Conceição, viúva há muito, jura-me a pés juntos que o marido lhe dorme debaixo da cama todas as noites. Recuso-me a contraria-la ( e quem sou eu para?), que a seguir esse caminho, entraria de imediato numa categoria pouco abonatória no que respeita à minha sanidade mental, que quem sabe é ela. É ela que o ouve, que o cheira, que o sente. Antes de se acomodar no leito vazio, abre a janela para que tenha entrada, e estende uma coberta debaixo da cama, onde a pobre alma penada se alberga até à manhã seguinte, altura em que parte, vá lá saber-se para onde. Nunca dorme antes da sua chegada, que lhe aparece mirrado de fome, e é de seu bolso que saem nacos de pão seco que lhe aconchegam o estômago, e lhe dão o sossego necessário para que o sono se instale, e lhe permita o descanso.
O destino, poderosa coisa que nem bem destrinçamos se nos quer bem ou se nos quer mal, apanhou-a frágil e submissa, deu-lhe um aperto forte e levou-lhe a fala, descaradamente, sem qualquer aviso prévio, como de resto é desde sempre hábito seu. Poder-lhe-ia ter levado outra coisa, a energia, o movimento, embora esses também lhe fossem preciosos, para zelar com jeito quem tanto estima, mas a voz, a voz, é que não podia de todo ter-lhe tirado. Nem bem a percebo, embora lhe sinta o desassossego da sensação de impotência. Quer encontra-lo, dar-lhe o seu novo paradeiro, e assim se vê, sem força e sem fala, presa num corpo cansado mas ainda preciso, irá o pobre valer-se de quem? Por portas travessas percebi isto que me pedia, e que trata o aviso ao morto, quando bater à janela, do novo destino. Nem me cabe contrariar-lhe a crença. Nem sei se será pecado, se lhe assumir que avisei, apenas e só, para que o silêncio se lhe instale tranquilo. Com sorte, o morto não me falha e descobre-lhe a nova morada.
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