Não havia dia em que não rezasse por alguma alma. As almas eram mais do que muitas, desde as almas da casa, às da família mais afastada, às dos amigos e da vizinhança. Logo pela manhã, ajoelhava-se defronte ao oratório envidraçado, cheinho de santos de papel e de gesso, velinhas pequenas e redondas, terços e novenas. O terço rezava-se sempre, a novena, em pedido, e os papelinhos de orações serviam propósitos diversos, desde responsos para preciosidades perdidas, a outras orações de Santo António para moças rejeitadas, passando por rezas a Nossa Senhora dos Aflitos, em caso de algum tormento. Nunca se ajoelhava sem tapar a trança com um lenço preto, atado com força no pescoço, lenço esse que a perseguia quase sempre, andasse por onde andasse. Lembro-me do odor dela exactamente como o emanava do corpo. Um cheiro a roupas velhas e gastas, tecidas a lã de carneiro, misturado com um cheiro acre que lhe saia dos poros, entranhado e carregado, em qualquer ocasião. Dava tudo quanto tinha, desde as suas preciosas violetas, aos coelhos gordos que criava na coelheira de madeira carunchosa, aos ovos das galinhas poedeiras, que a debicavam com força, sempre que lhe assaltava o ninho. Não tinha qualquer tipo de vaidade. Vestia-se de preto desde que perdera um filho que Deus lhe deu, para logo depois lhe tirar, uma provação, sempre soube disso, atiçada em direcção à sua fé, que se manteve inabalável até ao final dos seus dias. Quando lá passo, coisa que aconteceu ainda agora, olho para o sítio no alto do monte e vejo uma casa pequena, caiada de branco, com uma figueira na frente, um poço de lado, uma coelheira a cair e uma janela que conheço como a palma da minha mão. Era lá que rezava por um mundo melhor. Era pura Rosalina. De uma pureza clara, muito transparente, boa como poucas encontro. Outro dia, disseram-me que me assemelho a ela. Ainda engrandeci, perante a possibilidade de alguém sabedor da sua existência e conhecedor da minha, ousasse tal afirmação, por enganosa que fosse. Afinal é porque sou seca, fraca de ossos, com mãos magras e definhadas. E não sabe ele que também sou anémica.
Existem cheiros que me acompanharão sempre. Talvez vivesse, por mal que fosse, sem algum outro sentido. Não poderia viver sem odores.
:):):) e rezas também? :):)
ResponderEliminarNão muito. Quem sabe é isso que me falta :)
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