mundo, todos os malvados, todos os alienados, tendo até aqui cabimento, personalidades históricas descompensadas. E se há coisa no mundo que me custa a perdoar, e neste caso específico a entender, é a usurpação do corpo alheio, pela farsa. O corpo é algo unificado à mente, foi assim que nos fizeram, e como tal carece de pertenças a fim de se tranquilizar. Deveria ser de carácter obrigatório, não só aqui, mas neste caso específico, aqui e aqui mesmo, a sinceridade de sentidos, a franqueza de acções, o respeito pelo coração alheio, que nem sequer é nosso. Corações partidos são coisa de difícil arranjo. Arranjam-se, tudo se arranja. Mas ficam cravejados de pequenos buraquinhos, por onde escorre um sangue muito diluído e fraco, que segue directamente para a alma. Quem parte corações merece um castigo profundo. Muitas vezes sofre-o, sob a pena de solidão. Mas não raramente, e atrás dessa penitência merecida, levam de arrasto os corpos que agarraram, munidos de corações esburacados. Há quem diga que ficam mais fortes. Eu digo que ficam mais resignados.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Histerias

Embora importe, nem chamo agora ao caso a gravidade dos crimes cometidos pelo alegado estripador de Lisboa. Apraz-me agora dissertar o estranho fenómeno da ambição, e até onde ele pode levar o ambicioso. Se estripou, vamos pôr a público, não porque foi crime a carecer de intervenção, mas porque se pode ficar famoso. Se não estripou, inventa-se, porque alguém há-de ter estripado, e é sempre um assunto que com jeito e sapiência, pode desaguar na fama. Ambas fabulosas, portanto. Não deixa porém de ser interessante, a capacidade do ser humano de se fazer ao protagonismo. Aquela velha máxima do se não for notado por bem, que seja notado por mal, nunca me fez tanto sentido. Um sinal claro de neurose histérica, atribuída frequentemente ao público feminino, mas tão típica também no masculino. Estou aqui, não vêm? Então se ainda não viram, vão ver.
Temos mais histéricos na praça, obviamente. Não digo nomes, mas podem tentar adivinhar.

...

Chegou agorinha mesmo ao meu estaminé, uma daquelas maravilhosas máquinas que nos dão café, capuccino, chocolate quente, tudo isto num instante, e a troco de cinquenta cêntimos. Fica situada à porta do meu gabinete. Não sei se isto é bom ou se isto é mau.

Do dia

Veio ontem pela primeira vez, e hoje já voltou. Há muito que lhe tento vasculhar as entranhas, não por qualquer tipo de curiosidade hedionda, não sou dada a isso, mas por me parecer que se esconde em demasia, dentro de um corpo grande mas fraco, dicotomias do mundo. Quem o olhar sem o ouvir, quem apenas lhe mire a aparência, sem o sentir ou sem o escutar, de certo que o percebe como um ser perfeitamente adaptado, uma ilusão, apenas uma exterioridade, como tantas outras. Levou anos em solilóquio constante, vociferando coisas sem sentido, rezando a um Deus que o ampara, e deitando cá para fora, para as paredes do quarto, um conjunto de mágoas considerável o suficiente para o ter enterrado vivo, dentro de uma tristeza profunda. Nunca mais de lá saiu. Eu, de mansinho, numa postura que adopto em quase tudo na vida, permiti-lhe o espaço precisado, demorasse ele o que demorasse. Não obstante a espera fui-lhe acenando devagar, a uma distância de segurança, não para meu proveito, mas para proveito dele, e fui-lhe dizendo, em gestos e palavras espaçadas, que estava ali. Ao fim de uns anos, finalmente apareceu. Falou-me muito depressa e em soluço constante, deixando entre cada palavra soltar um profundo respirar, que o ia aliviando devagarinho, ainda que parcamente, do sofrimento encolhido dentro do corpo. Cada palavra dita acartava uma carga forte e muito dolorosa, pelo que o fui sentindo ligeiramente mais leve, quase nada, perante o tamanho do que ainda lá tem dentro. Contou-me tudo o que já sei, que escutei como se nada soubesse. O que ali o levou, o que lá o mantém, o sentimento forte que sente de que não mais vai sair, místico com uma vontade grande de fuga. Fiquei feliz, claro. Existem vezes, por poucas que sejam, em que o sentimento de perca me invade o caminho, quase parece que cria uma barricada funda, intransponível, que me grita aos ouvidos que dali não saio, e pronto, perdi. Nem que as percas sejam só minhas, atentem, que neste caso a exemplo, seriam muito do próprio. Mas são minhas também. E afinal vai-se a ver, e o homem triste que fala sozinho ainda sonha, e ainda consegue pôr por palavras esses sonhos. Gosto muito que as pessoas sonhem. Morrem, no dia em que deixarem de o fazer.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Actos mecânicos

Temos o estranho hábito de agir com frequência mecânicamente, sem nos depositarmos, sem sentirmos o que fazemos. Por cansaço, por impaciência, por hábito, ou por outras circunstâncias, palavra que usamos amiúde para nos explicarmos a nós próprios, e que nos deixa em sossego. Serve mais ou menos o mesmo propósito da não menos usada, é a vida, uma expressão que por si só nos vale justificação para quase tudo, e nos desculpa as acções, sem grande recurso ao pensamento. Deveríamos porém consciencializar, que quem nos recebe estes actos isentos de emoção, sente essa ausência. Não será por certo difícil, num simples exercício à mente, perceberem do que falo, pois por certo todos já sentiram em alguma altura, carinhos leves ao invés do sentidos, ouviram um agrado que se queria doce e saiu distante, tiveram muito perto uma presença, que estava tão longe. Não podemos estar sempre disponíveis, é um facto, que os dias parecem mesmo levar-nos de arrasto bocados de disponibilidade, que em determinadas horas pode mesmo chegar a faltar, não deixamos nunca de ser gente. Nessas alturas, soltamos palavras frias que calam bocas curiosas, afagos leves que sossegam carências emergentes, encostos rápidos e fugidios, executados em acção distante, mas apaziguadora, para quem nos solicita. Julgamos nós.


Na hora em que por motivos diversos é necessário o debruce, chegam-me com frequência as incompreensões, porque sempre se esteve lá. Pode até ter-se estado, mas esteve-se muitas das vezes vazio, o que, na maioria das situações, serve pouco mais do que nada. E a quererem uma análise profunda do que vos digo, façam uma introspecção e pensem, em quantas vezes no vosso dia, agem assim com quem vos é próximo. E à guisa de revista cor de rosa, apenas para dar alguma cor a um assunto delicado, deixo-vos uma dica. Se isso acontecer em quatro actos para um número de análise de dez, fiquem preocupados. Alguém entretanto pode começar a sentir-se.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Exposições

Não consigo perceber o que leva audiências subirem despropositadamente, perante programação que explora de forma ridícula as emoções alheias. O formato de reality show deixa-me sempre de pé atrás, desde que começou a ser assunto predilecto da televisão Portuguesa. Já tivemos gente a viver enclausurada dentro de casas, gente a viver em tribos, gente pesada que quer ficar leve, gente que guarda segredos, e provavelmente outras gentes que por ora esqueço. Tratando o formato de um acompanhamento exaustivo aos dias dos concorrentes, encontram-se necessariamente períodos de emoções, que se soltam de dentro de todos, e que portanto, soltam-se também de dentro daqueles que se propõem a viver em directo, para milhares de pessoas. E se as emoções de alegria, disparate ou gáudio, devem ser pessoais, mas podem ser partilhadas, existem outras, que por envolverem um carácter demasiado próprio, deveriam ser individuais. Pertença do próprio e de mais ninguém. Eu, pela minha parte, confesso que sinto incómodo, quando me deparo com determinadas fragilidades a olho nu. Coisas internas e particulares. Não me choca que as sintam, todos temos fraquezas, embora ache obviamente ridícula, a excessiva exposição. Mas choca-me ainda mais, que constituam prazer para quem vê. E que parece resguardar os serões de Domingo, excelentes para qualquer outra coisa que não aquilo, para aquilo.

...


Percebo que gostem de Domingos, mas a verdade é que, e por mim falando, aprecio também as Segundas. A ser Domingo muito tempo, eu provavelmente explodiria. E espalharia na envolta coisas como, nozes, figos, chocolates, pão caseiro com manteiga, bolos ferradura com sabor a limão, compotas, iogurtes com mel, e outras. Muitas outras.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Luisita

Chamam-lhe Luisita desde pequena. Não percebe tal chamamento acabado em ita, nunca perdeu sequer muito tempo a pensar sobre o assunto, sendo que simplesmente responde, sabe que é com ela. Anda por vezes embrulhada num pêlo cinzento rato, uma relíquia guardada desde há muito, que compõe com um alfinete brilhante, muito trabalhado, oferta do marido já falecido. Esses são dois dos acessórios que fazem parte integrante de uma panóplia considerável de adornos, que utiliza para se enfeitar. Nunca, por nunca ser, sai de casa sem o número exacto que lhe faz falta para aquele dia, variável, muito variável. E vai dos dias em que apenas carece de um ou outro atavio, suficiente para lhe compor a toilette, e para que se sinta arrumada, a outros em que lhe faz falta um cuidado muito mais minucioso, e que poderá passar por um colar ao pescoço, um chapéu na cabeça, anéis em vários dedos, luvas nas mãos, e por aí fora. Os dias em que esta necessidade se assanha, saltam-lhe de dentro do peito, em forma de angústia e desarrumação interna, carecida de aliviar um bocadinho. Porém, e por muito que se arrume por fora, tem muitas das vezes a sensação de descontinuidade interna, um desconsolo aflitivo, um vai e vem desordenado, que lhe sacode o corpo trôpego e envelhecido, mas muito acordado por dentro. Costuma, nesses dias, olhar em redor e arrumar tudo o que consegue alcançar com a vista. Desde os pratinhos de vidro no armário expositor da sala, aos arranjos de flores na mesa redondinha do canto da entrada, às molduras com retratos da família, filhos, netos, bisnetos, tudo na devida ordem de nascimento, às almofadas do sofá, feitas a retalho de tecido pelas mãos de sua mãe, que organiza, seguidinhas, por cores e por tamanhos. Nos entretanto pára. Olha a envolta arrumada, e sente-se um nadinha mais confortável, que pouco lhe basta, continua em chaga. É por norma nesses dias, que antes de sair de casa, pega no pêlo e o enrola com jeito ao pescoço, devidamente composto pelo alfinete brilhante, que o segura exactamente no lugar em onde ela o quer ter. Naturalmente, dai advém uma sensação de ordem tranquilizadora. Tudo, mas tudo na envolta, transmite harmonia, até ela própria. Quanto mais não seja pela lógica, já não faz sentido o desconforto.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Gheorghe

Gheorghe chegou cá. Vem da Moldávia e traz pouco mais do que a roupa que veste. Resolveu a fim de ganhar a viagem, e quiçá mais qualquer coisa, subir a oliveiras, que a época a isso se presta, e apanhar azeitonas verdes, muito grossas, que depois nos darão azeite. Num dia de empreitada considerável, debaixo de uma chuva miudinha e incómoda, deixou esbarrar um pé e caiu no chão. As coisas miúdas têm destes senãos, que podem até parecer pequenas, quando analisadas apenas no tamanho, mas quando incluídas no seu poder e dimensão, percebemos que são fortes, quase maiores do que verdadeiras imensidões. Adiante. Agora, quase não se consegue mexer. Mantém um sorriso franco e uns olhos que me transmitem medo, vazio e solidão. A minha mulher entretanto chega. Não a vejo há muito, sabe. Quero tanto vê-la. Será que a Senhora a deixa vir até cá? Perante esta pergunta sinto-me um tanto ou quanto sucumbida, um sentimento estranho, despoletado por aquela solicitação de autorização, como se em mim residisse algum poder de decisão, coisa totalmente descabida, mas verdadeira, muito verdadeira na cabeça de Gheorghe. Claro que pode, respondo. Nos entretantos, deixamos que devagarinho se ambiente a um meio que percorre em cuidado, não vá virar-se de repente e deslocar de novo o corpo, ainda entorpecido e magoado. Não o percebo muito bem e talvez por isso, vou-lhe olhando para os olhos. Os olhos é uma parte do corpo que nos fala, tal e qual nos fala a boca, a língua, a garganta. Minto, fala mais, embora sem emitir qualquer tipo de som. Fala pelo menos, mais verdade. Por isso, encolho-me um pouco quando oiço o que me diz, mas ele, insiste em falar-me, e não esconde em nada o que lhe corre no corpo. Ainda bem que hoje é sexta. Logo, cerca das três, chega o sr Victor que me oferta sempre um caramelo de nata doce. Doçura e calma, é exactamente o que eu preciso de enfiar pela goela.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Momentos

Hoje vi-a montada na sua bicicleta de cesto e roda fina. Pedalava em direcção ao Lidl, enquanto os cabelos encaracolados denunciavam uma ventania insistente, desinquieta, que a deixavam um tanto ou quanto atordoada. Notava-se pelo sacudir da cabeça, pelo equilíbrio fraco, pelos ziguezagues na estrada. Outro dia, há pouco tempo, encontrei-a na subida da escada, munida de uma esfregona enxovalhada, quase tanto quanto ela. Descia muito devagar, enquanto o pano amarelo minguado se arrastava de um lado para o outro, sem vida e sem reacção. Há muito que me apercebo que as pessoas incutem no que fazem o sangue que lhes vai na alma. É ilusão vossa o pensarem que é todo igual, ou ainda que, uma vez forte, forte para sempre. Existem sangues possantes e sangues assim assim, e dentro de cada um deles existem dias. Uns onde pulsa muito, e outros em que se deixa abrandar, correr mais devagarinho, em caso de sobrecarga. Naquele dia ela estava pesada. Lá de casa trazia um cheiro pestilento a humilhação, que lhe escorria por entre os dedos das mãos e caia directamente no balde de espuma cinzento, que a cada gota fervilhava um bocadinho, como que num queixume inútil, pela invasão do rancor. Queria ela poder-se ver livre de tal carga. Sabe perfeitamente, que a nenhum lado de bom a transporta, este maldito, que ao invés de lhe dar sossego, tira-lhe o pouco que lhe resta, e que ainda emerge, de quando em vez, em algum dia ao acaso. Passo e cumprimento-a, deixando-lhe espaço suficiente para que se desarme, como em tanta ocasião. Não desarmou. Muniu-se do seu trabalho enjeitado e seguiu caminho, como se naquela tarefa estivesse um remédio capaz e suficiente, para lhe destilar as moléstias. No dia seguinte, quando desci, ia jurar que da porta entreaberta da dispensa, jorravam cheiros nauseabundos e putrefactos, que emanavam de tudo onde tinha posto as mãos. Ainda julguei algum equivoco, quiçá aguçado pela hora matutina do dia, mas à medida que me aproximava da dita porta, fui-o percebendo com maior intensidade, chegando até a senti-lo de raspão, como um vento pestilento, de cor esverdeada, e muito barulhento. Estou contente de a ter visto hoje. Ainda que estonteada pelo vento, sorria ao sol do Inverno.

Breivik

A inimputabilidade é um assunto que se assume sempre como delicado. E digo isto porque decorre por norma na sequência de determinados factores, que tratam desde um julgamento por um crime, ao avaliar se houve ou se não houve esse mesmo crime, ao se foi efectivamente aquela pessoa a cometê-lo, e, posteriormente, ao porquê de o ter cometido. Penso muitas vezes no exacto limite que coloca alguém dentro da protecção da inimputabilidade, sendo que de um lado encontramos um criminoso, e do outro um louco, exactamente com o mesmo crime cometido. Não quero com isto dizer, que não considero a existência de pessoas perturbadas ao ponto de serem detentoras de mentes de tal forma doentes, que dificilmente as poderemos julgar capazes de agir em consciência, e de responderem por isso. Existem, claro, muitas. Mas até que ponto, e permitam-me a fraca analogia, aqui acudida por um exemplo mais banal, poderemos considerar consciente, uma pessoa que exerceu um qualquer crime de homicídio? Não haverão sempre razões consideráveis, que tranformaram aquele ser, em alguém capaz de matar outro? Não carecerá também de organização e apoio, para um efectivo ultrapassar de um problema, que o pode tornar potencialmente perigoso? Porque quem mata, pode voltar a matar. Terrenos diferentes na gravidade, é certo, mas passíveis de análise séria. Não tenho dúvidas de que Anders Bhring Breivik, tenha tido no seu crescimento ocorrências diversas, potenciadoras de um desenvolvimento psíquico na linha esquizóide ou psicopática, sendo que deixo as duas, por desconhecer a verdadeira linha de inclusão. É um fruto, tal como todos nós o somos, os melhores e os menos bons, os organizados e os desorganizados, os capazes e os incapazes. Mas não deixa de ter cometido sérios erros, que o tornam potencialmente perigoso.

Sem deixar pareceres definitivos, opiniões excessivas, soluções ou outras, que de resto, nem a mim me cabem, deixo questões, por me parecerem pertinentes, e dignas de reflexão. Não deveriam os criminosos, fossem eles psicóticos, esquizóides, ou outras estruturas, receber um apoio efectivo que os contivesse, e lhes permitisse reabilitar, uma vez que provavelmente, de novo sairão em liberdade? Não vos parece, em todas as vertentes, que uma mente criminosa é sempre, mas sempre, uma mente doente? Haverá alguém em estado de equilíbrio, que inflija sofrimento para seu belo prazer?

Quanto ao facto de existirem determinadas patologias mais graves do que outras, a merecerem, obviamente, mais investimento, concordo. Mas esta linha frágil, que separa o culpado e o transforma numa vítima é, para mim, demasiado subtil. Até porque, para chegar a estes estados de culpa, também no seu caminho deve ter tido estado de vítima, sendo que ambas se misturaram ao infinito, motivo pelo qual utilizo delicadeza ao abordar o assunto.

Mas agora, isso já nem importa. Não se pode apagar o que viveu, nunca se pode fazer isso, sendo que somos detentores de passados nossos e intransmissíveis, capazes de nos terem feito mais ou menos Gente. Não podemos portanto deixar de ter entre nós um monstro alienado, seja ele louco, ou seja qualquer outra coisa que lhe queiram chamar. Podemos por ora proteger a envolta e tentar conter o praticante.

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