Era Doutora de Farmácia. A idade levou-lhe a clareza, e a demência apoderou-se do seu corpo, por demais magro e definhado. Ficou ali assim. Não ao abandono de todos, mas ao abandono de muitos. Daqueles que pôs no mundo, por exemplo. Não sei se existirá abandono maior. Tinha posses, geridas à distância, de onde se tirava o necessário ao seu sustento. As comunicações eram feitas por telefone, ou por email, que era o mais fácil. Uma vez por mês, no máximo.
No guarda roupa, e já com cheiro a naftalina, repousa o casaco de Vison, do melhor que pode haver, e motivo importante de disputa familiar. Era o bem mais desejado, aquele.
Entretanto morreu. Não o casaco, claro, mas a Doutora de Farmácia. Uns dias antes, lia a revista Caras na perfeição, e via as fotos com uma admiração e bom gosto, dignos de uma, ainda Senhora. A Agência vem, e veste-a. Estive quase a mandar-lhe a porcaria do casaco vestido. Era dela. Não mandei, não por falta de vontade, ou por receio de reacções. Mas por uma questão de bom senso, já que ninguém mais o tinha. Correria o sério risco, de em plena cerimónia fúnebre, lho arrancarem do corpo, sem dó nem piedade.
Já o vieram buscar, claro. Conheci-os finalmente, dois anos depois. Gente que olhamos, e até parece normal. Coisa estranha esta.
Tomei consciência, mais uma vez, da divergência de valores. Da fraqueza da vida e do poder de um casaco.
Custa-me pensar que hajam pessoas assim tão livres de sentimentos, mas por vezes existem atitudes que influenciam os sentimentos e vice-versa. A minha avó dizia muitas vezes "filho és, pai serás, assim como fizeres acharás", ou qualquer coisa assim. Talvez tenha sido esse o princípio...
ResponderEliminarTenho bem perto um exemplo em que alguns se batem por uns cordões e aneis de ouro. Como se quem os tivesse já tivesse partido. Não consigo calar-me perante isto...é mais forte que eu.
ResponderEliminarSão os valores morais que cada dia que passa valem menos...
(tristeza)
De outra forma, falei disso no meu espaço. Boa semana, mesmo que a meio :):)
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