sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Admirações

Não havia dia em que não rezasse por alguma alma. As almas eram mais do que muitas, desde as almas da casa, às da família mais afastada, às dos amigos e da vizinhança. Logo pela manhã, ajoelhava-se defronte ao oratório envidraçado, cheinho de santos de papel e de gesso, velinhas pequenas e redondas, terços e novenas. O terço rezava-se sempre, a novena, em pedido, e os papelinhos de orações serviam propósitos diversos, desde responsos para preciosidades perdidas, a outras orações de Santo António para moças rejeitadas, passando por rezas a Nossa Senhora dos Aflitos, em caso de algum tormento. Nunca se ajoelhava sem tapar a trança com um lenço preto, atado com força no pescoço, lenço esse que a perseguia quase sempre, andasse por onde andasse. Lembro-me do odor dela exactamente como o emanava do corpo. Um cheiro a roupas velhas e gastas, tecidas a lã de carneiro, misturado com um cheiro acre que lhe saia dos poros, entranhado e carregado, em qualquer ocasião. Dava tudo quanto tinha, desde as suas preciosas violetas, aos coelhos gordos que criava na coelheira de madeira carunchosa, aos ovos das galinhas poedeiras, que a debicavam com força, sempre que lhe assaltava o ninho. Não tinha qualquer tipo de vaidade. Vestia-se de preto desde que perdera um filho que Deus lhe deu, para logo depois lhe tirar, uma provação, sempre soube disso, atiçada em direcção à sua fé, que se manteve inabalável até ao final dos seus dias. Quando lá passo, coisa que aconteceu ainda agora, olho para o sítio no alto do monte e vejo uma casa pequena, caiada de branco, com uma figueira na frente, um poço de lado, uma coelheira a cair e uma janela que conheço como a palma da minha mão. Era lá que rezava por um mundo melhor. Era pura Rosalina. De uma pureza clara, muito transparente, boa como poucas encontro. Outro dia, disseram-me que me assemelho a ela. Ainda engrandeci, perante a possibilidade de alguém sabedor da sua existência e conhecedor da minha, ousasse tal afirmação, por enganosa que fosse. Afinal é porque sou seca, fraca de ossos, com mãos magras e definhadas. E não sabe ele que também sou anémica.

Existem cheiros que me acompanharão sempre. Talvez vivesse, por mal que fosse, sem algum outro sentido. Não poderia viver sem odores.

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