quinta-feira, 31 de março de 2011

A tulipa


Abre-se a janela, e o sol espreita-lhe o quarto. Lá dentro, os lençóis recebem-no a medo, que o calor que os atinge é saudoso, e estranham-no, por assim dizer. Já na rua mira com prazer a envolta, há tanto que gosta. Gosta do velho, que de boina ao lado segue na bicicleta de rodas grandes a lembrar antigamente. O cumprimento surge em forma de aceno de mão e subtil baixar de cabeça, em sinal de respeito. Fosse-lhe possível, permitisse-lhe o equilíbrio manter a postura, e por certo libertaria uma das mãos para lhe acompanhar o gesto, levantando ligeiramente a boina, que num ápice voltaria ao local devido. Dizem ser gestos idos, ela não acha. Gosta dos miúdos que seguem de triciclo sob guarda das avós, com um boné à malandro que os guarda do sol enquanto pedalam energicamente em direcção ao parque dos baloiços. Gosta desses, claro, que lhe lembram uma infância feliz, onde os coloridos se ficavam nos jardins das casas ricas, e onde uma tábua de madeira polida e uma corda grossa lhe roubavam o nome, e o propósito tão bem serviam. Gosta das meninas, de saia e meia que andam aos saltinhos como bonecas, enquanto as verdadeiras lhe abanam nas mãos, sujas e despenteadas. Gosta das flores que encontra no caminho, que nascem numa harmonia suprema, como que para nos mostrar que a natureza sabe o que trata, tão bem ou melhor do que as nossas mãos num jardim. Aqui as brancas, ali as amarelas... Gosta das que trepam, liláses, que se encostam de mansinho nas paredes das casas que se resguardam assim no seu canto, escondidas, dando-nos a doce sensação de que lá dentro, se arruma uma família feliz. Gosta das árvores carregadinhas de folhas, que lhe aplaudem a passagem num impulso delicado, é bem vinda por certo, que ao senão, não lhe sorririam assim. Retribui, claro. Gosta dos raios luminosos que furam por entre a nuvens baixas, tímidas, quase sumidas, numa prepotência tremenda, possível apenas aos grandes. Gosta das tulipas, que lhe nascem no jardim. Existem umas, rosa, lindas de morrer, que lhe deixam na vontade um impulso recalcado pelo óbvio, de colher uma, enfeitar-se nela, e enfrentar o dia a sorrir.

1 comentário:

  1. Olá, CF

    Eu também gosto dos "gestos idos", de olhar à volta, admirar-me dos milagres de cada dia e ir colhendo sorrisos dos transeuntes...

    :)

    Olinda

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