domingo, 15 de abril de 2012

Questões

Passeava pela floresta há já algumas horas. Acredita que aquela imagem lhe advém de uma outra vida, já passada, um dos muitos quadros que lhe povoam a mente. Este, pintura, retrato, filme, talvez, pelo desenrolar de acção, repleto de significado, acorda no seu corpo muitas vezes, enquanto ela dorme, sob a forma de um sonho estranho e sombrio que lhe desassossega a existência, e que depois a acompanha, dia a fora, e por muito que o tente expulsar do seu corpo. Aconchega-se, encontra onde ficar, e lateja-lhe por dentro de uma forma acesa e desconcertante, coisa que a faz abanicar-se com força, mas sempre em vão, que por muito que o tente, nunca o conseguiu expelir definitivamente. Debaixo de uma árvore um animal selvagem devora um homem. Devagarinho, enquanto o pobre esbraceja, ao mesmo tempo que se vai contorcendo com dores. Ela fica aflita, desconfortável, e corre em auxílio. Espanta-se porém quando é repelida. Quando o homem, repleto de dor e de sofrimento, lhe diz baixinho que se vá embora, por ter sido aquele o destino que escolheu para si. O que sentes, diz-lhe, não são as dores que me consomem o corpo. O que te desassossega, prossegue, não são as ânsias que experimento. O que te move, diz ainda, são os teus olhos que me olham e que se julgam no direito de sentirem o que eu sinto. Ela, aterrorizada, deu meia volta e fugiu.
Poderia agora contar-me um dos bons, penso, e chego a dizer. Tem colectâneas de sonhos completíssimas e de elevado interesse no que toca a experiências de lazer e de plenitude, coisas que possivelmente o seu corpo já experimentou, mas diz-me que têm de ficar para outro dia. Fico desgostosa, logo após o sonho do Homem que é devorado, e que ainda para mais o quer ser, precisava de algo mais simpático, qualquer coisa servia, não sou muito exigente. Mas não. Hoje precisa de discutir comigo o que lhe dá aquela miragem. Desde que a encontra dentro de si noites fio, que se interroga sobre as capacidades altruístas do Homem, que em tempos chegou a julgar algo imaculado, mas que agora a faz pensar. Serão antes os meus olhos que precisam de quietação, antes da dor do outro, que eu nem sei verdadeiramente o que é? De resto, o que nos dota de capacidades para sentir o que não nos pertence? O que nos coloca capazes de viver vidas alheias, vitórias externas? O que nos faz querer vivê-las, se não os nossos olhos, profundos intrusos que se expandem a tudo o que é significativo para nós, ou que julgamos que seja? E não será então o nosso Eu o cerne de tudo? Agora outra vertente, diz-me. E que direito tenho eu, e nos meus dias, obviamente recheados de gente que sofre, não em tão dramática escala, mas em outras, de opinar sobre esses sofrimentos, as más escolhas, as opções erradas, os caminhos obscuros? Porque me devo julgar magnânima, ao ponto de orientar o outro, à luz dos meus próprios olhos? Não seremos nós, ou não deveríamos ser, seres individuais, antes de sermos seres sociais?


( Existem diversas perguntas para as quais não tenho resposta. Existem outras, claras como a água. Não me importa lá muito de onde lhe vem o sonho. Se de vidas passadas, se de um inconsciente irrequieto. Agradam-me estas dúvidas sublimes, estas perguntas vindas de um corpo desengonçado mas muito inteiro, completamente capaz de se analisar em cada recanto, desde a ponta do cabelo, ao desvio do peito, passando, devagar e com cuidado, na soberania da vontade.)

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