sábado, 28 de abril de 2012

Dois

Lá em cima do palco batido pelas luzes que cintilam vindas da bola redonda que enfeita o tecto, um rapaz de caracóis loiros toca uma guitarra. Sentada na mesa mesmo à beira do palco uma rapariga magra olha-o com toda doçura do mundo a fugir-lhe dos olhos, enquanto no meio voavam plumas que mais ninguém via, mais ninguém sentia, mais ninguém percebia. Sei disso porque num ápice, e logo após escolher o visado, alojei-me dentro de um. Por acaso foi ele, aproveitei e matei a curiosidade já antiga, do lado inverso. Procurei um sitio tranquilo para me esconder mas não encontrei, o tronco encontrava-se aos solavancos,  desassossegado, impregnado de um conjunto de sensações fortes e expressivas, mas ao mesmo tempo boas, muito boas. Após lhe dar a volta por dentro, lhe escorrer pelas veias, lhe cheirar o coração de mansinho, enquanto este me bombeava com força para lá e para cá, e de lhe povoar o cérebro onde me perdi demasiado tempo, resolvi arrumar-me nos olhos, julguei ser esse o melhor sítio para me permitir ver aqueles sentires longínquos, que julguei que não mais me passariam no corpo. Estava enganada. Enquanto as mãos acariciavam a guitarra angustiada, da boca saiam-lhe uns sons fortes mas ao mesmo tempo adocicados, inundados de um qualquer sonho que faz o mundo mudar de cor e ter aquela que sempre desejamos. Não importa bem qual é, é uma, que naquele dia pinta o mundo só para nós e para outro alguém, que é exactamente o alguém que nos falta para ficarmos completos. Não temos dúvidas, não admitimos questões, que levamos o mundo, as pessoas, a envolta na frente, se ousarem negar tal facto. A sala estava cheia, mas eu consigo jurar que ele não via isso, que apenas vislumbrava névoas, sombras turvas, banalidades envolventes que circundavam aquela que era a Pessoa. A Pessoa que entretanto olhava e murmurava baixinho a letra que ele cantava para ela, e enquanto isso sorria, por dentro, por fora, como se toda ela fosse sorrisos e ele os recolhesse um a um, por mais nada querer receber. A palavra perfeição, aquela longínqua, distante, utópica, que povoa os livros de contos infantis e as cabeças aos quinze, voltou a fazer-me todo o sentido, eu estava a vê-la, ali, mesmo à minha frente. De repente, e já inundada daquele estado de transe incutido pela minha afoiteza, tive uma vontade tremenda de ir mais longe. De o fazer largar a guitarra e junta-se a ela, ao som de uma qualquer música que alguém tocasse, enquanto os dois corpos dançariam colados, sozinhos, num mundo cheio de gente que não se via.

( A capacidade de não ver gente é talvez uma das maiores grandezas que perdemos quando crescemos.)

2 comentários:

  1. :):):) saudades :) Achas que há certos estados que se perdem no tempo? ou será que são intemporais? que é só uma questão de encontro e nada mais?

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  2. :) Acho que existem coisas que perdemos com o tempo sim. Ganharemos outras, talvez até de maiores dimensões. Mas existem sentires que só a liberdade da adolescência nos permitem. E oxalá descubra um dia que estou enganada...

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