O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
segunda-feira, 30 de abril de 2012
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Por vezes o estado acalma para além do razoável. Escasseiam vontades, palavras, abundam pensamentos indizíveis. Mas depois isto passa, porque na orla da estrada nascem papoilas vermelho sangue, lindas de morrer e a voar ao vento. Para além disso o meu filho acolheu um pássaro caçado pelo gato, uma rola, parece-me, na minha ignorância zoológica. Tapou-o com uma manta e aninhou-o dentro de uma caixa, onde o alimenta várias vezes ao dia. O animal tem um papo que só visto, e o meu filho está muito feliz.
domingo, 29 de abril de 2012
Marcas
Na mesa cabia sempre mais um, o que me fazia crer que as coisas do mundo têm um tamanho infinito, que só trava se quisermos, quando quisermos e onde quisermos, podendo até não parar nunca. Uma crente na importância do crescimento como eu, estabelece de imediato um paralelo entre estas e outras questões que me acompanham, porque as nossas capacidades são os nossos reflexos, as nossas pessoas, o tamanho de quem nos constrói. O sitio sempre foi velho, os bancos sempre foram coxos de perna, os talheres encardidos e tortos, os pratos rachados, os copos desemparelhados.Comia-se a galinha à qual se tinha cortado o pescoço na véspera, acompanhava-se com arroz regado a sangue e vinagre, e no final comia-se uma sopa feita na panela do lume, que fervilhava horas a fio e que a constituía num pitéu digno dos Deuses. Na cozinha como em tanto, costumo dizê-lo, um dos segredos está no tempo da feitura. Na sobremesa, e dependendo da época do ano, poderiam vir figos, nêsperas, morangos, ou então arroz doce, cozido em leite e polvilhado com canela que deixava uns riscos fortes que guarneciam o branco delicioso. Não sei porquê mas a vida encarregou-se de cortar a caminhada. A idade teima em levar os velhos que já não suportam o mundo, ainda menos do que o contrário, ou então não sei, serão ambas. A lei da vida talha percursos, redefine linhas, reorganiza estratégias, com mais ou menos pessoas, mas a quebra sente-se sempre. Com força, como se entrasse de estocada dentro dos corpos, que seguem, mas que reúnem no corpo a tradição do percurso, os legados das gentes, as marcas indeléveis do cheiro a violetas.
( As violetas estavam no canteiro ao pé da janela do quarto onde se rezava o terço. O cheiro entrava e inundava a pequena divisão, o que fazia com que eu gostasse muito daquele momento.)
( As violetas estavam no canteiro ao pé da janela do quarto onde se rezava o terço. O cheiro entrava e inundava a pequena divisão, o que fazia com que eu gostasse muito daquele momento.)
Ler
Anselmo Borges, analisa com uma enorme clareza questões de fundo. A ler, independentemente da crença religiosa.
sábado, 28 de abril de 2012
Dois
Lá em cima do palco batido pelas luzes que cintilam vindas da bola redonda que enfeita o tecto, um rapaz de caracóis loiros toca uma guitarra. Sentada na mesa mesmo à beira do palco uma rapariga magra olha-o com toda doçura do mundo a fugir-lhe dos olhos, enquanto no meio voavam plumas que mais ninguém via, mais ninguém sentia, mais ninguém percebia. Sei disso porque num ápice, e logo após escolher o visado, alojei-me dentro de um. Por acaso foi ele, aproveitei e matei a curiosidade já antiga, do lado inverso. Procurei um sitio tranquilo para me esconder mas não encontrei, o tronco encontrava-se aos solavancos, desassossegado, impregnado de um conjunto de sensações fortes e expressivas, mas ao mesmo tempo boas, muito boas. Após lhe dar a volta por dentro, lhe escorrer pelas veias, lhe cheirar o coração de mansinho, enquanto este me bombeava com força para lá e para cá, e de lhe povoar o cérebro onde me perdi demasiado tempo, resolvi arrumar-me nos olhos, julguei ser esse o melhor sítio para me permitir ver aqueles sentires longínquos, que julguei que não mais me passariam no corpo. Estava enganada. Enquanto as mãos acariciavam a guitarra angustiada, da boca saiam-lhe uns sons fortes mas ao mesmo tempo adocicados, inundados de um qualquer sonho que faz o mundo mudar de cor e ter aquela que sempre desejamos. Não importa bem qual é, é uma, que naquele dia pinta o mundo só para nós e para outro alguém, que é exactamente o alguém que nos falta para ficarmos completos. Não temos dúvidas, não admitimos questões, que levamos o mundo, as pessoas, a envolta na frente, se ousarem negar tal facto. A sala estava cheia, mas eu consigo jurar que ele não via isso, que apenas vislumbrava névoas, sombras turvas, banalidades envolventes que circundavam aquela que era a Pessoa. A Pessoa que entretanto olhava e murmurava baixinho a letra que ele cantava para ela, e enquanto isso sorria, por dentro, por fora, como se toda ela fosse sorrisos e ele os recolhesse um a um, por mais nada querer receber. A palavra perfeição, aquela longínqua, distante, utópica, que povoa os livros de contos infantis e as cabeças aos quinze, voltou a fazer-me todo o sentido, eu estava a vê-la, ali, mesmo à minha frente. De repente, e já inundada daquele estado de transe incutido pela minha afoiteza, tive uma vontade tremenda de ir mais longe. De o fazer largar a guitarra e junta-se a ela, ao som de uma qualquer música que alguém tocasse, enquanto os dois corpos dançariam colados, sozinhos, num mundo cheio de gente que não se via.
( A capacidade de não ver gente é talvez uma das maiores grandezas que perdemos quando crescemos.)
( A capacidade de não ver gente é talvez uma das maiores grandezas que perdemos quando crescemos.)
sexta-feira, 27 de abril de 2012
Música
No caminho ouço música. A música acompanha-me sempre, tem por hábito acolher-me nas notas, embrulhar-me em acordes, por vezes transportar-me aqui ou ali, a um qualquer sitio ou pessoa ida e por qualquer razão mais estimada. Existem algumas que me entram dentro do corpo e me fazem saltar de alegria, abanar-me, dançar sentada enquanto dirijo nas curvas estreitas, um excesso de demonstração de emoções que deveria guardar para outros recatos, e não distribuir de forma desregrada, perdulária, quase lânguida, pelas estradas, as árvores, os pássaros e outros seres vivos que encontro no caminho. Por esta hora por certo existirá gente que me julga desvairada, possuída por um qualquer ser demoníaco que me faz vir naqueles propósitos, ao som de diversos sons que nem vos conto, coisas antigas algumas delas, mas eternamente minhas. Existem outras que me sossegam ou até me entristecem, e que me fazem olhar o horizonte com uns olhos pequenos, brilhantes, chorosos. Uns olhos um tanto ou quanto estranhos, até porque não combinam com a vivacidade do meu rosto, devidamente ornamentada a cor trigueira, pintas castanhas e outras traquinices, algumas delas motivadoras de lutas severas, com vista a exterminação, que felizmente nunca consegui concretizar. De quando em vez ouço fado. Delicio-me sempre com os versos cantados com o fervor de uma alma, acutilados suavemente pelo som da guitarra portuguesa, uma mestre na arte de criar música. Também aí viajo no tempo. Não propriamente distante nas horas, nem tampouco no espaço, mas assustadoramente longínquo na vida.
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Constato, confesso que estupefacta, a continuidade de existência de concursos de beleza feminina. Alguns desenrolados em redes sociais, onde mulheres enviam fotos que serão posteriormente avaliadas por um júri que premiará a vencedora. Não simpatizo com eles. A beleza feminina é qualquer coisa de transcendente. Envolve um conjunto de elementos mais ou menos harmoniosos, muito além de uns olhos bonitos, umas ancas torneadas, uns seios fartos. Por muito que se possam considerar no âmbito da distracção ou do entretenimento, soam-me sempre a redutores.
quinta-feira, 26 de abril de 2012
Confissão
Confissão
"Escrever pode ser uma óptima desculpa para quem na vida não tem qualquer esperança. É uma maneira de preencher uma sombra e há momentos em que um beijo escrito vale por muitos.
É sempre a vida, é claro, mas com a distância limpíssima das palavras. E tudo sofre de uma insuficiência que a arte tenta reparar, e falha.
Espero que a esperança um dia venha e tudo isto não seja mais do que um exercício de gramática."
Pedro Paixão, in Nos Teus Braços Morreríamos
"Escrever pode ser uma óptima desculpa para quem na vida não tem qualquer esperança. É uma maneira de preencher uma sombra e há momentos em que um beijo escrito vale por muitos.
É sempre a vida, é claro, mas com a distância limpíssima das palavras. E tudo sofre de uma insuficiência que a arte tenta reparar, e falha.
Espero que a esperança um dia venha e tudo isto não seja mais do que um exercício de gramática."
Pedro Paixão, in Nos Teus Braços Morreríamos
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Tenho dias em que músicas tocam. Pequenos sons que me embalam o corpo e o despertam do cansaço das horas, da tibieza dos dias, da mornidão da vida. Quanto a isso, vejamos, deixo ao critério. De tudo e de nada, do estado de espírito, do que me aprouver no momento, e que pode emergir de um sopro do vento, de um grito do mundo, de um sussurro apagado. Se música houver que me leve, há-de bem me ter soado, sendo que nos meandros com toda a certeza cantaremos ambos, mesmo que no final do lírico, da valsa, ou até quiçá, do tango, e aí já dançado, cada um caia para um lado oposto, sem razão ou consequência. É a vida, e eu gosto dela tal e qual ela é.
( Não abusem, não tentem ler-me, compreender-me, explicar-me. Percam-se por vós e não por mim, que para mim chego. Na trama dos dias, não ambiciono chegar para mais ninguém.)
( Não abusem, não tentem ler-me, compreender-me, explicar-me. Percam-se por vós e não por mim, que para mim chego. Na trama dos dias, não ambiciono chegar para mais ninguém.)
Óscar
Óscar habita a minha casa e perturba-me o espírito. Foi ofertado a um pequeno ser que o adora de paixão, mas que já o teria deixado morrer de fome, não fosse a minha atenção diária de o polvilhar com uma comida colorida e mal cheirosa. Ontem perturbou-me particularmente. O pobre do bicho entrou numa qualquer espiral interna que o fez nadar em círculo, vezes sem conta, a uma velocidade alucinante. A perturbação que me causa nem é a sua existência, atenção. É pequeno, vermelho, de ar simpático e não tem bigode, coisa que dispenso nos peixes e em quase todo o lado, salvando uma ou outra excepção devidamente justificada. É o facto de o sentir preso num espaço redondo todo igual, onde deposito semanalmente cerca de dois litros de água limpa, enquanto o pobre esperneia na caixa ao lado, logo após ter sido pescado com uma rede verde. Uma aflição de meter dó. Tem alturas, em que se encosta numa ponta da sua pequena habitação, e quase parece que se lança intencionalmente para o lado oposto, numa vã tentativa de ganhar uma ambicionada liberdade que o mataria ( se calhar já vi disto mais vezes). A coisa ontem foi de tal ordem, que o pobre animal acompanhou-me noite fora. Numa ânsia desmedida saltou do aquário vezes sem conta, enquanto eu o tentava apanhar rapidamente a fim de o colocar novamente na água. O desespero da apanha era grande, mas nada comparado com o sentimento de impotência que sentia quando o danado saltava outra vez, e ficava estendido no chão até novo salvamento, abrindo e fechando a boca redondinha, tentando sorver o que não havia. Hoje espreitei-o e ele lá estava. Os meus sonhos não foram premonitórios, pelo menos por enquanto, coisa que me deixa deveras descansada. Exceptuando alguma noite simpática, uso salvar bicharada aflita, fugir de outra medonha, querer mexer-me sem conseguir, entre outros desarranjos diversos que me encontram frágil, entregue ao inconsciente, totalmente susceptível de ser encontrada.
quarta-feira, 25 de abril de 2012
Ainda da liberdade
Tenho dias, que a bem dizer nem é o caso de hoje, em que me deixo ir na opinião generalizada da envolta, no modelo, no mísero do estereótipo. Receio bem nem ser algo pensado. Acontece-me pouco, só quando por qualquer fraqueza me encosto em algum ombro mais forte(?) que por alguns momentos me colhe. Nessas alturas fico submersa, quero respirar e não consigo, como se qualquer coisa me prendesse o corpo e não me deixasse sorver o mundo à minha vontade. Esse encosto, que por vezes me é necessário, torna-se invariavelmente amargo, leva-me a isenção da liberdade, faz-me crer que o caminho é apenas aquele, como se a minha mente devesse ser regida por uma qualquer constituição construída por algum sabedor mor, capaz de ditar o que é certo e o que é errado. Nesses raros momentos de pena pesada, em que permito ao mundo que me prenda o espírito, sinto a calma resignada do incontestável, um sossego que não me permite grandes pensamentos, com as inerências que acarreta esse estado de ausência.
( Já houve tempos em que julgava que não fazia o que atrás refiro. Essa fase entretanto passou. Faço, preciso de retribuições de olhares harmónicos, todos precisamos de vez em quando. Mas sou muito mais feliz e plena quando não tenho necessidade deles.)
( Já houve tempos em que julgava que não fazia o que atrás refiro. Essa fase entretanto passou. Faço, preciso de retribuições de olhares harmónicos, todos precisamos de vez em quando. Mas sou muito mais feliz e plena quando não tenho necessidade deles.)
Mudanças
Não vimos feitos, moldados, nem sequer acredito que venhamos, eventualmente, predestinados. Todas elas me parecem limitadoras de crescimentos e de evoluções, castradoras de capacidades, que na possibilidade do avanço e do crescimento detemos sempre. Ela, uma amiga crescida, dizia-me ontem que não acredita na mudança dos Homens, está talvez desiludida, julgo eu que seja isso. Eu acredito. Acredito piamente e com todas as minhas forças que existem caminhos que poderão consertar-nos, permitir-nos que encontremos nos erros feitos um ensinamento para a vida, e vá lá saber-se o porquê, consigo muito bem tolerar ou até perdoar essas questões, mesmo que me tenham sido direccionadas. Não obstante poder ter algumas delas inacabadas, em vias de concertação, tenho muitas outras que eliminei do meu corpo, deixaram de me desassossegar ou de me causar sofrimento. Ainda ontem, por exemplo, e a olhar para alguém, senti mudança profunda. Nada daquelas coisas ditas da boca para fora, por saberem que é bom de se escutar, o que normalmente se traduz nuns ditos concebidos previamente, bonitos de se ouvir, e que esperam no final a aprovação envolvente. Não foi nada disso. Pressenti o sentir, o despoletar de realidades distintas, onde a rigidez que já foi doentia se atenuou e permite agora outros lugares. Não deixo de julgar caricato, sem daqui retirar qualquer tipo de conclusão ou ilação, a quantidade de vezes que encontro gente rígida, severa, quase obsoleta, de valores muito definidos e consistentes, com vontade de atenuar o que os manipula por dentro. Atribuo talvez aos valores, que por serem fortes e concretos, permitem perceber a grandeza da existência para além da futilidade, da inutilidade, da aparência. Gosto destas gentes que me aparecem e que depois me abandonam, relativamente rápido ou no tempo que tiver de ser, e que conseguem nos entretantos respirar e sentir, no meio das linhas direitas que lhes comandam a vida. É um privilégio conhecê-los.
(No dia em que eu deixar de acreditar em mudanças deixo de ser o que eu sou. Hoje, dia da liberdade, é um dia bom para falarmos delas.)
(No dia em que eu deixar de acreditar em mudanças deixo de ser o que eu sou. Hoje, dia da liberdade, é um dia bom para falarmos delas.)
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Existem coisas contra as quais nada podemos. A resignação aparece-nos pois submersa em revolta, uma contradição muito verdadeira esta. De nada nos adianta, mas faz parte do nosso mecanismo interno de organização. A morte é sempre qualquer coisa que nos transcende. A morte precoce transcende-nos mais, porque não a compreendemos. A sensatez revela-se na aceitação e na conquista de os termos tido tão perto, tão presentes, tão úteis, por vezes tão nossos. A sensatez é aquela coisa que nos foge do corpo, em momentos de tormenta maior.
terça-feira, 24 de abril de 2012
Luto
O DN diz que há cada vez mais crianças em luto. Uma perda que os adultos por vezes encastram dentro de um âmbito de repercussões futuras, ao nível do apoio, do sustento, da educação, deixando um pouco de lado a perca em si. Um erro crasso. O luto deles também acarta tristezas, choro, falta e saudade.
Dá-me algum sossego sentir que hoje se reflecte o tema. Se olha de frente, se encara, ao invés de fingirmos todos que não existe. É um avanço, e nestas questões os avanços merecem sempre um louvor maior.
Dá-me algum sossego sentir que hoje se reflecte o tema. Se olha de frente, se encara, ao invés de fingirmos todos que não existe. É um avanço, e nestas questões os avanços merecem sempre um louvor maior.
segunda-feira, 23 de abril de 2012
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Um dos maiores mistérios do mundo, encerramos todos cá dentro. Descubro muitos, ou melhor, recebo uns laivos, uns vestígios, mais ou menos verdadeiros, sem nunca conseguir chegar ao cerne. A curiosidade que me despertam nem sequer é coscuvilheira. Não faço qualquer uso dela, a não ser em causa própria, culpa que assumo sem qualquer tipo de limitação. Tenho dias em que não descubro nada, ocasiões fracas, mortiças, com pouco de útil no âmbito da novidade. Intercalo com outras prósperas, abastadas, grandes o suficiente para eu perceber que a trama da vida é algo de mágico, transcendente, impetuoso. É caprichosa a vida. Às vezes aflige-me depender tanto dela.
Zangas
Às vezes estamos naquele sítio exacto onde o corte se dá. Sabemos de antemão que é aquela a hora a partir da qual passamos a esperar atitudes, ao invés de darmos corpo a tudo. É uma hora muito estranha, dolorosa, diria até. O frequente torna-se inusitado, e o oposto também se verifica, o que nos exige sempre adaptação. Aguardamos. Reunimos sentires que vão da culpa ao cansaço, e voltamos a aguardar. Normalmente o caminho inverte-se, e é exactamente aí que fico mesmo muito zangada cá por dentro, sem deixar que percebam isso. Por norma nunca faço fitas, não me lembro de as ter feito alguma vez na minha vida. Fico zangada mas são coisas minhas, ninguém tem nada a ver com elas. Não deixa de ser uma zanga estranha. Um remexer miudinho que me sacode por dentro, que percebo como totalmente desproporcionado, tal a violência e a irrefutabilidade da ausência de consonâncias, entre nós e os outros.
Gato
Todos os dias passo por ele. Morreu há tempo, na berma da estrada de um caminho solitário, e até hoje ainda ninguém o agarrou, enterrou, deu um destino decente ao corpo que já foi um animal sadio. Ou julgo eu que tenha sido, apenas pelo viçoso do pêlo amarelo que ainda lhe povoava o dorso, no primeiro dia em que o vi. Eu própria já lhe poderia ter dado um destino, parado o carro, empurrado o pobre para o olival e tapá-lo com qualquer coisa que o afastasse da atenção do mundo, o resguardasse das intempéries, dos olhos de pena, dos carros que o salpicam com água suja e fria. Confesso porém que não realizo grande culto a corpos mortos. Respeito o inverso, como de resto, respeito tudo o que esta vida me tem trazido, mas de facto a matéria é coisa para, e depois de já vivida, me deixar apenas possuída por um qualquer sentir de respeito, um olhar pelo que foi e já não é. Fazem-me muito sentido corpos que vivem, que são donos de pulsares que lhe permitem a oxigenação das partes e que os fazem realizar coisas, sentir afectos, existirem na medida das vontades e das pulsões, sendo que aí o uso que lhe damos é qualquer coisa de sublime. Debruço-me sobre eles, dou-me com toda a benevolência que merecem, mesmo que se encontrem num ultimo suspiro, num respirar que se apaga devagar ou depressa, no desvanecer de um corpo que se encontra a viver o último minuto de existência, sem aversões, sem medos, sem limitações de nojo ou de repugnância. Mas logo depois fico em sossego. A não ser que me sejam previamente pedidos, não me ocorrem grandes cuidados, que já dispensei, que já prestei, enquanto aquele corpo se debatia pela vida que entretanto se apagou, se esvaiu, deixou de ser e de existir, e que agora precisa apenas do zelo de o retirar do mundo visível, por motivos de higiene e salubridade.
( O gato entretanto mirrou. O pêlo acalmou, deixou de ter brilho, o corpo a pouco e pouco desaparece, deixando transparecer a quem passa o quanto valemos vazios de vida.)
( O gato entretanto mirrou. O pêlo acalmou, deixou de ter brilho, o corpo a pouco e pouco desaparece, deixando transparecer a quem passa o quanto valemos vazios de vida.)
domingo, 22 de abril de 2012
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Ele pergunta-lhe ao longe o que é que ela quer dizer com aquilo. Não quer dizer nada, ela não quer dizer nada. Sente-se apertada, quase que lhe salta o corpo de dentro, escorrendo-lhe em forma de água pelos olhos que limpa depressa, ninguém pode vê-la naquele propósito. Respira muito fundo e conta devagarinho, tal e qual a ensinaram para um momento de concentração. Ele insiste, e ela ao ouvi-lo não consegue se não deixar-se ir. Não gosta destas sensações de impotência que experimenta por vezes. De quando se sente inundada de uma qualquer força que lhe rouba o arbítrio, a vontade, a firmeza, coisas que preza para além de muitas outras, consideradas por muitos. Naquele instante percebeu-se frágil, e apeteceu-lhe fugir dali. Esconder-se num local onde não fosse vista, nem ouvida, nem sentida, e onde pudesse de novo ganhar forças, retemperar ares, ganhar sustento. No carro que empurra uns pequenos olhos fixam-na como se esperassem dela o que ela não tem. Deveria ter lá dentro corpo, sangue, dedicação, coisas que procura, todas, todos os dias, mas que não encontra nem sabe porquê. Preciso de mim, diz-me baixinho, enquanto se limpa num lenço verde com cheiro a mentol. Preciso de me encontrar outra vez, o que vai ser de nós se nem me encontro?
( As percas podem constituir vazios de alma que nos habitam o corpo, e que percepcionamos como invasões estranhas de sentires que não são nossos. Ou melhor, que são nossos, mas que não queremos que sejam, e que tentamos a todo o custo expelir para fora. O desespero surge quando nos queremos libertar em vão. Quando uns olhos não nos acalentam, quando um sorriso não nos despoleta outro igual. Nessas alturas nasce-nos um aperto no peito que nos acarreta e que nos deixa presos a lugar nenhum, como se nada nos pertencesse, como se não pertencêssemos a ninguém. Não aprecio desesperos, ocupam o lugar cimeiro dos sentires que me metem medo. Deixam a quem o sente o ermo da desesperança, uma realidade fria, fétida, perigosa. )
( As percas podem constituir vazios de alma que nos habitam o corpo, e que percepcionamos como invasões estranhas de sentires que não são nossos. Ou melhor, que são nossos, mas que não queremos que sejam, e que tentamos a todo o custo expelir para fora. O desespero surge quando nos queremos libertar em vão. Quando uns olhos não nos acalentam, quando um sorriso não nos despoleta outro igual. Nessas alturas nasce-nos um aperto no peito que nos acarreta e que nos deixa presos a lugar nenhum, como se nada nos pertencesse, como se não pertencêssemos a ninguém. Não aprecio desesperos, ocupam o lugar cimeiro dos sentires que me metem medo. Deixam a quem o sente o ermo da desesperança, uma realidade fria, fétida, perigosa. )
Trasformações
Estou aliviada, tenho meios para combater a crise. Numa altura em que os Portugueses contam os tostões para a luz que lhes ilumina as noites, para o gasóleo que os leva ao trabalho, e ainda, nos casos mais graves, para o pão que lhes mata a fome, habituamo-nos a viver no vamos andando, e as terapias da mente são um tanto ou quanto secundárias. Até porque, e por leviandade de alguns clínicos, os psicofármacos são de fácil acesso e receitam-se sem grandes queixas ou dificuldades. Não durmo Senhor Doutor deve chegar para um ansiolítico, estou um bocado tristonha, é o quanto basta para um antidepressivo, e por aí fora, que o que não falta são queixas e remédios que as mascaram, mas que não curam, pelo menos por si só. Consomem-se cada vez mais, por falta de sensibilidade e de recursos técnicos disponíveis de acesso fácil, o que nos traz uma sociedade impregnada em pílulas coloridas que nos vestem a mente de sensações que não são nossas, para depois, quando despirmos definitivamente a fatiota, nos encontrarmos submergidos novamente no nosso mundo, nas nossas vestes, nos nossos sítios e nas nossas pessoas, incluindo a nossa, que também nos pertence, e que se encontra exactamente igual ao que sempre foi. Mas o motivo nem é dissertar os psicofármacos, já me perdi, perdoem-me lá este aferramento profissional. É sim a capacidade que encontrei em mim de pintar cabelos com escovas de dentes, coisa que executei na cabeça da minha querida irmã, antes loira, e agora morena. Está de gritos a garota, que foi pincelada delicadamente com o artefacto que tínhamos à disposição, em substituição do pincel desejado. Nunca pensei ter tal qualidade, valiosa, útil, eterna. Eterna talvez seja abuso, mas deve de ser quase. As cabeleireiras e outras do género, deverão ser sempre as últimas a sentir os efeitos da crise.
( Nada contra elas, atenção. Também fazem parte da nossa sanidade mental. Porque nos embelezam e ainda porque nos ouvem durante o processo. São umas queridas essas senhoras.)
( Nada contra elas, atenção. Também fazem parte da nossa sanidade mental. Porque nos embelezam e ainda porque nos ouvem durante o processo. São umas queridas essas senhoras.)
sábado, 21 de abril de 2012
Dos bons e dos maus ( Os assim assim, deverão ficar algures no meio)
Hoje ouvi falar de estabelecimentos educativos, de ensinamentos, de alunos. Já li também esta semana, uma possibilidade de se dividirem os maus dos bons, qualquer coisa como um apartheid dentro das escolas, aquele sítio onde as crianças deveriam aprender grandezas para além de números, letras, e raciocínios lógicos e infalíveis. Uma das coisas que se deve fomentar na escola, não digo aprender, por me parece que essa aprendizagem deve começar bem mais cedo, é que neste mundo, e muito embora não sejamos todos iguais, porque não nascemos todos em igualdade de condições e oportunidades, deveríamos sê-lo, e num mundo ideal seríamos. E sendo assim, e apesar de não passar de uma utopia, o respeito, a partilha e o intercâmbio, por serem excelências que tão depressa podem desaparecer, deveriam ser incentivadas até ao infinito, em pequenas coisas, todos os dias. E essas pequenas coisas podem ser coisas simples, como o sentarmos na carteira ao lado do menino que sabe a matéria um pouco melhor, o menino que sabe menos, porque a vida, as circunstância, as desigualdades e as injustiças assim o quiseram. Até porque nós enquanto seres humanos, temos um poder grande dentro do corpo, e esse poder chama-se vontade. E se a nossa vontade for contribuir, quem sabe um dia esse menino não vai ter uma vida um pouco mais fácil, ao invés de uma vida que o junta com outros meninos que sabem menos, e que todos juntos podem formar desde cedo uma associação de meninos, que não chegam ao patamar exigido pelo ensino e pela sociedade. Até porque este ensino não é um ensino qualquer. É um ensino que se quer eficiente e competente, mas onde o que se sente, o que se vive e o que se pode partilhar, ou até sofrer, não interessa nada porque não vem devidamente contemplado nos objectivos que a criança deverá atingir ao final do ano. Pode até nem alcançar mais nada, que se conseguir parametrizar o que aprendeu é mais do que suficiente, nem que lhe faltem outras coisas, diversas coisas, inúmeras coisas, que se calhar estão reunidas nos outros meninos que estão sentados à parte, numa outra sala, a esforçarem-se por aprender a juntar o B com o A. E é nesta sociedade que eu vivo e educo o meu filho, onde se consideram hipóteses de segregação que não deveriam sequer ser imaginadas, quanto mais faladas e discutidas, como se constituíssem uma solução para um problema abrangente que se queria analisado de forma ponderada e decente, e não com bitates deitados ao ar por gente que se parametrizou em tempos, mas que se esqueceu de crescer de outra forma.
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Tenho dias, em que num excessivo abuso, me apetece entrar dentro de alguém para além do razoável. Nesses dias consciencializo perfeitamente as minhas fraquezas, a grandeza da individualidade humana, e normalmente no final de tudo entro num estado tranquilo, pela nossa natureza. Não somos perfeitos, longe disso. Mas reunimos essências fundamentais para que possamos ser nós e mais ninguém. A poder, a ser-me permitido, invadiria certos espaços onde atenuaria as dores, lamberia as feridas, apaziguaria o sofrimento. No fundo apoderava-me do que não é meu, impediria evoluções, roubaria à descarada um crescer que não me pertence.
( Cada vez mais encontro perfeições encarnadas no nosso funcionamento. Perfeições essas que questionamos, que contestamos, que eliminaríamos num momento de fúria maior, para logo depois nos tornarmos insignificantes.)
( Cada vez mais encontro perfeições encarnadas no nosso funcionamento. Perfeições essas que questionamos, que contestamos, que eliminaríamos num momento de fúria maior, para logo depois nos tornarmos insignificantes.)
sexta-feira, 20 de abril de 2012
Símbolos
O símbolo surge-nos em contacto. Ganhamos cá dentro categorias, enfiamos lá com os sentires e apreciamos muito que o nosso símbolo seja partilhado. Damos significado às coisas, o que diga-se, é muito mais interessante a dois do que a um. É mais agradável um céu azul visto a dois do que um céu azul visto a um, por exemplo. Se visto a dois, poderemos dizer, -Olha, vês, o céu é azul e está lindo, não achas? - Acho. Pode ser a partir de hoje o nosso céu... E ficamos a partilhar uma coisa, porque a partir daquele dia o céu azul é nosso. Se estivermos sozinhos, vimos o céu azul e ficamos por ali. É bonito mas não é de ambos, é só de nós próprios, o que o transforma num céu azul banal, igual ao céu azul dos outros dias, que pode até passar despercebido, a não ser, claro, que simbolize algo especial só para nós.
( E isto poderá dar-se com outras cores, outros céus. Outros sentires, outras pertenças, outras sensações. O símbolo mental que construímos dentro é uma das grandezas da nossa existência. Permite-nos a complementaridade, a cumplicidade, um coração que conhece mesmo sem ver e que escuta sem ouvir. )
( E isto poderá dar-se com outras cores, outros céus. Outros sentires, outras pertenças, outras sensações. O símbolo mental que construímos dentro é uma das grandezas da nossa existência. Permite-nos a complementaridade, a cumplicidade, um coração que conhece mesmo sem ver e que escuta sem ouvir. )
quinta-feira, 19 de abril de 2012
Clarezas em olhos pequenos
- Mãe, está a chover.
- Pois está filho.
- Pois, e eu não percebo as pessoas...
- O que é que não percebes?
- Porque é que andava tudo a pedir chuva, e hoje toda a gente ralhava por estar a chover...
( Ele não percebe, mas eu entretanto, com a idade, já percebi.)
- Pois está filho.
- Pois, e eu não percebo as pessoas...
- O que é que não percebes?
- Porque é que andava tudo a pedir chuva, e hoje toda a gente ralhava por estar a chover...
( Ele não percebe, mas eu entretanto, com a idade, já percebi.)
Amigos
Nunca gostei muito de amizades obrigatórias, daquelas que têm direito a telefonemas marcados, satisfações frequentes, conversas regulares de frequência diária, e a um rigor inflexível, quase severo, como se a minha vida fosse pautada por aquela existência que me exige. A mim, e salvo uma ou outra excepção de carácter devidamente justificado, ninguém me costuma exigir coisa alguma, não me ordenam o que faço ou com quem o faço, nem me cobram justificações que não devo. E tenho amigos, obrigado, não se aquietem. Daqueles que encontro quando posso, quando quero, quando eu ou eles precisam, ou sempre que se justifique, e que pode ser de dia, de noite, ao perto ou ao longe, sendo aí que as conversas rondam algo mais do que o básico e o quotidiano, e onde o jantar da véspera, a companhia e o local escolhido, nunca serão um problema, nem tampouco o facto de não terem sido convidados. Estamos em crise, somos gente, e a sociedade está próxima do caos. Evitávamos a parasitação de uma das grandezas do universo, imune a políticas, a questões financeiras, a lóbis e outro tipo de manipulações.
( A não ser, claro, a contaminação interna oriunda de algumas personalidades, que ao invés de serem, vivem por crença, empréstimo, posse, ambição ou interesse. Uma coisa feia, nada nobre, e principalmente pouco amiga.)
( A não ser, claro, a contaminação interna oriunda de algumas personalidades, que ao invés de serem, vivem por crença, empréstimo, posse, ambição ou interesse. Uma coisa feia, nada nobre, e principalmente pouco amiga.)
Mundos diversos
O mundo pode ter diversos tamanhos. Descobri isso há muito, ainda pequena, ao ouvir histórias contadas por minha avó acerca do meu bisavô, um dos que não conheci. O meu bisavô vivia num mundo grande, e eu ambicionava conseguir um igual, onde a sapiência me crescesse a pulso, fruto da conquista. Com o tempo fui descobrindo que os mundos têm tamanhos ainda muito mais diversificados, havendo mundos circunscritos e mundo mais amplos, e que essa dimensionalidade pode nem ter a ver com factores externos, mas sim com a capacidade interna de nos darmos ao mundo, e de receber o que ele nos pode oferecer. A mesma pessoa, e num outro ponto de vista, pode ser detentora de vários mundos vida a fora, havendo épocas em que o espaço terrestre parece pertencer-lhe, ou no mínimo, ser-lhe alcançável, às quais se intercalam outras, em que o interior reduzido, preocupado, amargurado, pode traduzir-se numa existência pequena, mirrada, quase inexistente, dando a crer a quem a sente, que afinal este sítio grande, imenso e povoado, é um local energúmeno do qual é necessário fugir, para um refúgio interno e profundo, onde nos escondemos. Até que passe, e o mundo abra outra vez.
quarta-feira, 18 de abril de 2012
Publicidade
Não simpatizo muito com publicidades que me entram pela vista dentro, quando abro outro site que nada tem a ver com aquilo. No cantinho disfarçadas ainda vá, agora engolirem-me o ecrã num só clic, evitava-se.
...
Breivik é um assunto muito sério. Não ouso catalogá-lo do que quer que seja, não possuo meios suficientes para poder fazê-lo. Que se encontra em estado de doença, julgo ser assunto que não carece de discussão. Está doente, profundamente doente, com um equivoco interno relativo às responsabilidades que o cá trazem, crendo que o dever de repor alguma ordem no mundo, ordem essa, dele e talvez de mais ninguém, lhe pertence. Tratará provavelmente, mas sem certeza, uma mente de estrutura psicopática, em estado de séria descompensação, sendo o sentimento predominante a injustiça da envolta, perante um Eu inacabado, perdido no processo de evolução. Neste patamar psicológico é frequente a necessidade extrema de consertar o redor, repor a justiça, uma vez que são mentes que ainda se encontram inseridas dentro de si, o suficiente para julgarem que a lucidez lhes pertence, e tudo o resto é um mundo sem razão e sem sentires.
O que fazer nestes casos poderá ser um assunto delicado, que carece de análises profundas ao indivíduo com vista a uma punição efectiva pelo crime praticado, mantendo o respeito pela doença, em caso de existência da mesma. De qualquer forma, permitam-me umas questões, daquelas que gosto de lançar por resposta não encontrar, e apenas para que se reflicta sobre elas. Em caso de crime, não estará o criminoso permanentemente em estado de loucura, nem que seja temporária, que lhe permite infligir sofrimentos, em casos de violações, assassinatos, torturas de carácter diverso? Alguém num estado de salubridade mental, ousa matar outro alguém, sem que a mente esteja a passar por algum estado de desequilíbrio considerável?
Não creio, não posso crer, até porque para mim, e mesmo o que se poderá chamar de pura maldade, vem indexado a alguns outros processos mentais próprios e doentios, que carecem de intervenção e investimento.
Numa outra abordagem e concretizando um pouco a minha opinião sobre o assunto, parece-me que a intervenção psiquiátrica seria pertinente em muitos dos casos que chegam aos tribunais. Que o acompanhamento individual e consistente poderia trazer-nos frutos a médio, longo prazo. Parece-me ainda que estas pessoas têm de ser retiradas da sociedade, independentemente do sítio escolhido para as colocar.
Temo porém, e sei ser possível, aqui como em tantos outros crimes, o encarceramento colectivo ou individual, em estruturas que mais não fazem do que destruir o pouco que ainda existe, sendo que daqui a 21 anos, poderemos encontrar Breivik, numa esquina, continuando coberto de razão, vivendo num mundo que é pouco mais do que seu, e onde todos somos invasores.
O que fazer nestes casos poderá ser um assunto delicado, que carece de análises profundas ao indivíduo com vista a uma punição efectiva pelo crime praticado, mantendo o respeito pela doença, em caso de existência da mesma. De qualquer forma, permitam-me umas questões, daquelas que gosto de lançar por resposta não encontrar, e apenas para que se reflicta sobre elas. Em caso de crime, não estará o criminoso permanentemente em estado de loucura, nem que seja temporária, que lhe permite infligir sofrimentos, em casos de violações, assassinatos, torturas de carácter diverso? Alguém num estado de salubridade mental, ousa matar outro alguém, sem que a mente esteja a passar por algum estado de desequilíbrio considerável?
Não creio, não posso crer, até porque para mim, e mesmo o que se poderá chamar de pura maldade, vem indexado a alguns outros processos mentais próprios e doentios, que carecem de intervenção e investimento.
Numa outra abordagem e concretizando um pouco a minha opinião sobre o assunto, parece-me que a intervenção psiquiátrica seria pertinente em muitos dos casos que chegam aos tribunais. Que o acompanhamento individual e consistente poderia trazer-nos frutos a médio, longo prazo. Parece-me ainda que estas pessoas têm de ser retiradas da sociedade, independentemente do sítio escolhido para as colocar.
Temo porém, e sei ser possível, aqui como em tantos outros crimes, o encarceramento colectivo ou individual, em estruturas que mais não fazem do que destruir o pouco que ainda existe, sendo que daqui a 21 anos, poderemos encontrar Breivik, numa esquina, continuando coberto de razão, vivendo num mundo que é pouco mais do que seu, e onde todos somos invasores.
terça-feira, 17 de abril de 2012
...
Saltar etapas à custa de engenhos, é provavelmente das maiores atrocidades que fazemos ao nosso corpo. Nada poderá ser melhor que o caminho, que o depois a seguir ao antes, que o apego após o conhecimento, que a vitória da luta, ou ainda que o sossego, depois de um estirão. A impaciência e a pressa, surgem-nos assim como inimigas a combater, dado que nos engolem a envolvência, as circunstâncias, os carreiros, e tudo o que nos poderá trazer o sabor do triunfo.
( Existe quem fique feliz com elas. Deve é de ser uma felicidade amarelada, meio clandestina, das que se mostram para fora, mas que se procuram por dentro, sem nunca serem encontradas.)
( Existe quem fique feliz com elas. Deve é de ser uma felicidade amarelada, meio clandestina, das que se mostram para fora, mas que se procuram por dentro, sem nunca serem encontradas.)
Vamos num pé, e vimos no outro
Outro dia saiu-me da boca de rompante, vinda de dentro da minha caixa esquecida que de vez em quanto abre os olhos ao mundo, emerge de cá de dentro, e sai-se com coisas do género. Anda, despacha-te, digo-lhe. Vamos num pé e vimos no outro, perante a insistência de ficarmos em casa, sem pão, sem notícias em papel, sem o sol do dia que me faz uma falta imensa ao fim de semana. O sacanita olhou-me de lado, com um ar intrigado, e pergunta-me o que raio era aquilo, de ir num pé e vir no outro, se para irmos e virmos precisaríamos dos dois. Sorri-lhe, expliquei-lhe, e relembrei alguns outros ditos de outrora. Fazem parte de mim os ditos de outrora, os hábitos vividos na minha meninice, enquanto pedalava numa BMX encarnada ofertada pelo meu pai. Vais prá moina, diziam-me Arnaldo, um sapateiro que passava horas do dia na paragem da carreira que levava as gentes para Alcanena, aos dias de mercado, ou para qualquer outro sítio, não muitos, que os percursos possíveis eram escassos e próximos. Os Olhos D'água, por exemplo, seriam um deles, quando o calor se acendia e o rio se enchia de gente, que nadava nas águas geladas que brotavam da serra, no meio dos peixes, do lodo, das pedras e do lixo que boiava. Arnaldo já não remenda sapatos, soube há pouco, cansou-se disso, e agora passa ainda mais horas do dia dentro da paragem onde já não param carreiras e onde já não sobem e descem pessoas. Resta-lhe o sítio. Colocou-se lá um banco de madeira fixo, para substituir o outro já carunchoso, e a casinha de metal rectangular serve agora de albergue, do vento, da chuva, do sol, depende, sendo ali que os velhos da aldeia se juntam, enquanto o tempo passa, devagarinho, tal e qual como se não existisse.
( Qualquer dia, um em que me apodere de algum do tempo que lhes sobra, ainda lhes vou passar à frente, vinda da casa de Dona Carmina, em direcção à loja de Alice. Cá por dentro irei repetindo baixinho, três papo-secos e um saco de arroz, três papo-secos e um saco de arroz, três papo-secos e um saco de arroz...)
( Qualquer dia, um em que me apodere de algum do tempo que lhes sobra, ainda lhes vou passar à frente, vinda da casa de Dona Carmina, em direcção à loja de Alice. Cá por dentro irei repetindo baixinho, três papo-secos e um saco de arroz, três papo-secos e um saco de arroz, três papo-secos e um saco de arroz...)
segunda-feira, 16 de abril de 2012
Amanhã, à mesma hora
Sentou-se e de olhos esbugalhados e iniciou-me um discurso muito concreto, com cada palavra colocada no local exacto onde deveria estar. Gosto destes discursos, traduzem-me um interior pensado, reflectido, e não um qualquer ajuntamento de ideias amachucadas umas nas outras, emaranhadas e misturadas, sem que eu saiba muito bem por onde começar. Quando encontro dessas, ando às cegas. Entro com jeito e à defensiva, ora aqui, ora ali, e muitas das vezes quando dou por mim, já nem sei onde me encontro. Perdi-me também, num terreno bravio e não raras vezes pantanoso, que me obriga a uma ginástica considerável, além ofício. Relembro então Carl Jung, que afirmava a importância da alma, muito para além da técnica. O sermos nós antes de sermos qualquer outra coisa, o que nos permite, e quando interacção com outro ser humano, uma proximidade mais efectiva, que por outro lado nos exige empenho para além do razoável. Ela, pelo contrário, sabia exactamente o que dizer-me. O assunto, delicado, envolvia cortes no corpo, uma doença que resolveu assombrá-la, mas contra a qual já delineou um plano perfeito. Os médicos tentaram cercá-la, retorcer-lhe as voltas, cortar-lhe mais um pouco como margem de segurança, coisa que prontamente recusou. Se o mal estava ali, não admitia cortar a envolta, a não ser que lhe provassem por A mais B, que a envolta também estaria doente, coisa que ninguém conseguiu fazer. Sendo assim, quem manda é ela, e ela não quer que se corte. Quem a olha de fora, não a imagina zelosa do corpo a esse extremo, mas quem a escuta, depressa percebe que o cerne não lhe está no corpo, mas sim na alma. É nela que também não admite que toquem, iriam além da sua vontade.O bocado ambicionado pela médica oncologista, pertence-lhe, e não há-de engrossar as margens de segurança pelas quais os médicos se regem, por uma questão de estatística. Mais ou menos a meio, começo a recear que a obstinação dela a pudesse levar até algum local de difícil retorno, mas ainda assim, percebi que o caminho era aquele. Lá em casa, entre não e sins, resolveram apoiá-la.
Entretanto passou o tempo. Entra outra vez e aquilo parece que já passou. Não me olha com olhos de vitoriosa, coisa que por certo eu faria no lugar dela. Gosto de ter razão, é uma coisa já longínqua, quiçá a precisar de divã. Olha-me antes com um olhar tranquilo e de apreço supremo por toda a gente que a respeitou. A ter seguido o impulso da equipa, hoje não estaria inteira. Nem por fora, nem por dentro, junções estas demasiado perigosas e limitadoras da capacidade de continuarmos a viver sem medo.
(Não sou a favor nem contra. Talvez também tenha tido sorte, que de resto é o que todos temos de ter, todos os dias, quando saímos de casa pela manhã, e por ai fora até chegarmos ao outro dia, exactamente à mesma hora.)
Entretanto passou o tempo. Entra outra vez e aquilo parece que já passou. Não me olha com olhos de vitoriosa, coisa que por certo eu faria no lugar dela. Gosto de ter razão, é uma coisa já longínqua, quiçá a precisar de divã. Olha-me antes com um olhar tranquilo e de apreço supremo por toda a gente que a respeitou. A ter seguido o impulso da equipa, hoje não estaria inteira. Nem por fora, nem por dentro, junções estas demasiado perigosas e limitadoras da capacidade de continuarmos a viver sem medo.
(Não sou a favor nem contra. Talvez também tenha tido sorte, que de resto é o que todos temos de ter, todos os dias, quando saímos de casa pela manhã, e por ai fora até chegarmos ao outro dia, exactamente à mesma hora.)
Interesses e Facebook
O café da manhã, que não é o da RFM, mas sim o meu, toma-se normalmente no mesmo sítio. Fica ali mesmo ao lado do Banco, do quiosque da Dona Rosa, de um sítio onde o meu carro fica sempre estacionado, quase parece que o lugar me pertence. Não pertence, eu sei, mas é quase como se pertencesse, de tantas as vezes que o ocupo, tal e qual ele fosse meu. Nas mesas onde se sentam as mulheres que têm tempo, conversa-se muitas coisas de extremo interesse, às quais deito um ouvido curioso, preciso de distrair a mente da noite que se mostrou turbulenta. Numa delas oiço uma critica comum, gira por sinal, Os homens pensam que nos compram com carros e casas. Postam isto tudo no facebook, e ficam assim à espera. A mim não me compram eles.
( Gosto muito destas visões. Acho-as mais ou menos parecidas com, e no lado totalmente oposto, as fotos que lá encontro de senhoras em biquíni, ou de cara meio para o lado e com uma expressão muito sexy. Ou ainda com decotes verdadeiramente generosos, saias inexistentes, ou pijaminhas marotos, legendadas com frases do género, Domingo na praia. Ou então, Euzinha, no sofá da minha casa, deitadinha ao lado do gato Tareco. E acho de particular interesse todo este palavreado terminado em inha, completamente contrastante com a imponência das grandes casas, dos grandes carros e dos grandes ombros. Afinal vai-se a ver e isto complementa-se tudo. )
( Gosto muito destas visões. Acho-as mais ou menos parecidas com, e no lado totalmente oposto, as fotos que lá encontro de senhoras em biquíni, ou de cara meio para o lado e com uma expressão muito sexy. Ou ainda com decotes verdadeiramente generosos, saias inexistentes, ou pijaminhas marotos, legendadas com frases do género, Domingo na praia. Ou então, Euzinha, no sofá da minha casa, deitadinha ao lado do gato Tareco. E acho de particular interesse todo este palavreado terminado em inha, completamente contrastante com a imponência das grandes casas, dos grandes carros e dos grandes ombros. Afinal vai-se a ver e isto complementa-se tudo. )
domingo, 15 de abril de 2012
Questões
Passeava pela floresta há já algumas horas. Acredita que aquela imagem lhe advém de uma outra vida, já passada, um dos muitos quadros que lhe povoam a mente. Este, pintura, retrato, filme, talvez, pelo desenrolar de acção, repleto de significado, acorda no seu corpo muitas vezes, enquanto ela dorme, sob a forma de um sonho estranho e sombrio que lhe desassossega a existência, e que depois a acompanha, dia a fora, e por muito que o tente expulsar do seu corpo. Aconchega-se, encontra onde ficar, e lateja-lhe por dentro de uma forma acesa e desconcertante, coisa que a faz abanicar-se com força, mas sempre em vão, que por muito que o tente, nunca o conseguiu expelir definitivamente. Debaixo de uma árvore um animal selvagem devora um homem. Devagarinho, enquanto o pobre esbraceja, ao mesmo tempo que se vai contorcendo com dores. Ela fica aflita, desconfortável, e corre em auxílio. Espanta-se porém quando é repelida. Quando o homem, repleto de dor e de sofrimento, lhe diz baixinho que se vá embora, por ter sido aquele o destino que escolheu para si. O que sentes, diz-lhe, não são as dores que me consomem o corpo. O que te desassossega, prossegue, não são as ânsias que experimento. O que te move, diz ainda, são os teus olhos que me olham e que se julgam no direito de sentirem o que eu sinto. Ela, aterrorizada, deu meia volta e fugiu.
Poderia agora contar-me um dos bons, penso, e chego a dizer. Tem colectâneas de sonhos completíssimas e de elevado interesse no que toca a experiências de lazer e de plenitude, coisas que possivelmente o seu corpo já experimentou, mas diz-me que têm de ficar para outro dia. Fico desgostosa, logo após o sonho do Homem que é devorado, e que ainda para mais o quer ser, precisava de algo mais simpático, qualquer coisa servia, não sou muito exigente. Mas não. Hoje precisa de discutir comigo o que lhe dá aquela miragem. Desde que a encontra dentro de si noites fio, que se interroga sobre as capacidades altruístas do Homem, que em tempos chegou a julgar algo imaculado, mas que agora a faz pensar. Serão antes os meus olhos que precisam de quietação, antes da dor do outro, que eu nem sei verdadeiramente o que é? De resto, o que nos dota de capacidades para sentir o que não nos pertence? O que nos coloca capazes de viver vidas alheias, vitórias externas? O que nos faz querer vivê-las, se não os nossos olhos, profundos intrusos que se expandem a tudo o que é significativo para nós, ou que julgamos que seja? E não será então o nosso Eu o cerne de tudo? Agora outra vertente, diz-me. E que direito tenho eu, e nos meus dias, obviamente recheados de gente que sofre, não em tão dramática escala, mas em outras, de opinar sobre esses sofrimentos, as más escolhas, as opções erradas, os caminhos obscuros? Porque me devo julgar magnânima, ao ponto de orientar o outro, à luz dos meus próprios olhos? Não seremos nós, ou não deveríamos ser, seres individuais, antes de sermos seres sociais?
( Existem diversas perguntas para as quais não tenho resposta. Existem outras, claras como a água. Não me importa lá muito de onde lhe vem o sonho. Se de vidas passadas, se de um inconsciente irrequieto. Agradam-me estas dúvidas sublimes, estas perguntas vindas de um corpo desengonçado mas muito inteiro, completamente capaz de se analisar em cada recanto, desde a ponta do cabelo, ao desvio do peito, passando, devagar e com cuidado, na soberania da vontade.)
Poderia agora contar-me um dos bons, penso, e chego a dizer. Tem colectâneas de sonhos completíssimas e de elevado interesse no que toca a experiências de lazer e de plenitude, coisas que possivelmente o seu corpo já experimentou, mas diz-me que têm de ficar para outro dia. Fico desgostosa, logo após o sonho do Homem que é devorado, e que ainda para mais o quer ser, precisava de algo mais simpático, qualquer coisa servia, não sou muito exigente. Mas não. Hoje precisa de discutir comigo o que lhe dá aquela miragem. Desde que a encontra dentro de si noites fio, que se interroga sobre as capacidades altruístas do Homem, que em tempos chegou a julgar algo imaculado, mas que agora a faz pensar. Serão antes os meus olhos que precisam de quietação, antes da dor do outro, que eu nem sei verdadeiramente o que é? De resto, o que nos dota de capacidades para sentir o que não nos pertence? O que nos coloca capazes de viver vidas alheias, vitórias externas? O que nos faz querer vivê-las, se não os nossos olhos, profundos intrusos que se expandem a tudo o que é significativo para nós, ou que julgamos que seja? E não será então o nosso Eu o cerne de tudo? Agora outra vertente, diz-me. E que direito tenho eu, e nos meus dias, obviamente recheados de gente que sofre, não em tão dramática escala, mas em outras, de opinar sobre esses sofrimentos, as más escolhas, as opções erradas, os caminhos obscuros? Porque me devo julgar magnânima, ao ponto de orientar o outro, à luz dos meus próprios olhos? Não seremos nós, ou não deveríamos ser, seres individuais, antes de sermos seres sociais?
( Existem diversas perguntas para as quais não tenho resposta. Existem outras, claras como a água. Não me importa lá muito de onde lhe vem o sonho. Se de vidas passadas, se de um inconsciente irrequieto. Agradam-me estas dúvidas sublimes, estas perguntas vindas de um corpo desengonçado mas muito inteiro, completamente capaz de se analisar em cada recanto, desde a ponta do cabelo, ao desvio do peito, passando, devagar e com cuidado, na soberania da vontade.)
sexta-feira, 13 de abril de 2012
Justina
Chama-se Justina e tem um corpo já velho, amargurado pelo tempo que passou. O tempo é algo que nos consome e nos vai esmagando devagarinho, o corpo, a esperança, o caminho, que parece encurtar a cada dia que passa, deixando-nos por vezes cansados, esmorecidos, mortiços. É particular este efeito do tempo, que se sente de forma distinta de pessoa para pessoa, totalmente dependente da estrutura mental em que a mesma se encontra. É frequente encontrarmos pessoas estruturalmente muito bem organizadas que o encaram como um percurso, deixando na margem do irrisório o quanto tempo ainda terão para caminhar. Por outro lado encontramos outras, menos crentes, mais pragmáticas, que se debruçam na quantidade de anos que lhe faltam para viverem o que planearam, podendo a quantidade ser ou não suficiente para o que ainda pretendem fazer. Temos ainda algumas mentes pouco preocupadas, que vivem ao sabor do dia, e que não pensam sequer no que lhes resta. Justina pensa. Sente que a cada dia lhe roubam outro, mais ou menos assim, como se caminhasse devagarinho para o fim de um corpo que sempre cuidou com esmero, e que agora se apaga e se engelha, comido fora de horas ainda ao cimo da terra, por uns bichos idênticos aos que terminarão a tarefa, daqui a a algum tempo, debaixo do chão. Não gosta da sensação, mas diz-me entre dentes que não suportaria ter de arder. Imagina-se ainda muito viva, a espernear dentro da caixa que derrete rapidamente dentro do forno, enquanto cá fora meia dúzia de corpos choram umas lágrimas secas que não consegue ver, talvez seja da aflição do fogo. E para além disso, diz-me ainda, precisa de levar com ela meia dúzia de relíquias guardadas no tempo com um cuidado primoroso, e que constam em dois Rosários benzidos em Roma, que irá rezar todos os dias e enquanto a existência não lhe desaparecer completamente, um terço ofertado por sua mãe que Deus tem, a sua aliança de casamento, e ainda a do seu finado marido, que sempre lhe ornamentou o dedo indicador, único do qual não lhe caía nas águas do tanque, nos ares dos campos, na cozedura do pão.
Para além destas vontades, pede-me em segredo dois Trintários Gregorianos, que deverão ser rezados em Fátima, e que lhe darão o tempo suficiente para que desapareça guardada pela palavra do senhor, enquanto a seu lado permanecerão para todo o sempre os valores da sua vida, que lhe permitirão por certo a eternidade. Não fala da roupa que levará vestida. Não lhe importa isso, qualquer uma lhe serve desde que seja composta. Importa-lhe apenas que no final da morte, lhe levem tudo daqui para fora. Não descansaria tranquila se soubesse que o seu melhor casaco comprido, adornado com a pregadeira brilhante em forma de folha, andaria a passear-se no corpo de Arminda, por exemplo, embeiçada por ele desde sempre, e que por certo o usurparia em caso de distribuição.
( Cumpro sempre estas vontades. Quero que descansem, que rezem em paz, que desapareçam tal e qual ambicionaram e na companhia que escolheram. )
Para além destas vontades, pede-me em segredo dois Trintários Gregorianos, que deverão ser rezados em Fátima, e que lhe darão o tempo suficiente para que desapareça guardada pela palavra do senhor, enquanto a seu lado permanecerão para todo o sempre os valores da sua vida, que lhe permitirão por certo a eternidade. Não fala da roupa que levará vestida. Não lhe importa isso, qualquer uma lhe serve desde que seja composta. Importa-lhe apenas que no final da morte, lhe levem tudo daqui para fora. Não descansaria tranquila se soubesse que o seu melhor casaco comprido, adornado com a pregadeira brilhante em forma de folha, andaria a passear-se no corpo de Arminda, por exemplo, embeiçada por ele desde sempre, e que por certo o usurparia em caso de distribuição.
( Cumpro sempre estas vontades. Quero que descansem, que rezem em paz, que desapareçam tal e qual ambicionaram e na companhia que escolheram. )
quinta-feira, 12 de abril de 2012
...
Passeia-se ali no jardim, levando com o vento nos olhos. Abanica, reza de mãos viradas ao alto, e sorve o ar de boca aberta, alimentando o corpo definhado que incha como um balão, não por debaixo da pele, mas por debaixo da roupa. Está feliz, consigo perceber isso. Dizem por aqui que é louco, mas eu não partilho da ideia. Tem uma vida própria, um interior estranho, que não tem de ser loucura. Loucura é uma desadaptação do mundo ao próprio, ou então o inverso. Para quando existem estas sintonias com o redor, que nele encontro agora como em tantas outras vezes, deveríamos arranjar outro nome que apelidasse a diferença. Não que seja propriamente preciso, mas é comum baptizarmos as coisas, precisamos disso, faz-nos uma falta indefinível.
Livros
Emprestaram-me um livro. Não aprecio livros emprestados, gosto de livros meus, para eu poder rabiscar, devorar, apoderar-me de cada palavra e cuspir cá para fora o que eu quiser, sem que o rabisco possa ofender alguém que seja possuidor da obra, e que obviamente não aprecia os meus desaires. Expando-me muito quando absorvo palavras, é um vicio de rica, que hoje em dia não se podem comprar livros ao sabor da vontade, sendo que o empréstimo é qualquer coisa que já faz parte do meu dia a dia. Experimento entretanto expandir-me num caderno, uma obra prima que comprei na fnac com outros propósitos que não foram cumpridos, e que tem uma gata horrorosa vestida de juíza. Uma aberração, tal e qual grande parte do que lá vai dentro.
( Todos os alunos deveriam, e a partir de muito cedo, ser incentivados a escrever quando lêem. Nada de resumos, mas sim expulsões. Deitarem cá para fora o que lhes apetece, enquanto sorvem palavras sábias escritas por Eça, Saramago, Agustina, ou outros com carácter mais precoce. Um exercício de auto análise importantíssimo e barato, junção esta muito rara, quase que inexistente, e extremamente desaproveitada.)
( Todos os alunos deveriam, e a partir de muito cedo, ser incentivados a escrever quando lêem. Nada de resumos, mas sim expulsões. Deitarem cá para fora o que lhes apetece, enquanto sorvem palavras sábias escritas por Eça, Saramago, Agustina, ou outros com carácter mais precoce. Um exercício de auto análise importantíssimo e barato, junção esta muito rara, quase que inexistente, e extremamente desaproveitada.)
Idades
A adolescência é uma altura da vida muito própria, com inerências específicas e difíceis de lidar. Gostei da minha, gosto de sentir a esperança da que vou encontrando no caminho, e que crê com uma crença ainda forte no seu próprio poder e na evolução do mundo ao sabor da vontade. Acho, acima de tudo, que é esta uma das forças que nos impulsiona, e que não deixa a vida estancar ao abrigo da asserção da adultez, precisa, claro, mas limitadora de sonhos e de ambições. A meus olhos, isto faz com que se deva respeitar esta fase com o mesmo cuidado com que se respeitam todas as outras, e deita por terra as teorias que a colam a um tempo desprovido de grande sentido, onde se realizam despropósitos, e do qual deveremos sair o mais rapidamente possível. Nesta linha de orientação, que desaprovo totalmente, encontro pais que incutem, muito para além do razoável, realidades que deveriam surgir mais tarde, e que infundem nas cabeças ainda livres, rectidões que a emergirem na altura própria, viriam muito bem a horas. Não deveríamos viver com tanta pressa, acrescento. Evitaríamos aquelas sensações frustrantes do tempo que passa, sem que por ele passemos nós.
( Não sou libertina nem algo semelhante. Sou apenas calma e respeitadora de ritmos. E sim, sei que os inversos também existem, outra calamidade. Mais uma calamidade.)
( Não sou libertina nem algo semelhante. Sou apenas calma e respeitadora de ritmos. E sim, sei que os inversos também existem, outra calamidade. Mais uma calamidade.)
quarta-feira, 11 de abril de 2012
...
Deveria ser fácil guardarmos o que ouvimos, o que sentimos e o que vemos, como guardamos o que compramos, o que palpamos o que remexemos. Descobri entretanto não ser tão fácil, que num ápice deixamos esvair palavras, sentimentos, memórias guardadas. Os reversos são mais do que muitos, mas julgo que na verdade nunca poderíamos ser de outra forma. Ia-se a ver e se fossemos, viveríamos inundados de letras, imagens e sensações, que nos atafulhariam a alma, o espírito e o corpo, sem que nos conseguíssemos mover lá por baixo. Mesmo assim e ainda que dotados do esquecimento, permanecemos muitas das vezes entregues ao passado, num sentir depressivo e direccionado que nos atrapalha a existência. Mas quando falo em guardarmos falo de forma mais abrangente. Falo de quando precisamos de ouvir outra vez o que parece já não se ouvir há muito, num total estado interno confusional, pois acabou de se escutar. Ou ainda ver o que vimos agora há pouco, mas que se desvaneceu nos nossos olhos, pobres deles, que não conseguem guardar para sempre as imagens dentro de nós. Realizam uma miragem, pura ilusão do nosso cérebro, que cá dentro processa e vislumbra caras, sítios, flores e paisagens, como se todas elas fossem nossas e pudéssemos viver à sua mercê, até que um dia se esvaiam aos poucos, por distância ou esquecimento.
(Falo talvez de um chip, que me transformaria numa máquina rigorosa e sem graça nenhuma. Pior ainda do que assim, insatisfeita, utópica, incrédula, descrente e fantasiosa.)
(Falo talvez de um chip, que me transformaria numa máquina rigorosa e sem graça nenhuma. Pior ainda do que assim, insatisfeita, utópica, incrédula, descrente e fantasiosa.)
...
Vou sabendo coisas das quais me apetece fugir. Sempre houveram, hoje existem mais. Assaltos a idosos que entretanto necessitam de internamento hospitalar. Mulheres que parem sem a assistência devida, em hospitais devidamente credenciados. Assistentes Sociais de serviços que indicam a familiares aflitos alternativas clandestinas, de onde recebem gratificações gordas, tal e qual elas. E isto é apenas um ligeiro cheirinho nauseabundo do que se vive neste cantinho plantado na beira do mar. Qualquer dia, e sem querermos, damos azo à história da jangada de pedra e deixamos desprender a terra devagarinho, para que se cole a terrenos mais a sul, onde combinamos muito melhor com a paisagem.
Perpétua
Aqui mesmo ao lado amontoam-se vegetações velhas e secas que me invadem o espaço, e que de quando em vez são cortadas por umas mãos amarguradas que se prestam a esse trabalho. Está sozinha, os filhos estão longe, têm a sua vida. Vejo-lhe nos olhos o respeito e o entendimento de quem percebe que as vidas não são todas iguais, que os filhos não são nossos, são deles próprios, que a vida dela se vai esvaindo aos poucos, enquanto as outras crescem ainda, e até um dia. É a lei da existência, alguém definiu esta continuidade contra a qual nada podemos. Enquanto agarra na foice com uma mão, aperta com a outra um lenço ao pescoço, não vá o vento levá-lo para longe, faz-lhe falta para lhe amarrar a trança comprida e enrolada na nuca, não possui muitos destes com tanta serventia, que é grande e negro, como deve de ser. Não usa cabelos soltos desde que enviuvou. Não liga a televisão desde que lhe morreu a filha. Vai ao cemitério todos os dias sem falhar um, a não ser que alguma filoxera danada a apanhe, tal como lhe apanha de quando as vez as videiras que entretanto esfanica. Deixa flores frescas, limpa a campa, ora devagarinho e em silêncio, enquanto debaixo da terra jazem os corpos que serão seus para sempre. No avental guarda um relógio onde espreita amiúde as horas do dia. O tempo faz-lhe falta. Tem a criação para tratar, o terço para rezar, e a cama aguarda-a, mal se faça noite. Não gosta especialmente da noite. Sente que uma vai levá-la, mas nem sequer é isso que assusta. São os seus olhos que se apagam no ermo onde mora. Se precisar ninguém a escuta. O dia, esse, ainda que solitário e surdo, faz-lhe muita companhia. Não tem a certeza disso mas julga que se gritar, ele quase a escuta, e ao menos irá responder-lhe.
terça-feira, 10 de abril de 2012
...
Fácil é não saber fazer, é perguntar repetidamente quando surge a questão, é nunca aprender porque existe sempre quem nos faça ou nos responda. Tenho dias em que me apetece seguir os meus instintos profundos, e largar algumas dessas gentes num local ermo e lúgubre, onde sejam obrigadas, por força da circunstância, a desbravar caminhos que sempre se abriram por mãos externas. De quando em vez eu própria, deitar-lhes-ia uma qualquer indicação útil, que aproveitariam com uma cara esfomeada, nada semelhante à grandiosidade que apresentam hoje, encostadas ao poder do mando ignorante.
( Eu não sou má, a sério. Mas aprecio muito pouco determinadas particularidades da vida e das pessoas.)
...
Tenho de assumir que o assunto é sério. Olhos olham olhos, mãos tocam mãos, e no meio não sei muito bem explicar o que se encontra. Dizer que não se encontra nada é falso. Chamar-lhe um espaço carregado de sentires, igualmente, que os mesmos só ganham consistência dentro dos corpos. Será então o meio espacial que permite que dois seres se encontrem, e se julguem capazes de partilhar todos os restantes espaços do mundo, iguais ou diferentes daquele.
( São extraordinários os corpos, os vazios, as substâncias, e tudo o que podemos fazer com todos eles.)
Acomodação
Encontro semelhanças incríveis nas mentes humanas. Detecto algumas delas em quase todas as pessoas, conseguindo até, e tomando-me a mim como referência, percebê-las, explicá-las, compreendê-las. Vivemos subjugados ao afecto, crescemos em relação, carecemos de ser aceites para uma boa sexualidade, precisamos, mesmo, de expulsar para fora o que nos afoga a alma, nos tira o ar do corpo, e nos pode em extremo chegar a matar-nos. Socorrendo-me com alguma frequência das teorias cognitivo comportamentais, encontro estratégias de adaptação mais ou menos seguras, mais ou menos eficazes, que facilitam o nosso encaixe no mundo e o tornam num local onde podemos existir, incorporados. A dificuldade surge-me séria quando as pessoas estancam previamente à mudança, que encaram como afronta, aberração, e quando se julgam dotadas de meios suficientes para que corpo e mente sobrevivam, julgando-se adaptados e fundidos à realidade, quando o que verdadeiramente acontece é uma exigência extrema ao próprio, que mais não causa do que um desconforto significativo, mascarado pelo orgulho do rigor, ou seja uma pseudo-adaptação. O mais difícil nesses casos é fazer as pessoas crerem na imperfeição do mundo, perceberem que nada é pleno, nem mesmo elas, e que com o tempo, o excesso de severidade apenas lhe tirará possibilidades de harmonia urgentes, nunca lhes trazendo a exactidão que procuram, e que não existe em parte alguma.
( Há muito descobri que ou me adaptava ao mundo ou seria extremamente infeliz. Ele, por sua vez, nunca se irá adaptar a mim.)
( Há muito descobri que ou me adaptava ao mundo ou seria extremamente infeliz. Ele, por sua vez, nunca se irá adaptar a mim.)
segunda-feira, 9 de abril de 2012
Notícias
O lado bom de determinadas doenças que levam memórias, é o poder reviver-se todos os dias uma notícia boa, que é sempre a mesma, mas que é sempre nova.
( Não queremos aqui saber das más. Elas existem, claro, mas essas, e a não ser que surjam em pedido constante, só costumo dar uma vez. A propósito, dar notícias pode ser difícil. Muito difícil até. Bem como toda a gestão posterior, quando o assunto trata sentires de sofrimento. Nem toda gente deveria ser autorizada a fazê-lo. )
domingo, 8 de abril de 2012
Imediações
A quem não percebe, por vezes explico. Outras não, que percebo que a incompreensão é de tal forma notável, que as minhas palavras mais não serão do que vãs, sendo que aí as guardo. Não sei se me cabe a mim tamanha avaliação, que consiste na análise crua e fria, dada à partida, das capacidades de entendimento que nem me pertencem, mas enfim, perdoem-me lá os enganos que possam surgir. Redimo-me, se for caso disso. Mas e dizia eu, que explico. Explico que quando não há muito a fazer, há sempre um cuidado que se impõe, independentemente do estado, da idade, do sentido, da vontade. Vejo muitas vezes nos olhos das gentes uma descrença forte e brutal, como se o que se faz na velhice, nos jovens pedidos, nos caminhos errados, fosse apenas e só um remedeio, como se aquelas vidas fossem já perdidas, nada havendo a fazer, quer seja por motivos fatais, quer seja por outros, menos determinantes no nome, mas por vezes igualmente letais. E é exactamente nestes que os olhos menos me entendem, como se o que se dá fosse uma mera perca de tempo, mal direccionada pelo proveito futuro que dali irá advir, fraco, mortiço, na maioria das vezes quase nulo. Não consigo reger assim os meus dias, os meus actos, as minhas ambições. Cada vez mais e em tudo, rejo-me pelos momentos, pelos instantes, pelos cuidados. O futuro de todos nós pode acabar daqui a nada. Ninguém merece menos protecção por saber causas próximas ou declaradas. Arrisco dizer mais. É com os que experimentam o sofrimento que mais aprendo todos os dias. É com eles que relativizo, é a eles que me dou, é deles que cuido sempre e com dedicação. Se esta minha vertente não vos parecer mais do que uma mera carência de retribuição, respeito. Na vida mais não somos do que veículos que se querem sãos, e que o conseguem com maior ou menor esforço, em maior ou menor nobreza, estando o nosso Eu sempre presente.
( O nosso Eu é talvez das coisas mais misteriosas que encontro no mundo. E sim, falo também do meu, estranho, imenso, indecifrável.)
( O nosso Eu é talvez das coisas mais misteriosas que encontro no mundo. E sim, falo também do meu, estranho, imenso, indecifrável.)
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Hoje na minha avó e sem forçar tal facto, encontro uma fotografia de outros tempos, mais do que vista, mas talvez já esquecida. Casou-se naquele dia, vestia um vestido pérola comprido e fino, totalmente condizente com os seus traços delicados. Uma pele branca e sedosa, um nariz pequeno, uns olhos de amêndoa que fazem lembrar algumas actrizes de referência.
Ainda não percebi até hoje, o porquê de lhe ter herdado apenas as mãos.
Ainda não percebi até hoje, o porquê de lhe ter herdado apenas as mãos.
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Estou um bocado cansada, e por isso quase desisti de insistir em pontos de vista. De resto, não são mais do que perspectivas minhas, facilmente contrapostas e refutadas por outras, com valor exactamente igual.
( E isto é o mundo, embora haja por aí quem assim não julgue. Verdades absolutas temos uma ou duas, como o nascimento e a morte.)
( E isto é o mundo, embora haja por aí quem assim não julgue. Verdades absolutas temos uma ou duas, como o nascimento e a morte.)
sábado, 7 de abril de 2012
...
Encontro coisas na blogosfera que entram directamente para a categoria de aberração. Tal como as encontro em certas revistas, determinados jornais ou publicações. Debruço-me sobre o que fará determinadas pessoas optar por publicá-las, por mostrar ao mundo o que é tão íntimo, tão pessoal. Serão carências ou outro tipo de interesses? Será uma ingenuidade suprema? Ou será ainda a necessidade profunda de um reconhecimento colectivo, que só se consegue com a banalização do que de mais profundo reunimos cá dentro?
( Enquanto pensam, e se vos der para tal, podem comer amêndoas. Eu, por exemplo, adoro pensar e comer ao mesmo tempo, tal como adoro uma boa reflexão na mesa de um jantar. As ideias querem-se regadas, alimentadas, com condimentos e detalhes gourmet. Hoje encontro-me profundamente ligada a comida, não sei se repararam. Não se aquietem, isto é apenas o meu lado guloso, usualmente camuflado e quase quase esquecido.)
( Enquanto pensam, e se vos der para tal, podem comer amêndoas. Eu, por exemplo, adoro pensar e comer ao mesmo tempo, tal como adoro uma boa reflexão na mesa de um jantar. As ideias querem-se regadas, alimentadas, com condimentos e detalhes gourmet. Hoje encontro-me profundamente ligada a comida, não sei se repararam. Não se aquietem, isto é apenas o meu lado guloso, usualmente camuflado e quase quase esquecido.)
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E agora acabaram de me ofertar um pacote de umas brancas e sarapintadas, recheadas de um chocolate de cortar a respiração. Se calhar o melhor seria mesmo sustê-la, durante uns segundos, para depois respirar profundamente e ir apanhar um arzinho à rua, antes de as devorar todas num só trago. É que aquela força de vontade que eu tinha em criança abandonou-me em tempos, sou uma fraca agora, também eu rendida à gula, e quiçá até, à loucura da fartura.
( É tão fácil vender o corpo à facilidade)
Amêndoas
Sempre gostei de umas de licor em forma de morangos, pêras ou outros frutos, que o meu pai comprava avulso na pastelaria Belária. Vinham num cartuchinho, nesta altura da Páscoa, e eu comia uma por dia, duas vá, se a gula se assanhasse, mas nunca mais do que isso, para fazer render a fruta ( palavras da minha querida avó). Isto estendia-se a outras coisas simples da minha infância, que me chegavam amiúde, doseadas, mas que faziam com que eu fosse uma privilegiada, haviam diversos meninos na aldeia que não lhe tinham acesso. Os pais trabalhavam na fábrica do Costa, curtiam peles mal cheirosas de sol a sol, e aviavam as necessidades básicas e poucas mais na loja de Alice, sendo que o único acepipe que provavam por esta altura eram as amêndoas lisa cores, das quais eu também gostava. De entre todos lá existia um ou outro mais afortunado, que tal como eu tinha direito a uma qualquer novidade vinda do mundo, e que poderia ser um ovo de Páscoa, um folar de Olhão ( adoro folar de Olhão), ou umas amêndoas de chocolate. Diz minha mãe que o meu pai ganhava uns poucos contos de réis, distribuídos pelo que a família precisava, sendo que lhe valia as hortas e as criações de animais, onde se engordavam coelhos, galinhas, patos e gansos, e se semeavam batatas, alfaces, abóboras para a sopa e tomates para o doce que se barrava no pão.
No Domingo comia-se sempre cabrito assado, na casa da avó, que o temperava e enfiava dentro do forno num tabuleiro de barro envernizado. Gosto de comida confeccionada em recipientes de barro, sabe-me sempre a antigamente. Acompanhava com batata de cebolada e salada de alface com hortelã, um tempero pouco frequente mas delicioso, que nunca faltava lá em casa.
( Não me perguntem, não vos sei explicar o tipo de saudades. É a nostalgia do crescimento, deve ser isso. A época não era de fartura, mas ensinou-me mais valias importantíssimas que não esqueço nunca. Vivo hoje preocupada em transmiti-las ao meu filho, no meio de doses industriais de estímulos diversos, excessos de consumos, bens adquiridos ao sabor das vontades, sem se reconhecer o gosto, provado devagarinho e com cautela, como o das minhas saudosas amêndoas de licor)
No Domingo comia-se sempre cabrito assado, na casa da avó, que o temperava e enfiava dentro do forno num tabuleiro de barro envernizado. Gosto de comida confeccionada em recipientes de barro, sabe-me sempre a antigamente. Acompanhava com batata de cebolada e salada de alface com hortelã, um tempero pouco frequente mas delicioso, que nunca faltava lá em casa.
( Não me perguntem, não vos sei explicar o tipo de saudades. É a nostalgia do crescimento, deve ser isso. A época não era de fartura, mas ensinou-me mais valias importantíssimas que não esqueço nunca. Vivo hoje preocupada em transmiti-las ao meu filho, no meio de doses industriais de estímulos diversos, excessos de consumos, bens adquiridos ao sabor das vontades, sem se reconhecer o gosto, provado devagarinho e com cautela, como o das minhas saudosas amêndoas de licor)
sexta-feira, 6 de abril de 2012
Lembranças de Páscoa
Era um menino e costumávamos brincar com o seu nome. Adérito, filho, volta, estás perdoado..., preiteando assim um Herman de quem gosto mais ou menos. Adérito vinha do Príncipe, um sítio onde não havia tratamento de hemodiálise para a sua mãe, uma senhora magra e escura, com um sorriso aberto e muito claro. Tinha uns caracóis rebeldes e guardava também no corpo alguma dessa rebeldia, como se o cabelo não a conseguisse absorver toda, e os restos se tivessem espalhado e deitado ares de graça, que emergiam por vezes, quando contrariado. Gostava da vida que o tinha acolhido de forma torcida. O pai não o reconheceu, a mãe adoeceu e trouxe-o para longe do que conhecia e do que era seu. A ambição por outros mundos, comum a tantas crianças, não era dele. Gostava dos carros quase sem rodas, do ar da sua terra, da sua avó de quem morria de saudades.
Nunca mais o vi, e já faz muito tempo. Tenho pessoas que deixei assim, nos caminhos, e que me fazem falta à existência. Gostava ao menos de o saber bem, mas nada sei. Lembro-me dele especialmente nesta altura, porque adorava amêndoas de chocolate. Adérito podias, senão voltar, ao menos dizer qualquer coisa. Um disparate este meu querer, que mesmo que o quisesses, nem sabes onde me encontro.
Nunca mais o vi, e já faz muito tempo. Tenho pessoas que deixei assim, nos caminhos, e que me fazem falta à existência. Gostava ao menos de o saber bem, mas nada sei. Lembro-me dele especialmente nesta altura, porque adorava amêndoas de chocolate. Adérito podias, senão voltar, ao menos dizer qualquer coisa. Um disparate este meu querer, que mesmo que o quisesses, nem sabes onde me encontro.
Augusta
Augusta não sabia falar mais do que das suas doenças que a atormentavam todos os dias a fio, e que iam dos bicos de papagaio ao ácido úrico, passando pelos intestinos flatulentos e ainda por uns malvados calos que lhe comiam os pés, e que se assemelhavam a umas lagartinhas, que se alimentavam devagarinho das peles amareladas e grossas que lhe protegiam a carne, enquanto ela aviava bolos de ferradura avulsos, embrulhados em papel pardo. Gostava de apregoar a quem frequentava o seu humilde estabelecimento de aldeia todas as mazelas que Deus lhe atribuiu em desgraça, causando assim uma qualquer condolência que se sentia forte, vinda de lá do fundo do peito, um estimar que toda a gente parecia sentir com uma hombridade digna de ser dirigida a uma qualquer alteza, e não a ela, Augusta, mísera pessoa, habitante de um lugar pacato, mulher de um homem gordo e mal disposto, mãe de um pobre moço que morre de amores por Júlia, que entretanto casou com Gustavo, mas que nas horas vagas o vai deixando em banho Maria, e de Felícia, uma rapariga entradota que apenas interessou ao cigano, um homem altivo e de olhos azuis, lindo de morrer, mas que apesar disso não era partido decente para ninguém e muito menos para Felícia, menina de boas famílias, capaz de bordar Arraiolos, ponto de cruz e pé de flor, tecer no tear de madeira, e remendar buraquinhos sem que ninguém dissesse que ali houvera havido um. Ainda se lembra de quando ela era pequena e se sentava na escadinha da loja, logo após ter pedido à mãe uns esparguetes compridos que embebia em água, e que serviam para fazer umas papas ralas que dava às bonecas, com muito cuidado e dedicação, não fossem morrer engasgadas. Logo após a brincadeira, e num primor herdado de sua mãe, avó, bisavó, e muito provavelmente de outros antepassados ainda mais longínquos, arrumava as pobres barrigudas numa salinha pequena onde todas residiam, cada uma dentro da sua caixa específica, de onde não havia ordem de serem novamente retiradas, a não ser com autorização expressa da mãe. Felícia sabia exactamente quando solicitá-la. Tal pedido não podia nunca ser feito em hora leviana, descuidada, potenciadora de uma negação que não queria, em caso de causalidade confirmada. Esperava então por detrás da porta da loja uma altura em que uma qualquer senhora entrasse e procedesse ao avio da semana, para logo aparecer de imediato, no exacto momento em que as dores tomavam conta de Augusta, em que os calos lhe levavam para além dos pés os tornozelos, as canelas e até os joelhos, em que o intestino dava voltas medonhas e quase lhe saia pela boca, e em que o seu coração palpitava com muita força, prestes a explodir, coisa que nunca aconteceu não se sabe como. A emoção sentida era de tal ordem, que as únicas palavras que lhe saiam da boca na hora da decisão estavam totalmente subjugadas à vontade de continuar o rol da desgraça, o relaxamento diário do corpo, coisa à qual uma criança traquina e endiabrada não trazia qualquer préstimo valioso. Mal lhe via então a cabeça , mal Felícia espreitava na porta, e era vê-la com o esparguete já erguido, para que o cozinhasse, lhe desamparasse a loja e a queixa sentida, e lhe permitisse o usufruto pleno da pena e da ovação.
( A lei da compensação existe há tempos infinitos. Mudam os utensílios, as necessidades, os interesses e os argumentos. Mantêm-se a natureza e a ambição. )
( A lei da compensação existe há tempos infinitos. Mudam os utensílios, as necessidades, os interesses e os argumentos. Mantêm-se a natureza e a ambição. )
quinta-feira, 5 de abril de 2012
Coisas minhas
Acho sempre uma coisa estranha, embora com jeito a compreenda, a necessidade exagerada de sermos felizes aos olhos dos outros. Pela parte que me toca, confesso que vibro com momentos pessoais, evoluções diversas, crescimentos, e vivo também as dificuldades, o oposto que faz parte do caminho. Provo ambas com jeito, aprecio-lhes o sabor, partilho com quem me dói e com quem me sorri mesmo aqui ao lado. Damos abraços de felicidade, ou de tristeza se for caso disso. Poderemos chorar, saltar de alegria, deixar escorrer pelo rosto lágrimas de carácter diverso, e daí seguirmos em frente, munidos de mais qualquer coisa que nos pertence, que é nossa, que conquistamos ou enfrentamos. Mas o processo fica-me por aqui. Poderei até deixá-lo transparecer se for caso disso, que não sou de esconder emoções só porque sim. Mas não aprecio o estandarte, o exagero, o excesso de demonstrações para se receberem reconhecimentos de formas diversas, elogios, apreciações. São coisas minhas, não são coisas do mundo. E chega assim para mim.
( E aqui hoje ouve-se Mísia na sua voz melancólica. Quase diria que deixa escapar a alma pela boca , tal a força com que canta o Fado. Já tinha dito que gosto de almas implícitas nos gestos, nas falas, nas vidas. Mas como gosto mesmo muito, digo outra vez.)
( E aqui hoje ouve-se Mísia na sua voz melancólica. Quase diria que deixa escapar a alma pela boca , tal a força com que canta o Fado. Já tinha dito que gosto de almas implícitas nos gestos, nas falas, nas vidas. Mas como gosto mesmo muito, digo outra vez.)
quarta-feira, 4 de abril de 2012
...
A distância entre a vida e a morte pode ser tão curta quanto ir daqui, até aqui mesmo ao lado. É cliché, toda a gente sabe disso, mas quem nunca viu ninguém morrer, dar o ultimo suspiro e esvair-se para sempre num esticão rápido e certeiro, no segundo seguinte a estar a rir e a conversar, de certeza que não percebe a real dimensão desta afirmação. Eu pelo menos, tinha a mania de dizer que sim, mas não percebia.
( E é por exemplo por isto que os instantes não são efémeros, mas sim vida)
Encaixes e lugares
Um dia começou a tentar moldar a mente. Não percebia o porquê da desassossego da mesma, que teimava amiúde em transformar o que de bom lhe acontecera em tojos cravejados de espinhos e de asperezas que lhe magoavam o corpo. Custava-lhe a perceber o que aquilo era, de onde vinha, a razão de ser dos momentos tranquilos se transformarem em inquietações, dos amores se tornarem ódios, das razões se tornarem dúvidas, das crenças originarem medos. Deambulou devagarinho nos caminhos que conseguiu encontrar, procurou sesmarias perdidas nos tempos e nos lugares, cheiros próprios a cada uma delas, e enfiou o nariz bem lá no meio, a fim de conseguir o odor verdadeiro, a essência que lhe marca a existência. Chegou em algumas a largar a língua discretamente, apenas com a ponta e só para lhes perceber o gosto, garantia de que não voltaria a esquecer o que a tinha levado até ali. Demorou tempo, causou-lhe cansaço, exigiu trabalho interno, mas pelo menos conseguiu perceber-se, ponto de partida mais do que necessário para que alguma mudança possa surgir, com força efectiva e capaz de resistir aos dias, aos sacudires dos ventos, aos estorvos dos caminhos. Percebeu que a tendência humana é em agarrar o que a segura em determinado momento e deixar-se ficar, encostada em memórias e em saudades que se arrumam no corpo em locais estratégicos, de acesso fácil, e onde o rancor, a tristeza e a incerteza podem poisar, com o intuito de arrebatar espaços e ganhar terrenos. São como as pragas, os fungos, as bactérias, que apenas precisam de um sítio pequeno e quente para proliferarem ao infinito, somente travadas por acções fortes, com capacidades de cura e de contradição. Talvez fosse esse então o caminho, talvez fosse o encarar de frente e em força as atrocidades que nos agarram os membros e nos algemam para sempre numas amarras fortes e resistentes. Pior é que na nossa alma os terrenos nefastos têm um poder estranho e perturbador, uma qualquer capacidade avassaladora e muito consistente, que parece vingar sobre tudo o resto, que pode até começar a morrer devagarinho, de dia para dia, sem darmos por isso. Percebeu por fim e já em ânsia, que a possibilidade será a aceitação da mudança. Conceber que o que foi não é sempre, que o que se sentiu não é eterno, que o que fez sentido pode já não o fazer. Se não para nós também para os outros, que vai-se a ver e no mundo, a bem da existência enquanto ser individual, carecemos sempre de nos encaixar nas diversas vidas, nas várias pessoas. Sem elas não há lugar para nós.
(Soa-me a estranho isto. Fragiliza-me, deixa-me em amargura. Os outros podem ser dúbios, falsos, descrentes. Viver deles é a aceitação de uma vertente social temível, perigosa, assustadoramente real.)
terça-feira, 3 de abril de 2012
...
Acabou de sair de pé de mim um homem com um bigode retorcido, uma camisa aos quadrados aberta até ao umbigo, unha do mindinho gravemente comprida e suja, crucifixo ao peito e palito no canto da boca. Ou estou em estado de delírio, ou eles ainda existem. A bem da humanidade, eu estaria efectivamente em processo psicótico. Mas já confirmei e não estou, que ele vai mesmo agora a passar pelo portão automático do jardim. Medo.
Provas
Disse-me entre dentes que já tinha usado um anel com uma caveira, em tempos de adolescente. Tenho para mim, acredito piamente e com uma efectividade de carácter determinante, que existem coisas que sucedem apenas para nos fazer crer na inconstância do Homem, na sua maleabilidade e capacidade de mudança. Esta, por exemplo, mero dado vindo de uma boca ornamentada a gravata e a botão de punho, é uma das que me faz a cada passo, tornar-me numa pessoa crente na volubilidade e na instabilidade. Ora isto vale-me de muito todos os dias da minha vida, porque me convence não só da nossa tendência para podermos pisar vários mundos, como também da nossa apetência para efectuar grandes mudanças de fundo, o que convenhamos, é totalmente condizente com a sociedade actual, onde tudo ou quase pode acontecer e ainda bem, desde homens de negócios que já usaram anéis com caveira, e que os guardam, inclusive, como recordação dos saudosos tempos, a pessoas que já foram muito más e que agora são um bocadinho menos, porque já viram no mundo o suficiente para que isso possa acontecer. São raridades, bem sei disso, existem inversos, também é necessário conceber, mas ainda assim a simples possibilidade de transformações, dá-me um aconchego consistente, um descanso forte e exacerbado, tudo porque não consigo apreciar a rigidez da mente. Fujo dela. Assusta-me, prende-me os membros, mata-me o ânimo e a vontade.
Casamento
Subiu as escadas com um ramo de flores vermelhas e com os olhos a largar alegria visível. Nem sempre a alegria se percebe assim a olho nu, pode vir disfarçada, embrulhada em corpos oprimidos que a escondem sob pena de a perderem às vistas do mundo, um local amplo e demasiado povoado para se deixarem à mercê determinados sentimentos sublimes. Ainda assim não conseguiu disfarçá-la, partilhou-a comigo que me abeirei dele a meio do caminho, teve sorte, que se há coisa que não gosto é de me apropriar dos sentimentos alheios, pelo menos dos bons, que faço questão em preservar, em estimar, em respeitar, e até em retribuir e aumentar, se possível isso me for. Fez-me lembrar tempos longínquos em que um dia me ofertaram flores, também elas vermelhas, dentro de uma cesta ornamentada com um laço grande e farfalhudo, onde um bilhete escrito me pedia em casamento. A diferença, substancial, diga-se, é que a minha vinha pelas mãos da florista, incumbida de me fazer chegar aquele presente recheado de intenções. Não casei, claro. Não poderia nunca aceitar um pedido vindo em forma de papel florido, cor de rosa pálido, onde umas letras rabiscavam sentimentos arrependidos, nem sequer gosto de arrependimentos. Há coisas que soam bem vindas de bocas sinceras, com alegria a destilar pelos olhos, e não sobre a forma de remedeio, por mãos alheias com olhos mortos para o assunto em questão, como se o calor dos momentos partilhados pudesse ser assim substituído por um cheiro a flores, por um corpo indiferente, por um bilhete escrito onde as letras se lêem sem entoação, sem cheiro e sem emoção. Só voltarei a casar se me pedirem de joelhos no chão, ou então se me baterem assim à porta, bem cedo e mal se veja o sol, sem que se assustem com o meu ar despenteado, o meu corpo enfraquecido e o meu pijama com riscas e panteras cor de rosa.
segunda-feira, 2 de abril de 2012
Dentro de mim
Vive lá dentro do corpo, com uma diferença clara com a maioria das gentes. Todos vivemos cá dentro, dirão por certo, muito embora a nossa reserva seja uma linha transponível, que transladamos ao sabor das nossas vontades, dos nossos quereres ou até necessidades. Agora dentro, agora fora. Ele também queria assim ser, queria sair de dentro daquela pele que o aprisiona e o guarda do mundo, mas sente-o como um local estranho e aterrador, e por isso reserva-se. Reserva-se dos sons altos que o assustam, dos desconhecidos que o perturbam, das novidades que o deixam entregue ao desconforto. Por isso precisa dos dias sempre iguais. Come o pequeno almoço com o nascer do sol, almoça ao meio dia, lê uma banda desenhada imediatamente a seguir ao almoço. Ao final da tarde passeia o cão perto de casa, e rente à noite, mas ainda dia, janta. Logo depois tapa-se com uma manta no sofá e embala o corpo até adormecer. A família mais chegada conhece-lhe os hábitos e preserva a envolta, sendo apenas quando a rotina se altera, que o seu mundo lá dentro começa a chocalhar. Inicia-se então o processo de arrumação do que lhe é totalmente desconhecido, do que lhe é externo, do que nunca conseguiu ver, conceber, sentir e apropriar. Por vezes tenta entender, devagar, a medo, tenta construir dentro do que já conhece a realidade e o que se avizinha, chegando até a conseguir algum mísero progresso, tímido, quase imperceptível. No fundo, sente algum sossego dentro deste seu mundo, muito preocupante pela diferença. Vai-se a ver e lá dentro, encontramos todas as essências mesmo essenciais, como o amor, a dedicação, o respeito ao próximo. São deles, mas estão lá dentro. Não fazem em pleno a transladação.
(Um dia tentei entrar. Abriu-me a porta devagarinho e contendeu com o meu corpo de forma calma e muito tranquila, sem pressas, sem pressões. A pouco e pouco descobri recantos escondidos, medos infundados. A resolução da posição perante a vida nunca é totalmente possível. Quebrou-se algures, é como um osso que deixou de crescer. Mas podem remendar-se com cuidado, respeito, vontade e proximidade. Aqui como em tanto, as mãos e os olhos representam o mundo.)
(Um dia tentei entrar. Abriu-me a porta devagarinho e contendeu com o meu corpo de forma calma e muito tranquila, sem pressas, sem pressões. A pouco e pouco descobri recantos escondidos, medos infundados. A resolução da posição perante a vida nunca é totalmente possível. Quebrou-se algures, é como um osso que deixou de crescer. Mas podem remendar-se com cuidado, respeito, vontade e proximidade. Aqui como em tanto, as mãos e os olhos representam o mundo.)
domingo, 1 de abril de 2012
Palavras
Está a dar um filme que nem é nada de fantástico. Mas ainda assim e por momentos, fogem-me as palavras do corpo. Coisa raríssima esta. Por vezes fogem-me coisas, que podem ir desde a coragem, ao chão, à vontade, ou até à razão. Mas as palavras são aquelas coisas soltas, que nos saem de dentro em golfadas fáceis, e para me desaparecerem têm porras.
Chuva
A chuva finalmente chegou. Cheira a terra molhada, a Inverno e a bolos. Há coisas que mesmo fora de época me sabem sempre bem. De resto, Abril é das águas mil, e se calhar a época está certa, dispensaríamos então apenas os bolos, vindos dentro de um frasco de vidro, cheios de canela. Vejo-os do lado de fora e sinto-lhes o sabor só de os olhar. Gosto quando me invadem estes prolongamentos de sentidos, estas sensações nascidas de um lamiré destemido, que logo acordam as imaginações do que tão bem conheço.
Público
Dado que de vez em quando mudo de ares a fim de manter a isenção, comprei hoje pela primeira vez o Público, após a mudança. À parte dos agrafos, que entram directamente para a categoria de ideia excelente, não apreciei por aí além. Nem a estrutura, nem os temas, nem a revista. Admito que apresento alguma resistência à mudança que poderá estar a tolher-me os pensamentos. Ainda assim, e quando as mudanças se verificam positivas, não costumo ter dificuldades por aí além em adaptar-me, sendo que naturalmente me moldo aos novos títulos, à nova distribuição, ao novo formato.
Lá na esplanada batia um vento estranho, estilo nortada quente, coisa que nem sequer deve existir. Mesmo ao meu lado duas viúvas choravam lágrimas, e eu, ao invés de mostrar solidariedade com elas e de me prontificar a ajudar perante a solicitação lançada em forma discreta, vim embora, com a desculpa de que o lombo tinha ficado no forno. Isto deve ter ficado registado algures.
Lá na esplanada batia um vento estranho, estilo nortada quente, coisa que nem sequer deve existir. Mesmo ao meu lado duas viúvas choravam lágrimas, e eu, ao invés de mostrar solidariedade com elas e de me prontificar a ajudar perante a solicitação lançada em forma discreta, vim embora, com a desculpa de que o lombo tinha ficado no forno. Isto deve ter ficado registado algures.
Olhares
Sai já noite escura. Dei uma volta pequena, reduzida ao cumprimento da circunstância imposta e regressei. Pelo caminho vou vendo com uns olhos já velhos e cansados, as gentes que se encostam nos passeios com copos nas mãos, os miúdos que agarram cigarros com força, as mulheres que em círculos de três, máximo quatro, falam dos filhos, das roupas que vestem, dos maridos que ao longe fazem exactamente o mesmo que elas, com mudança clara de temática. A música deveria impor-me alguma distracção, o ar frio da noite dever-me-ia abalar os sentidos, a envolvência deveria acolher-me, tal como se fosse uma concha, afinal estou na minha casa. Não a censuro, ela continua exactamente igual. Fui eu a desertora que se refugia amiúde em outros mundos, onde não levo com olhos que não me apetece que me olhem. Não aprecio certos tipos de olhos. Gosto de olhares doces, olhares de amizade e rejeito claramente todos os olhares interesseiros, independentemente do interesse impresso na expressão, no tamanho da pupila, no batimento das pálpebras. Aprecio, e nesta sequência, olhares soltos, que me olham como pessoa. Percebo as dificuldades sérias de quem faz de outra forma em perceber esta minha embirração, nem sequer condeno esta incompreensão que manifestam, com culpa totalmente imposta a mim e a mim mesma. A normalidade talvez fosse até a abertura aos olhares invasores, curiosos, interessados, e a todos aqueles que me apetece retirar do mundo, porque me revelam aquele interesse pequenino e mesquinho que muitas pessoas expelem por todas as reentrâncias do corpo, pele, gestos, andares, olhares, e que não são mais do que a nossa natureza pura, que eu conheço tão a fundo, e que por isso me afasta tanto.
( Fico especialmente com a sensação de que ninguém sabe viver devagar. Não há lugar destinado para a calma, sendo a intensidade da noite uma corrida sem fim, destinada a albergar dentro do corpo o maior numero de coisas possível, nem que por isso o pobre se esvaia enfartado em fluidos, odores pestilentos, palavras incautas e frivolidades antagonicamente volumosas.)
( Fico especialmente com a sensação de que ninguém sabe viver devagar. Não há lugar destinado para a calma, sendo a intensidade da noite uma corrida sem fim, destinada a albergar dentro do corpo o maior numero de coisas possível, nem que por isso o pobre se esvaia enfartado em fluidos, odores pestilentos, palavras incautas e frivolidades antagonicamente volumosas.)
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