sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Partida

Sua mãe morreu há muito. Ele era pequeno, mas recorda o dia com uma exactidão amarga, sabendo ter sido essa a data que lhe arrancou o sossego do corpo, e o deixou entregue ao destino, como se ele de si soubesse cuidar. Era forte a sua mãe. Não fosse aquela penosa doença ter-lhe levado a existência, e provavelmente ainda por cá estaria, motivando por si só uma vida para si também, mas nada disso aconteceu. O dia era de inverno, e ela já se ia aos poucos há muito. Primeiro foi a força de trabalho que se esvaiu, para depois se lhe fugirem do corpo, a pouco e pouco, todas as rijezas que lá reunia. A maleita soube bem em quem buscar alimento. Fosse ela asna, e teria por certo escolhido uma qualquer velha podre e mirrada, já sem dentes, que se encontravam por lá aos troços, mas não. De todas as escolhas que havia, pareceu-lhe aquela a mais sensata, para que devidamente crescesse e vingasse, e dali partisse depois, muito mais tenaz e endurecida, capaz de atacar um elefante, se de animais resolvesse alimentar-se, ou qualquer outra gente ainda maior, se fosse essa sua vontade. E diz-se então que lhe foi crescendo por dentro. Primeiro, e logo após o fraquejo, levou-lhe os olhos, deixando-a entregue a quem a guiasse, que cegueira desta é cegueira má, muito pior do que a do cego que nunca viu, e que, pobre de si, aprendeu a ver com outros olhos, nascidos a seu tempo na ponta dos dedos, no extremo do nariz, nas plantas dos pés. Tem para ele que a esses, que conhece alguns, nascem olhos em todas as partes do corpo, que se movimentam num embalo perfeito, quase parecendo, muitas das vezes, que vêm tanto como qualquer um de nós, detentores de dois olhos sãos e visuais, daqueles que vêm as cores e os traços, os caminhos e as pessoas. A ela, e dado o tardio da cegueira, já nada nasceu, para além de uma dor pungente que lhe escorria em cada palavra, deixando a envolta ler uns olhos que não viam, mas que tanto diziam. Ironias do destino, que nunca na vida tanto tinham dito, como quando perderam o dom de olhar. Pensou sobre isso. Porque nunca lhe teriam assim falado os olhos de sua mãe? Talvez porque necessitassem perder a função, para se amedrontarem de vez e se darem, conscientes que estavam de que a dádiva era urgente, ou então, correria o risco de vir a ser dádiva nenhuma. Num desespero amedrontado, não poderiam pois deixar-se morrer ainda mais, que de nada lhes serviria, ia-se a ver e ainda se apagavam de todo daquele rosto, tal a inutilidade de que se cercariam, perante tal incapacidade. Dado que sua atribuição lhe tinha fugido ao acesso, dado nada vislumbrarem na sua frente para além de umas sombras pretas e indefinidas, que mais valia nem ali poisarem, resolveram então dar de si, e encontrar na sua volta quem lhes recebesse as emoções, que tantas eram, a carecer de direcção. Ele, limpava-as com jeitinho.
O andar foi logo de seguida, confinando o seu já magro corpo a uma cama resguardada, que a pobre perdeu o controlo dos movimentos, coisa que a deixou portadora de uns espasmos violentos, capazes de a atirar do leito em algum descuido, o que poderia originar alguma lesão ainda mais considerável, naquele ser já doente. Usava umas fraldas atadas que lhe seguravam as sobras do corpo, limpas duas vezes por dia pela tia Ermelinda, que se dedicou a ela de coração. A tia Ermelinda foi a sua segunda mãe, logo após a primeira ter partido. Não tinha a mesma força nem o mesmo amor, que o amor de sua mãe era uma coisa nunca vista, mas esforçava-se muito. Levo-o para casa para o acabar de criar, juntamente com as suas duas filhas, as primas Lúcrécia e Hortense, duas moçoilas irritadiças que mais não faziam do que pentear ao espelho uma cabeleira medonhamente enriçada, de uns caracóis finos e quebradiços. Eram ambas feias de meter dó.
Nem bem entende o que motivava as gentes da aldeia, que o olhavam de lado como se de um ignorante se tratasse, e nada lhe explicavam, como se ele nem bem estivesse atento, à desgraça que emanava daquela casa. Houve um dia, uma noite, para uma maior precisão, em que viu sair pelo telhado um conjunto de nuvens negras que fugiam depressa, como se dali, nada conseguissem ter levado. Eram forças maléficas, não tem disso qualquer dúvida, que vinham leva-la, tendo-se ela debatido ferozmente, e aguardado nova vez. Não era aquela que queria, e estava em seu direito. Ele porém ficou na espera. Sabia-as fortes, ainda que a envolta o jurasse criança e ignorante, e tinha em consciência que a vitória de sua mãe, era frágil e mortiça, capaz de se submeter para a próxima vinda, que não tardaria, por certo. Não tardou. Passaram dois dias, e ele dormia. Sonhava que vivia num mundo estranho onde se flutuava, e onde as pessoas não morriam nunca. Dada a possibilidade de levitação, nem inquietava ninguém o descomedimento de pessoas, que o espaço era mais do que suficiente para albergar ao infinito todas as criaturas que Deus ao mundo deitasse. Não haviam problemas de excessos populacionais, podendo cada um habitar o local desejado, desde que livre, numa perfeita harmonia que estranhou, até em sonhos.
Na aurora, entrou-lhe um raio de sol quente, muito certeiro, que o atingiu em cheio e o acordou. A seu lado estava a tia, que lhe afagou a cabeça, e nada lhe disse. Nada era preciso dizer.

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