Na minha porta alguém ladra a um cão. O cão recua assustado, quem ladra é ele, gente deveria falar, gesticular, é a loucura, só pode ser a puta da loucura. Entro e sinto o cheiro a um peso difícil de suportar, com todo o respeito que eu tenho pelos feixes que a minha bisavó acartava na cabeça, sob um corpo leve como uma pena e uma mente mais forte do que os muros de um castelo. Eu, muitos anos depois, com uma abertura supostamente maior e um suporte, eventualmente, mais consistente, deveria ser capaz de sentir a leveza da brisa que atravessa a estrada no exacto momento em que eu a cruzo. Penso nisso, volto a sair e abro as narinas intencionalmente. Esqueço a naturalidade do respirar e concentro-me, direcciono-me para o local exacto de onde corre o ar, apuro o nariz e espero. Fecho os olhos, claro, os sentidos são minuciosos, precisam de convergência. Ainda assim não consegui deixar de escutar o ruído, a concentração no essencial por vezes exige-nos tanto que quase nos deixamos sufocar com desperdícios. Entretanto o homem parou de ladrar e eu entrei. A cortina abre-se e entra um sol frio de Outono, o meu preferido de todos os tempos e de todos os lugares do mundo. Consigo ver ao longe o animal que foge do homem que ladrou, e finalmente respiro mais sossegada. Só não descobri ainda se é mais fácil sentir ou fluir.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
terça-feira, 4 de novembro de 2014
desatinos
Come devagar e com sabor. Queixa-se pouco, quase nada. Dizem que está consciente, mas as falhas no discurso dizem-me que tem dias. Concluo, abusivamente, que existirão alturas afortunadas e outras muito menos do que isso. Não consigo passar isenta, mas não tenho muito para lhe dar a não ser meia dúzia de palavras, um sorriso amarelo, uma palmada nas costas. Pouca coisa, quase nada, talvez melhor do que o silêncio. Procuro sinais, sou invasiva com os olhos. Perscruto medos, examino anseios, sondo manifestações de transtornos como quem espera alcançar o pretexto para que a revolta se declare, e o choro brote. Normalmente não chego lá, mas fico sempre desatinada. A ignorância no destino, acreditem, é talvez uma das nossas maiores bênçãos. Não há nada mais incómodo do que uma morte anunciada.
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
tom
Tenho com frequência uns inoportunos achaques de grandeza. Neles menosprezo quem se incumbe de preocupações medianas, como a cor do verniz que vai bem com a roupa, que vai bem com a bolsa, que vai bem com o calçado. Também olho com desdém quem se demora no bâton, levanto o dedo a quem se dá à placidez da existência, renego os que vivem no meio da guerra, sem acto ou imposição. Bem vistas as coisas e é inveja, é inveja o que sinto, da serenidade dos tranquilos na imensidão do desassossego. É que eu mesma aprecio a conjugação de cores, aquelas, as que me escapam, quando a paciência me morreu antes de eu saber do tom. Dai em diante não há critério, há calhar. O lenço que calhou no pescoço, o sapato que calhou no pé, a mala que calhou na mão. Verniz nem vê-lo, mas acreditem que gosto muito. Dá-me um ar cuidado que eu própria desconheço.
sexta-feira, 31 de outubro de 2014
liderança
Vejamos, é simples: do lado de dentro da segurança brotam palavras de apreço. Incentivos de continuidade, elogios merecidos, apelos proactivos de mudança, se necessária, esforços de compreensão. Do lado de dentro da incompetência emerge a critica, essa imponente. Nela emparelham-se más palavras e soltam-se receios invisíveis a olho nu, apenas espelhados na urgência da revolta. Não se iludam, é assim em tudo: estados gerais de agressividade revelam a maior das fraquezas, e das duas uma, ou há que matá-la ou há que ignorá-la.
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
30/10
Uma das minhas origens nasceu neste dia, há muitos anos atrás. O pronúncio fatal de um escorpião enraivecido comprovou-se em cada fala, em cada gesto, impresso nuns olhos que amaram pouco mais do que coisa nenhuma. Diziam dele, claro, eu não acredito. Gostou mais de mim do que dele próprio, não tenho dúvidas. Passeava-me no colo e comprava-me bolas de serradura, presenteava-me com bananas e com batatas fritas, levava-me ao clube enquanto jogava cartas e dominó. Nunca lhe conheci o olhar característico sentido por todos, talvez falha minha, eventualmente falha dele. Guardo-o aqui igual a sempre, tal como ele me guardou da soleira da porta, para que nenhum maroto me levasse dali. Hoje, há um ano atrás, nasceu outro membro na nossa família. Sob o signo de um escorpião traquina, uma ternura, nuns olhos tão doces quanto o sorriso maroto que lhe escapa de dois dentes, solitários numa boca que se abre sempre, para um contentamento insistente. Dizem há muito, já li em livros, já escutei de vozes sabedoras, que as famílias se devem reconstituir a elas próprias, que as pessoas se renovam, que os percursos prosseguem. Hoje é um dia bom. O dia em que o velho, que já morreu há muito, apareceu para que existíssemos, e o dia em que o novo, pequeno, nasceu para que continuássemos.
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
excepção
Existem sempre os livros que nos ensinam a existir de forma saudável. Os compêndios que nos explicam como escrever, as bulas que nos esclarecem como ministrar, as sabedorias populares que insistem em tabelar. Conheço quase de cor as regras às quais sou submetida, consigo recitar o correcto e o incorrecto, na ponta da língua, depressa ou devagar. Sei o que devo comer, o quanto tenho de dormir, quando preciso de estar a trabalhar, a que horas tenho de preparar os jantares, lavar os lençóis, espanar a casa do pêlo e do pó. Sou sabedora que deverei espreitar debaixo da cama, por detrás dos móveis, nas arestas escondidas, por entre as mantas da gata. Sei exactamente quando é Inverno e quando é Verão, se é dia de descanso ou de labuta, quais os meus direitos, os meus deveres, as minhas responsabilidades e as minhas precisões. Julgo até que conseguiria escrever isto tudo num guia de bolso, devidamente ordenado alfabeticamente, etiquetado, com títulos, negritos, sublinhados, notas ou asteriscos, um manual que eu poderia consultar na hora do esquecimento, na força do cansaço, na ansiedade do medo. Mas bem vistas as coisas, nem sei se seria preciso. O mundo, o mundo que gira, não é um conjunto de regras, é um conjunto de excepções. Aceitá-las e percebê-las, é toda a ciência que ainda nos falta.
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
aquele pato é a tua cara...
(imagem retirada de psicopatos)
Não sei muitas coisas sobre amor, mas sei amar com a infinidade do sentir. Chega-me tanto. A expressão imaculada é que é o delas, morre-me a meio da frase, espalha-se ao comprido na curva de um traço, escapa-me em cada sílaba tónica, que esmorece de fraqueza na beira da realidade. Ainda assim insisto, é de mim a teimosia, e arrumo letrinhas pequenas onde se lerá a seda mesclada com linhas de batôn encarnado. Ora, o amor é sempre uma promiscuidade. De um lado o saudável do outro o doentio, de um lado o prazer do outro a dor, daqui a doçura, dali a paixão. Não sei de outra forma, parece-me até impossível. O meu amor é muito mais do que uma simples felicidade. O meu amor sou eu reflectida em ti e tu em mim, e estamos tão longe da perfeição, que se fosse em compasso estaríamos redondamente enganados.
Assim, loucuras à parte, vamos a meio da estrada. Eu, como sabes, vou atrás de pendura, e aproveito para te dizer que se me deixares cair terás de voltar para me ir buscar. Amores reveladores são únicos e completamente inevitáveis, só quem não ama assim é que não sabe disso.
( desculpa, mas aquele pato é mesmo a tua cara. Quanto à pata, falemos depois...)
sábado, 25 de outubro de 2014
colo
Há frases que deveríamos ser obrigados a ler até ao infinito. A copiar todos os dias e a soletrar, letra por letra, sílaba por sílaba, palavra por palavra. Talvez desta forma, lá para os confins do nunca, houvesse uma forma de as aconchegarmos em nós. Ainda assim, desconfio, duvido que tivesse colo para elas. E o meu colo é grande, asseguro-vos, cabe lá uma pessoa inteira.
sexta-feira, 24 de outubro de 2014
gravitação
No mundo temos demasiadas vezes duas simples classes. Como se tudo fosse divisível por número certo, sem vírgulas, sem casas decimais. De um lado os que julgam que a humanidade gira em tordo deles. Do outro os que desfazem em prol da humanidade como se de um estorvo se tratassem, sendo portanto pertinente a acção e o respeito produtivo, sempre direccionado ao centro. Retiro, para além de outras coisas, bem além de um numero par, que há os que se julgam o cerne, e os que constituem a periferia. Algures no intervalo pouca gente habita. E deve ser também por isto, que o mundo gravita.
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
vincular
A vinculação é seguramente uma das nossas urgências mais básicas, no que confere à saúde mental. É a partir dela que se organizam de forma salutar os patamares da socialização, sendo que o inverso não deixa de ser verdade, ou seja, partindo do pressuposto de que evoluímos em interacção com o meio, constitui uma fonte de desenvolvimento intrapsiquico e individual. Votar crianças aos cuidados institucionais provoca de forma directa uma dificuldade severa na manutenção dos objectos vinculantes. Induz a um medo de afectar o desejo a uma presença inconstante, que foge ao fim de semana ou passados uns meses de contrato, porque surgiu qualquer coisa melhor (pode sempre surgir qualquer coisa melhor quando não há amor). A manutenção da alimentação e do cuidar o físico continua, a meu ver, a sobrepor-se largamente ao cuidado afectivo, mas a realidade é que a saúde vai muito além de um corpo alimentado e aquecido. O jornal Público apresenta-nos hoje números assustadores, que apenas resumem o que todos sabemos: há demasiadas crianças institucionalizadas em Portugal. Há muitos meninos e meninas sem um objecto próprio que lhe devolva de forma sadia o que necessitam para crescer. Há demasiados meninos e meninas que em vez de colos sempre iguais conhecem inúmeros, exagerados, porque nos afectos o que é demais também pode enjoar (ou neste caso falhar). E há demasiados meninos e meninas que conhecem a rejeição em fases e frases, por dentro e por fora, com todas as características que nada têm a ver com a língua e com a construção frásica que a sociedade parece valorizar ao infinito. Pode estar em sofrimento, desde que seja bom aluno. Pode estar em desconforto, desde que seja educado. Pode chorar de noite desde que sorria de dia, e pode ter a alma rasgada, desde que o corpo cumpra os parâmetros analíticos da hemoglobina, dos leucócitos, dos linfócitos e das plaquetas. Há caminhos a percorrer no sentido de inverter a marcha. São passos pequeninos a ser dados num país em crise, onde os orçamentos pesam demasiado quando comparados com a necessidade efectiva de uma criança (de muitas crianças, acabamos por concluir). A redefinição do terceiro sector, o incentivo à criação de famílias de acolhimento devidamente apoiadas, a evolução de uma responsabilidade social, fazem parte de uma consciencialização do assunto verdadeiramente urgente. Uma grande parte da população não sabe o que é não ser visto, não ser chorado, não ser sentido. Doer apenas às pedras da calçada deve ser mais frio do que essas pedras, que nunca na vida chorarão. Pensar sobre isso é um mínimo aos qual todos nos deveríamos obrigar. Pela emergência da compreensão.
terça-feira, 21 de outubro de 2014
capricho
Nasceu um dia pertinho da hora do jantar. Algures alguém escrevia que os sons tocariam uma melodia sedosa e doce, com cheiro de cravinho e a tomilho fresco. Nunca se esqueceu do que diziam as rezas, Carmina deixava-lhe escrito, todos os dias, num papelinho dobrado pousado no banco do jardim (os figos serviam para acompanhar, um de cada vez). O gato das botas, escrito em livros pequenos e mansos, ensinava coisas aos meninos que sabiam que amanhã naquela hora estariam ali outra vez. A ciganita escura passava devagarinho com água fresca para o chá ( tu nunca gostaste dela, tinha piolhos, uma maleita danada). A tarde trazia um som sereno que se entregava aos ouvidos de quem o deixasse entrar, ao mesmo tempo que a brisa fresca se recolhia da noite e do perigo. A música continuava, ali para as bandas da casa velhinha, e tu seguravas-lhe sempre na mão pequenina. Agora morreste-lhe e parece que ninguém percebeu ( ou todos leram assim de longe). Há uma festa que lhe deves e é preciso que lha pagues, hoje, no sítio que ambas sabem, nem tarde nem cedo, nem de noite nem de dia. Claro, não se exigem presenças a pessoas como tu, só às terrenas. Mas a única verdade é que te escolheu a ti (calma, tem calma, sempre a soubeste caprichosa). Não faltes.
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
não que seja pouco, mas
dantes não era assim. Dantes não havia net nem youtube, e as músicas ouviam-se numa estação de rádio muitas vezes de mau gosto, dizia eu, na altura adolescente, pessoa de gosto duvidoso. Aqui na terra ouviam-se então os discos pedidos, uma hora por dia em que podíamos escutar a música que nos elevava os sonhos, que nos rodopiava o corpo mesmo sem querermos, que nos atingia a dinâmica própria das meninas de catorze, uma coisa que não tem descrição possível porque não há palavras que traduzam a idade em que tudo se sabe, sem nada se saber ao certo. É por isso que eu acho que o meu filho tem sorte em ter uma lista escolhida por ele num programa concebido para o efeito, com o propósito de outros rapazes e raparigas iguais a ele poderem escutar o que entenderem, sem que para isso tenham de esperar pelas seis da tarde, perto de um telefone fixo que marque o número que os deixará no ar, a solicitar a banda sonora do momento. Ou isso ou passar o dia com o ouvido ligado à estação que passa tudo menos o que apetece, à excepção de uma ou duas vezes por dia, claramente "a hora do dia". Depois, quase ao mesmo tempo, acho que ele tem algum azar. Quando penso que ele nunca saberá o que é a borboleta da expectativa por pequenas coisas, que são maiores do que o mundo. E que terá dificuldade me perceber o valor da espera e o que se poderá fazer com ela, que é uma infinidade de coisas que já nem me lembro. E que não chegará a experimentar a loucura que é ligar para uma rádio e falar em directo, enquanto se pede com vergonha "aquela música". É que depois "aquela música" sabia a vitória e a vontade, enquanto as músicas de hoje sabem só a música. Não é que seja pouco, que não é, mas dantes não era assim.
(O esforço de hoje está em saldo, é só carregar num botão. Vem em rolo continuo, ininterrupto, e quando pára bloqueia o cérebro. )
(O esforço de hoje está em saldo, é só carregar num botão. Vem em rolo continuo, ininterrupto, e quando pára bloqueia o cérebro. )
domingo, 19 de outubro de 2014
felicidade
O impulso, totalmente primário e emocional, fez com que tentasse ir ainda mais fundo na tristeza humana. Na raiva, na injustiça, na revolta. Durante dias inteiros escutei choros, vergonhas, culpas, tumultos que se expressam com força do corpo para fora, gritos que procuram um único lugar para espelhar. Somos maus nisso, somos muito maus. Cultivamos o belo, o correcto, o sorriso e a felicidade. Não aceitamos a lamúria porque dói nos ouvidos e porque nós próprios não sabemos o que fazer com ela (confessem, a impotência é toda ela um lugar indesejado). Perante um sorriso é fácil, sorrimos também. Perante um salto de alegria partilhamos e recebemos, mas perante a culpa tentamos apaziguar. Mudamos o mundo de lugar, redimensionamos os papéis, espreitamos outras perspectivas que nos conduzam à inocência do acusado, e fazemos-lhe frente (como se ninguém tivesse o direito à culpa). Na tristeza somos ainda mais ferozes. Arrancamos pessoas do lugar do queixume para as levarmos para o meio de uma festa, um conjunto de ânimo à base de concentrados que vai apaziguá-la e mostrar-lhe que o mundo é cor-de-rosa, e não negro da cor da noite. No seguimento calamos gritos, abafamos lamentos, escondemos esbracejos para que ninguém perceba a vergonha da fragilidade, para que ninguém cheire o odor da dor, para que ninguém definhe de inoperacionalidade: é claro, é claro que as nossas próprias fraquezas são residentes ali. É claro que o que pretendemos é que a coerência se liberte para o redor, e que as ondas de harmonia se expandam ao mundo (seria tudo tão mais fácil). Caminhei sozinha ao longo da estrada, num hino à nossa ignorância e à nossa vontade de serenar sempre. Como se isso fosse possível, como se isso se traduzisse em maior felicidade (como se a felicidade não fosse muitas vezes, o resultado de inúmeras tristezas).
( A ausência foi também ela um impulso inicial de cansaço. A elaboração secundária que possa ser sentida é um erro de percepção. Posso afiançar-vos.)
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
pausa
Uma Mulher que não chora, certamente ficará cansada. Por ora descansa, por tempo indeterminado. Obrigada a todos.
terça-feira, 14 de outubro de 2014
aqui e ali
É quase sempre cobardia. A culpa é toda dela e era ela que
deveria vivê-la, espremê-la, cheirá-la e esgotá-la. À inveja, devo dizer. Os
calados censuram as vozes que não têm, os ansiosos desdenham a calma que foge,
os desalinhados desprezam a ordem que lhes falta e os acanhados acusam o audaz,
que cobiçam até ao mais ínfimo poro de pele. Tal como os homens desejam a lábia
do encantador, e as mulheres namoram em segredo os olhares roubados pelas sedutoras. Iria
mais longe. É vontade que pinga muitas vezes das palavras que cortam o ar, em
nome da congruência, da moral e do bom costume. É dor que regressa na volta, é tumulto
que se firma, teimoso, diante daquele que arrisca galgar a normalidade. Aposto,
juraria, que todos sabem do que falo: muitas vezes cobardia, para além de
admiração.
Depois de saltá-la, já podemos regressar tranquilos. Já fomos
e já viemos, já sentimos e já retomamos, há uma batalha travada e uma guerra vencida, daí em diante estamos mais serenos. Ou seja, a cobardia e a inveja nada mais são do que atiçadores de almas cautelosas.
Um mal necessário, que peca somente um pouco aqui, um pouco ali.
crescer
Com o tempo seria suposto eu ganhar tolerância.
Deveria ser paciente para os que vagueiam, tranquila com os que demoram, pacífica com os que descaminham, calma com os que escolhem perder, em vez de
vencer. Todos estes conceitos se traduzem em liberdade, o direito que cabe a
cada um e a cada qual, a autonomia que rege os movimentos da evolução. O meu
único entrave é a impossibilidade da total individualidade e a consequente interligação
entre pares, com carácter permanente. As outras acções interferem nas minhas, os erros alheios posso eu ter de pagar. Acabo a crer que nesta realidade interdependente há conceitos demasiado impossíveis para serem
postos em prática, talvez por isso a liberdade continue a ser um
sonho, a cumplicidade uma ilusão, a vontade um dom individual, e o resultado
final somente o possível, da lógica comunhão.
Há supostas formas de vida superiores que não nascem com o tempo, esbatem-se, no confronto com a realidade. Quem me disse um dia que eu iria crescer, mentiu-me. Aqui não crescemos, só nos adaptamos.
Há supostas formas de vida superiores que não nascem com o tempo, esbatem-se, no confronto com a realidade. Quem me disse um dia que eu iria crescer, mentiu-me. Aqui não crescemos, só nos adaptamos.
domingo, 12 de outubro de 2014
1 de novembro, um dia como outro qualquer
Movo-me no meio de um circulo de perspectivas importantes no que confere à vida e à morte, e no que respeita à validade de um testamento vital, com perspectivas francamente distintas sobre o assunto. Se por um lado as ciências médicas optam, na generalidade, por sustentar o corpo ao limiar da possibilidade, por outro as ciências que se debruçam sobre os processos mentais analisam o todo, e consideram que a qualidade de vida é um direito tão ou mais importante do que um simples coração a bater artificialmente, impossível de se encontrar outra vez.
A questão da eutanásia, demasiado importante para ser esquecida, mas excessivamente delicada para excessos de discussão, vai um passo à frente, sendo um assunto que se impõe com urgência para uma análise pluridisciplinar, livre o suficiente para não reduzir um ser humano a uma crença religiosa, e respeitando a liberdade a que todos temos direito. Não trago para aqui, também devido aos motivos que atrás descrevo, incentivos polémicos que remetam para algum dos lados, não me sinto sequer capacitada para o assunto. Arrisco apenas algumas questões, as mesmas que me perseguem, e que estão totalmente isentas de dogmas limitativos; Brittany vai morrer a 1 de Novembro. Por escolha sua, numa solução mais rápida que matará de vez por todas o tumor que a mata ela, devagarinho. Será legítimo? Se não considerasse esta hipótese, iria ficar sujeita a uma degradação prevista que não pretende para si, enquanto ser humano e enquanto pessoa. Será justa para com ela mesma, privando-se dessa travessia de evolução? Acreditando na ignorância sobre o futuro, e encarando a ciência como em constante evolução, até que ponto perderá a oportunidade de algum aperfeiçoamento inesperado, ligado à ciência médica?
Planear um nascimento em qualquer circunstância, mais ou menos razoável, é uma acto natural, onde a interferência directa com a natureza não cabe como questão. Planear a morte, por sua vez, vai contra distintos princípios, com inúmeras frentes e opiniões. A liberdade e a dignidade de cada pessoa acabam por ser, a meu ver, os nobres reitores de cada processo. A lei, por si só, talvez não devesse imiscuir-se tanto no assunto. Parece-me demasiado pessoal para constar no limite de um decreto.
sábado, 11 de outubro de 2014
...
De manhã bem cedo encontro o vizinho no patamar da escada. Bem velho, bem zangado, bem documentado. O país que temos vale pouco ou perto de nada. As pessoas que o compõem não têm vergonha, têm umbigo, e à volta dele gira um mundo individual de cada uma delas. Bem feitas as contas e é reparar que existem milhões de mundos diferentes e não existe um único mundo comum. Ergue-me o dedo ao alto e defende a educação. Acena com a cabeça e afirma que a força do trabalho já moveu montanhas, que a dignidade dos valores já edificou casas, que a união da família já salvou vidas inteiras, que a palavra já valeu por um papel. Hoje não sabe onde está, sabe apenas que não pode sair de carro desde ontem, ficou trancado por um outro que resolveu barricar a entrada da garagem. Conversa puxa conversa e afirma-me que certamente será do jovem que urina no muro do prédio pela manhã, uma vergonha. Prossigo caminho e amaino pensamentos. Atravesso o dia e encontro a noite, quente demais para o Outono que nunca mais chega. Apresso-me na chegada e por coincidência encontro o mesmo vizinho, bem velho, um pouco menos zangado. Já tivera ordem de saída, era um carro que avariou o sistema electrónico de sobrevivência. Perante a chuva, em vez de fechar abria os vidros, carecia de ser protegido. Uma desculpa esfarrapada, diz-me, não me convenceu. Já vinha a rir-se, subiu devagar. A menina vem cansada, prossegue. Ideia sua, deixo transparecer. Olhe que eu sou velho mas sei da vida, diz-me antes de entrar à porta. Sigo e penso no que me vendeu de manhã. A força do trabalho, a dignidade dos valores, a união da família, a solidez da palavra. Entro e arrepio-me, subiu-me um frio da espinha, certamente uma ponta de ar. Respirei fundo e deixei-me ficar.
sexta-feira, 10 de outubro de 2014
quinta-feira, 9 de outubro de 2014
exageradamente caro
Sou capaz de ter tolerância para a impertinência. Consigo aceitar a indiferença, perceber a distracção, compreender o esquecimento. Facilmente recolho paciência dos fundos do corpo. Arranco a gancho palavras improváveis, utilizo com parcimónia os recursos anímicos que falo abaixo, distribuo sorrisos pelos bons e pelos menos bons, pelos que sabem e pelos que não sabem, pelos que me conhecem e pelos que me olham todos os dias, como se fosse a primeira vez. Mas encolho-me, retraio-me e retorço-me, quando me cospem no prato que eu dou. Nessas alturas, quando o corpo aquece e a mente arrefece, distribuo sorrisos como quem dá salvas de prata. É caro o meu sorriso. Custa bem mais do que dois tostões, meias conversas ou lustros ao ego. Na retaguarda não há gravações esclarecedoras. Nem que me peçam, nem que me implorem.
terça-feira, 7 de outubro de 2014
ânimo
A força anímica depende de um conjunto significativo de circunstâncias internas e externas a nós. Varia com o sol poente, com a lua nascente, com o amor crescente, com o desânimo latente. A fluência com que vagueia interna e externamente, assusta qualquer mago do pensamento. A rapidez com que se alterna, a inércia com que permanece, a violência com que se instala, o vagar com que se demora. Por ser tão própria, deveremos mimá-la. Para isso é preciso guardá-la, à boa, dentro de uns frascos sempre à mão. Ou numa caixa de pó de arroz rosado, uma delicadeza. Pior ainda do que não guardá-la, é esbanjá-la. Esbanjar força anímica como se fossem migalhas de pão, é uma tremenda incorrecção. Na hora do testemunho, estamos frente a frente com um saco vazio.
domingo, 5 de outubro de 2014
outono
Enfada-me o calor do Outono, é a coisa pior que se segue ao do Verão. Baixa-me na cabeça com uma força capaz de me colocar em estado de dormência fora de horas (dormir à hora certa é que nada). Outro dia, a meio de uma tarde, dei por mim capaz de acordar somente umas horas depois. De me esticar debaixo da palmeira do jardim e desfalecer, juntamente com os lagartos, os gatos, os cães. É claro que me foi impossível. Ao fim da tarde, na hora do regresso, encontro-os a cumprir o meu sonho (vida de cão também é isto). Este Domingo fresco sabe-me portanto a nozes das verdadeiras. A isso e a qualquer coisa semelhante a conforto. Sim, obviamente que comida casa com Outono, como casa com Inverno, como quase casa com Verão. As mantas da família já cheiram a frescura acabada de lavar. As pantufas marinam na prateleira, as botas regressam à vida, as meias dizem-me que daqui a uns meses é Natal. Não tarda nada e chegam as castanhas, os figos secos, os bolos de passas e rum. Não tarda nada e o Inverno acaba outra vez. O tempo corre que nem o vejo, mas juro que tento. Outro dia, o do calor, enquanto espreitava o gato de pernas esticadas, quase vi um minuto a escapar-se no ar. Terminou antes de o ser, e já me chamavam de volta ao mundo real (era precisa ali ao lado, e a necessidade mata qualquer deslize inconsequente).
sábado, 4 de outubro de 2014
perigo
Às vezes dou por mim interessadíssima num programa de televisão. Raro, muito raro, é de aproveitar. Ontem estava perdidamente apaixonada pela malvadez de Adolf Hitler, um homem que reunia no corpo fraqueza e maldade, um alvo de considerável interesse no campo da psicologia. É antagónica a vida que nos atiça o gosto por tudo quanto desvie, ao mesmo tempo que nos faz querer a harmonia, impossível de existir. Questiono-me como seria o mundo que eu ambiciono, coerente, regular, proporcionado. Ou no mínimo o que seria dos instintos de quem se exalta com o desvio andante. O que me intriga mais ainda, são as propriedades sedativas de um bom programa televisivo. Não sei quanto tempo passou até ouvir o meu filho, em surdina nos meus ouvidos, acorda mãe, já acabou... Por essa altura tinha abandonado por completo a minha curiosidade e o meu alvo infeliz, e já ia num mundo interno, perdida numa viagem de um sonho qualquer, quase tão disruptivo quanto maníacos medonhos. Um perigo este meu interior.
quinta-feira, 2 de outubro de 2014
pequenos mestres
A vida é feita de pequenos mestres. São eles que me orientam no meu dia a dia, me ensinam as cores da calma e do medo, me transmitem o lado de mãe e o lado de filha, o lado da mulher e o lado do homem, a casa do novo e a casa do velho. Ouço-os muitas vezes falar com a ligeireza de quem nada me ensina, de quem não me traz qualquer bem, de quem pouco acrescenta ao que esta vida escreve direito, em cartazes padronizados, em anúncios optimizados, em livros científicos de extrema precisão. Estão todos redondamente enganados. A Dona Luciana da praça, a Dona Cidália da loja, a Dona Rosa mãe do Pedrinho, a menina simpática do balcão. Entre os gestos automáticos da profissão, entre a régua da educação, entre um serviço prestado por disponibilidade ou dever, dão-me lições a cada dia que encontro. É claro que a mestre maior serei eu no meu lugar, numa equivalência com todas as pessoas do mundo. Mas elas, as outras para além de nós próprios, são mestres de vida e de acção. Somos todos pequenos mestres. Tão pequenos que ninguém nos vê.
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
sorte
Quando passado 14 anos ainda não se acredita na sorte, é porque a sorte foi muita mesmo. Ou de como eu não me canso do Miguel Esteves Cardoso, mesmo quando ele fala muito na Maria João.
terça-feira, 30 de setembro de 2014
arrumações de adjectivos relativos
Temos tendência a dividir desgraças de um lado e honras do outro, pobrezas e
riquezas, feiuras e belezas, de preferência emparelhá-las bem e reunir de um
lado a perfeição, do outro a aberração. Arrumamos a pobreza na desgraça feia, e
enaltecemos a honra da beleza e da riqueza, nada mais errado, mas tão
entranhado nas gentes. A menina loira, por exemplo, linda e de olhos verdes,
que chispa má educação, diria até loucura, por todos os ângulos do corpo, é
extraordinariamente estranha. Olha para mim e deita lume, corre para a rua e
exala distúrbio, regressa, com ânsias fortes de cá chegar. No caminho descontrola
as pernas esbeltas, despenteia os cabelos presos no gancho, gesticula, efusiva,
com umas mãos arranjadas, cor de sangue, seriam quase perfeitas não fosse a
urgência dos gestos. O sorriso foi engolido pela distracção dos sentidos, a
limpidez da maquilhagem desmanchou-se, a serenidade nunca lha vi, a formosura
encontrava-se tingida de preto, encoberta por uma nuvem de pó, comida por uma aflição
imprópria, a não ser que a enquadrássemos num qualquer âmbito externo de
desesperação (ou numa interna insanidade, pois claro). Somos injustos,
vulgarmente levianos, sentimos o direito de opinar e ordenar. Gostamos de
compartimentar o que nos faz sentido, de julgar que um fraco pode muito bem ser
infeliz, de intencionar que o inteligente chegará sempre tão longe, de achar que o endinheirado merece tudo quanto é bom. Estamos ao
engano, não estamos mais do que ao engano, a linearidade não existe e uma
beldade pode ser louca, sim. Tal como um enfermo pode atingir a tranquilidade, um génio pode ser um zero à esquerda no que toca à emoção, um apaixonado pode não saber ler nem escrever, e um necessitado pode viver sempre contente.
domingo, 28 de setembro de 2014
escrever
Não é que isso interesse por aí além, mas por vezes dou por mim a pensar para quem escrevo. Das opções, poucas mas importantes, estou eu e o resto do mundo, qual delas a mais significativa. Debruçando-me apenas nos dados relevantes, apuro que se escrevesse só para mim teria um diário. Ou escreveria num livro de notas, um caderno que coubesse na minha mala de mão, rabiscos ou garatujas inconsequentes de quem despeja o lixo, as inconstâncias ou as ideias brilhantes. Mas por outro lado não posso deixar de considerar que se escrevesse para o mundo escreveria de outra forma. Escreveria bonito, de coisas bonitas, de factos bonitos. Entrando na profundidade da escrita, chego ao cerne que responde a cada uma das minhas questões. Escrevo para mim mesma e para os outros, mas com distintas orientações. Escrevo para soltar, mas o vazio de um lugar fechado não me chega. Escrevo para arrumar, mas o silêncio escuro de um caderno pode não ser suficiente. Escrevo para transmitir-me, mas as linhas escuras e sombrias cheiram a mofo. Concluo o óbvio, escrevo primeiro para mim, depois para o mundo, e por fim para mim outra vez, dado que não há acto sem intenção, comportamento sem direcção, não há dádiva pura e dura, genuína, sem ponta de interesse ou carência de alcançar alguém. O facto de desconhecermos o ponto exacto onde chegamos, é a magia que nos faz continuar. É o que nos assusta e o que nos impele, uma fundamento patente na escrita, patente na vida, patente no amor.
sábado, 27 de setembro de 2014
sexta-feira, 26 de setembro de 2014
agricultura
Por vezes não consigo entender a lógica do mundo. No meu humilde parecer, francamente restrito, a natureza deveria secar alguns ventres, apagar algumas vozes, matar alguns gestos. Em vez disso fertiliza-os e dissemina incoerência, como quem planta um milheiral.
quarta-feira, 24 de setembro de 2014
saber
Por vezes acho piada ao mundo doutorado que encontro por aí. Ao sapateiro indignado que sabe muito de política, ao professor interessado que conhece a fundo o ensino especial, ao clínico geral que é master em psiquiatria, ao povo no global, que adora a expressão "de médicos e de loucos todos temos um pouco", com especial incidência na medicina, claro, por alguma coisa a loucura aparece sempre no final. Nessas alturas apetece-me rir e perguntar aos sábios onde arranjam tanta sabedoria, que livros lêem, que caminhos percorrem, que leis escutam, que multidão analisam. Nunca chego a tanto, limito-me a ler, a ouvir, a tentar perceber o porquê de tanta sapiência a céu aberto ainda não ter alcançado o efeito desejado. Depois estanco no limite da minha ignorância, pois claro, jamais me estará ao alcance perceber a fundo os fundamentos de grandeza de quem me cerca. Bem vista as coisas, e curiosa que sou nestes assuntos, arriscaria dizer que na maioria das vezes nem o próprio sabe, para que quer tanto saber.
terça-feira, 23 de setembro de 2014
starlight
(Foi hoje pela manhã que a ouvi como se fosse a primeira vez. Vá saber-se o porquê mas não os ouvia há muito, acho que quase me tinha esquecido deles. Como, como terei sido capaz de quase esquecê-los?)
PS: Uma vida sem música é como uma casa vazia.
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
fado
Trouxe-me a notícia de que foi aos fados. A festa da guitarra portuguesa geme-lhe nas veias tal e qual o grito lhe escapa da voz, mais ou menos no timbre do fadista, pela noite afora, na cadência impaciente de um corpo que se desfaz. Sempre gostou de ver cantar tristeza, tal como sempre apreciou quem morre de amor, quem gesticula prazer, quem se desmancha no grito surdo da solidão. Desde há muito que a indiferença a indispõe. Indispõe-lhe o estômago, indispõe-lhe a mente, indispõe-lhe o corpo e as reacções, chorilhos de acções programadas que por vezes preferia matar. É que lembra-se de ser pequenina. Lembra-se de ser pequenina e da indiferença da mãe ser o suficiente para que o pai aparecesse vestido de monstro e arruinasse a casa, na calada da noite, também ela indiferente. Corria seguidinha, minuto sobre minuto, hora sobre hora, uma atrás da outra. Uma vez espreitou pela janela e era quase madrugada. Na casa em frente alguém a mirava, impávido, como se o cigarro aceso fosse a única coisa possível de se fazer. De manhã era tudo muito mais claro do que a água que pingava do beiral. O rosto da mãe sorria, uma festa na cara antes de ir para a escola, a noite estava longe de aparecer, faltavam horas, era mais logo. Começou cedo, muito cedo a saber que o mais logo chega tão depressa. Nessa altura, lembra-se bem, escolheu um boneco e levo-o consigo. Fez-lhe festas todo o dia e jurou a si mesma que jamais o abandonaria, se ele também não a abandonasse. O boneco, calado e diferente, colou-se a ela com toda a força do mundo. A indiferença, diz-me de olhos rasos, é uma dor que alguns seres inanimados podem apagar, e que alguns seres vivos podem acender. Sei disso, digo-lhe calmamente. Os fados, continua, os fados gritam ao mundo o que o corpo cala, embrulham-se num xaile e esbracejam, espremem a guitarra e aparecem, em cada esquininha, em cada voz. Jamais lhe serei indiferente, e perdoo-lhe a preferência pela noite. A noite, minha inimiga, por vezes também é minha.
Fiz silêncio, nem sempre é pertinente. Mas ali cantava-se o fado.
nós
Há dias em que deixo de ser mulher para pensar que sou um disco rígido, formatado, tabelado, certinho, direitinho. Nesses dias acordo cedo, pela fresca, engulo cereais saudáveis, saio de casa e respiro o ar limpo da manhã. Jamais passarei pelo pão branco, esqueço-me do mil folhas espalmado e do palmier coberto, entro no talho e trago uns insípidos bifes de frango, espreito a peixeira da praça e escolho uns peixes frescos, para degustar com salada verde. Nada disso me irrita. Sequer me perturba a montra carregada de roupa de Outono, porque só tenho um corpo e já muitos casacos, dois simples pés e um número mais do que suficiente de pares de botas, muitos lenços e um só pescoço. Em casa, tudo em ordem. Arrumo os sapatos no sítio (não vá alguém tropeçar e partir uma perna), o frigorífico respira bem estar, não há fruta engelhada, legumes secos, batatas com borboletas ou bolinhos com bolor. As mantas da sala estão arrumadas e a gata não se esconde lá por baixo por forma a desorientar o espaço. As almofadas não se encontram a dormir no chão, não há lenços ranhosos na mesinha, não se vislumbram contas espalhadas à espera de pagamento, trocos de um cêntimo, envelopes rasgados, migalhas de pão. A Teresa está limpa. O Óscar nada lampeiro no aquário de vidro, os livros estão ordenados, não há material de avaliação psicológica espalhado pela sala, desenhos projectivos ou tabelas de aferição. Mas que perfeição.
Depois há outros dias em que sou mulher e em que tudo se inverte. Em que nada me parece chegar, em que tudo me parece apetecer, em que a desordem, a malvada da desordem se instala cá em casa com pés pesados, capazes de arrastar animais comportados, filhos arrumados, instintos orientados. A cada canto choco com um papel, em cada esquina tropeço numa sandália, em cada legume descubro uma lagarta, em cada trapo encontro um vinco. Correr e zelar não me adianta grande coisa, porque na verdade a orientação é mais interna do que externa, coisa típica do obsessivo obstinado. Na realidade, bem vistas as coisas, nunca está tudo perfeito nem completamente desorientado, e nós somos tanto a nossa realidade. Por causa disso também me dou ao luxo de mandar à fava o calendário. Com a inerente consequência de ainda não ter descoberto ao certo, se hoje está um dia de Outono ou um dia de Inverno.
domingo, 21 de setembro de 2014
ovação
Quando durmo sestas acordo com uma dor nos sentidos. Necessito de acalmá-los, de sossegá-los, de colocá-los de novo no ponto certo da precisão. Hoje foi um bolo de chocolate, congelado há muito, que me trouxe de regresso ao mundo real. Daí a minha ovação ao microondas, a máquina que me permitiu comê-lo em escassos minutos, morno, acabadinho de fazer. A dose foi excessiva, é um facto, a fatia generosa, a gula impetuosa. Dessa parte, confesso, desliguei. Há pecados perante as quais desisto de contabilizar consequências, ainda antes de começar a cometê-los.
dia internacional da paz
( fotografia retirada do google)
(se esquecermos todos os outros para generalizar este, ganharemos.)
sexta-feira, 19 de setembro de 2014
imaginar
Longe vão os tempos em que rumava com o meu filho às salas de cinema a fim de comer pipocas, beber coca-cola e assistir a um bom filme de desenho animado. Cá dentro guardo todos os "Toy Story" ( uma das melhores animações de sempre), algumas divertidas "Idade do Gelo", muitos fabulosos "Madagáscar", uns dois "Shrek", um "Up Altamente" de derreter o coração, uns "Rio" deliciosos, dois "Gru Mal Disposto", bem mais interessantes do que o nome nos faz imaginar. Guardo ainda perus revoltados, dragões treinados, meninas indomáveis e outros tantos dos quais já nem lembro o nome, vistos de olhos aberto ou meio fechados, dependia da hora, do dia, da semana, do cansaço. Hoje já não liga à minha pergunta do, vamos ao cinema?, a não ser que o pacote traga Transformers ou outro de carácter semelhante, enormes monstruosidades fantasmagóricas, felizmente inexistentes, capazes de nos desassossegar duas horas seguidinhas, de ficar com uma pipoca atravessada na garganta por algum susto maior, de nos impedir de fechar os olhos, tal o barulho da maquinaria em acção. Nem mesmo a sedução do hambúrguer, remate final sem o qual não vivíamos, o faz sentar-se comigo num lugar onde a animação ainda existe, e do qual eu tenho saudades. Não que a minha imaginação não viva fora de uma sala de cinema, que vive. Mas quem já foi ao cinema com uma criança sabe que em nenhum outro lugar é igual (as crianças e a imaginação fazem do mundo um lugar tão melhor).
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
Dr. Scholl
Uma unha de um pé. Uma unha de um pé é tudo o que lhe basta para que o resto do corpo doa, não há direito. Explica ao Senhor Doutor, que perante a impaciência a questiona de forma alargada sobre distintas questões. No final, prematuramente julga ela, mas com um ar deveras consubstanciado, afirma ela também, atira-lhe à cara com uma menopausa precoce. Sabe como é, não vai para nova... A unha passou a ser quase um pormenor; o resto não é que a assuste, mas verdade seja dita, mete respeito. Logo depois levanta umas palmilhas coloridas do filho numa loja de ortopedia. Tropeça na entrada, sempre foi desajeitada, eventualmente (é quase certo) desde que nasceu. O senhor do balcão percebe e tenta vender-lhe uns Dr. Scholl, são um conforto, uma segurança a andar, hoje até bonitos já são... Nessa altura, do alto dos seus saltos, via-se, começou a ficar perturbada. Não lhe ocorreu mais nada senão contrariar o que o médico lhe tinha diagnosticado previamente, e controlou a irritação (vencer é sempre o melhor caminho). Foi o que valeu ao vendedor, uma simpatia de pessoa, um profissional atento e prestável. Merecia lá o pobre tamanha indignação.
onde?
Gosto da intenção sadia de quem me cerca. Do cuidado genuíno de quem percebe que o que me conforta é um chocolate gelado e não um chá quente (não posso com camomilas), de quem descobre que prefiro uma manta velha e macia a um casaco engomado, de quem compreende que há momentos em que profiro palavras a mais, apenas por falta de gestos úteis (adoro a lei da compensação). Muitas vezes, por amor, predicado ou atenção, descobrem-me até aos fundilhos da alma. Desnudam-me os medos, as fragilidades, delineiam a pincel fino as arestas fechadas, delimitam as fronteiras, precisamente, sem milímetro de falha ou hesitação. Não raras vezes, falham redondamente. Nelas, não sei a que mecanismo me socorrer, a que fundamento me agarrar, em que teoria me encostar. Nelas, quando a insalubridade da consciência não se higieniza com a singela vontade de quem para todos os efeitos, sabe de nós.
terça-feira, 16 de setembro de 2014
modernices
Não sei o que seria de mim sem tecnologia. Já não me lembro do que é ter uma televisão de dois canais que iniciam a emissão ao final do dia, que dão meia hora de desenhos animados para depois mergulharem no fosso negro do noticiário, sempre em alto e bom som, a barulheira da criançada era uma coisa tremenda. Já não sei o que é viver num mundo onde não existem clics mágicos que nos colocam instantaneamente, tal e qual gelatina royal, em conexão com a rua ao lado, a casa em frente, a cidade distante ou o outro lado do mundo. Hoje as crianças circulam na rua com telemóveis na mão, preciosos localizadores de nos dão informação exacta no minuto da preocupação, no instante nervoso da dúvida, na hora do entardecer. Era eu miúda e desaparecia no fim da escola. Qual dez anos, cinco ou seis, um pão com tulicreme, uma bicicleta de cross e uns quantos e quantas iguais a mim. Havia poços no chão a descoberto, carros na estrada a desviarem a passagem, montes, vales e rios de água gelada onde nascia agrião. Sabiam lá de mim até que Deus quisesse. Anoitecesse e se o ouvido estivesse afinado, limpo de ceras e ranhos que entopem do nariz até ao último neurónio do corpo, e era escutar Carmina, bem alto do cimo do terraço, naaaaaaaa ouuuuuuuveeeeeeessssss??????????....... Ouvia, às vezes ouvia. Outras não, e era o relógio das vacas que regressavam do pasto que me lembravam que era hora de recolher. Nunca havia preocupação com a minha ausência. A aldeia era limpa, os rios corriam sãos, os poços serviam o propósito da rega, sacada a balde fio acima, não devoravam meninos na escuridão. Hoje há muitos mais perigos a cercar meninos. Não se contam histórias de papões, poderia traumatizar as criancinhas, mas controlam-se os passos das ditas até que as mesmas sacudam os adultos como quem sacode o pó do cansaço. Todas necessitam de estar permanentemente monitorizadas, controladas, localizadas, a excepção não existe e a liberdade é uma cor estranha que talvez jamais se encontre na loucura do horizonte. Percebo tudo, não sei o que seria de mim sem a tecnologia que nos guia até ao outro que nos aquieta. Faço parte da geração de pais que se assusta (qualquer coisa) com a ausência, com o espaço demasiado aberto, com as horas sem relógio de pulso, aquelas que nos nascem no corpo sem demais indicação. Mas de uma coisa eu tenho quase a certeza. O meu filho, uma criança controlada pelo mundo ( talvez não muito, mas sempre qualquer coisa), certamente não irá saber o que é pão com chocolate e formigas. Se calhar nunca descobrirá se o ploc da sua pedra é o mais sonoro do poço da horta, talvez nunca demore muito, para me sossegar a preocupação. Não será menos feliz por isso, quero acreditar, será só feliz de outra maneira, mais tecnológica, muito mais à frente. Coisas dos tempos modernos.
segunda-feira, 15 de setembro de 2014
círculos
Hoje, especialmente, estou com todas as crianças que chegam ou voltam à escola (e com uma ou outra, de forma ainda mais especial). Nestes dias, como de resto em todos os outros, é importante repensar o papel activo de cada um de nós, em particular pais, avós, professores e todos os outros membros da comunidade educativa. Elas vêm de nós, mas nós seremos delas, daqui a uns anos. Nunca nunca, se esqueçam disso.*
domingo, 14 de setembro de 2014
equilíbrio
( Imagem retirada do google)
Sempre soube que a vida é feita de equilíbrios, de contrabalanços, de harmonias. Por isso sabia bem que não deveria sair para o cabeleireiro com uma leitura pesada no saco, mas a espera era longa e a GQ, sempre presente no salão, não chega para me entreter as vistas (lamento, estou fartinha da Scarlett Johansson). Sentei-me e folheei as folhas amareladas, absorvi umas letras, digeri um pouco de história, numa dada altura apercebi-me de que a empreitada descrita ia demorar a construir, ia ser dura de erguer, ia custar a parir (obras grandes têm sempre este malvado senão). Ao fim de uma hora naquilo, enquanto o cabelo tingia e a minha força se empenhava em me manter à parte da conversa alheia, sonora e animada, chega a tesoura. Uma senhora tesoura, devo salientar, basta encostá-la de mansinho e o cabelo já foi. Olhei para o espelho e senti-me pesada. Sacudi os cabelos para trás, mirei-me de lado como uma desconhecida, fitei os artistas de arma em riste e anui que se entretivessem, outra longa hora, mais coisa menos coisa. Ainda não perdi a força mas lembrei Sansão, e confesso que tive medo que tal desgraça acontecesse. Foi do livro, não tenho dúvidas, o acesso só pode ter nascido do livro, demasiado pesado para se aguentar com meras manobras de manutenção.
(Ou do facto de, bem vistas as coisas, ter uma pontinha de inveja da Scarlett Johansson.)
sábado, 13 de setembro de 2014
o perdão
Ontem um menino trouxe-me um texto retirado da net que defendia a prescrição dos crimes ao coração. Mais ou menos como na justiça, na qual os anos servem para apagar o que de mal se fez ao mundo. Desenhou de seguida uma série de desenhos aos quais juntou um conto onde um casal dá tiros um ao outro. No final da história estão ambos de mãos dadas, e o menino defende por si que o perdão é o que nos salva. À parte da inocência infantil, apeteceu-me acreditar cegamente na realidade sob a qual a sua crença incidia. Apeteceu-me procurar a história dos crimes do coração, lê-la de trás para a frente e da frente para trás, perceber até que ponto temos reais mecanismos para induzir essa acção de prescrição que poderia ser de dez anos, quinze anos, vinte anos. Nos meandros primários da nossa estrutura mental, não encontrei cabimento para a teoria. Pareceu-me rudimentar, limitada, reduzida a uma simples regra de precisão matemática, hoje dói, amanhã já não. Porém, à medida que aprofundei o inconsciente e me deixei envolver nos seus territórios secretos, considerei que a validade da dita, ainda que limitada, pode bem ser considerada. Talvez isso justifique uma criança maltratada ser capaz de amar, uma mulher traída ser capaz de acreditar, um velho abandonado ser capaz de gostar. Curar feridas abertas de corações destroçados cansa, e perdoar todos os dias também, será eventualmente por isso que vão prescrevendo cada um a seu tempo, sem critério definido em termos de exactidão, sem regras claras, por vezes até em contra-mão. Um dia, tenho para mim, lá mais para o fim do caminho, deveremos ser capazes de os eliminar mais depressa. Deve ser nessa altura que quase nos morre a desilusão.
( Um obrigada especial ao menino que me colocou a pensar sobre o assunto com este afinco. Há sítios onde as paredes escuras do tempo se instalam firmes, e um mote singelo sobre uma coisa boa é uma pérola preciosa, capaz de me enfeitar o espírito, afagar o corpo, dar-me a mão.)
sexta-feira, 12 de setembro de 2014
fim
Sem faltas modéstias, sou genuína. Ainda se ouve dizer que é uma qualidade, que revela um bom carácter, que traduz personalidade consistente, que transmite segurança. Temo que seja relativo no proveito próprio, e considero-a um excelente predicado apenas em questões de princípio social e de consciência. No mundo que eu conheço para se viver bem é preciso agradar a gregos e a troianos, mostrar encantamento mesmo por quem não se tem, encostar ao lado dos que sabemos serem importantes, ainda que isso nos custe em esforço. Uma das minhas maiores dificuldades actuais é ensinar ao meu filho o porquê de eu ainda considerar a genuinidade uma coisa boa: cada vez mais as pessoas são um meio e não um fim, não valem por si mas pelo que nos dão, não constituem um valor mas um trampolim de subida, um puro delírio, pseudo-evolução. No topo de tudo, houvesse varinha de condão, e era transformar pessoas em pequenas moscas capazes de escutar. Nos minutos seguintes desabavam as casas, desabavam as ruas, desabavam as cidades e desabavam os países, desabava o mundo e erguia-se a guerra onde morreríamos todos, genuínos incluídos, esmagados pela fúria da constatação.
(A minha avó sempre me ensinou que magia só nos livros e nas crianças. Sendo assim, continuemos.)
quinta-feira, 11 de setembro de 2014
quarta-feira, 10 de setembro de 2014
rentrée
Faço retrospectivas vezes de mais, raramente no último dia do ano. Porque há muitos outros dias em que me apetece fazê-las, em que ameaço os erros e valorizo as virtudes, em que planeio mudanças e reitero a importância de perpetuar alguns dos meus hábitos de vida saudáveis. O inicio do ano lectivo, por exemplo, marca-me sempre, a mim, que não tenho directamente a ver com o ensino. Marca normalmente um final de férias e de um período de descanso, coisa que me acontece raras vezes no ano, dado que passo semanas sem conseguir pegar num livro que me conte uma história, dias inteiros com milhões de coisas na cabeça incapaz de voar, noites completas em que depois das prioridades o corpo já não quer as séries que me distraem do mundo, e eu confesso, preciso de me distrair do mundo. Ainda ontem vim de férias e a minha agenda afigura-se-me como a minha maior inimiga. Apetece-me apagá-la, mandá-la ao ar e esperar que ela morra, fingir-me a mim de morta e fazer as pessoas acreditarem que durante as ditas desapareci, engolida por uma escarpa ventosa, algures em sítio nenhum. Não gosto de regressos e de encontrar iguais as minhas dificuldades. Não aprecio o sentimento de impotência que me faz questionar a minha resiliência, a minha inteligência, a minha competência. Talvez seja por isso que por vezes me desacredito. Nestes dias, felizmente poucos dias, não há quem me faça mudar de sentir. Não há quem tente, ou no mínimo, não há quem consiga. Daqui a pouco tempo, de novo submersa no ritmo da loucura, sosseguem, estarei em mim outra vez.
terça-feira, 9 de setembro de 2014
...
( Foto de Sean Connery, retirada do google.)
(De recantos perfeitos está o mundo cheio.)
echarpe
Não sei ao certo quanto tempo demorei a perceber que na essência somos todos iguais. Uma franca limitação do meu intelecto, só isso justifica o nascer tardio deste facto dentro de mim, uma das mais óbvias manifestações da natureza humana. Talvez tenha sido por esta demora que por vezes me espantei quando encontrei palavras tão sinónimas de mim mesma. Textos que eu poderia ter escrito, assim houvesse a desenvoltura da escrita, palavras que eu poderia ter bramado, assim me faltasse a vergonha na hora do grito, letras que eu mesma conseguiria ter reunido, tal e qual o autor as coloca, exactamente pela mesma ordem, rigorosamente no mesmo local, precisamente naquele minuto. No restante temos o que se assemelha a um acessório, o que não significa, claro, pouca importância. Constitui o colar de pérolas do crescimento, o verniz encarnado da educação, o trajo, que pode ser toalete ou toilette, dependendo da vocação, da presunção e da ambição. A essência, essa, a gema da questão e a génese do exercício principal, é sempre igual, nunca se esqueçam disso. Como tal não aprecio grandemente que me tentem impingir a outra convicta estória, pequena mentira, tudo pura ficção. Medo é igual em toda a gente, nascer é surgir, morrer é partir, crescer é ser. Ódio será sempre raiva, e amor acarretará eternamente a mais profunda ligação. O que se julga mais enfeitado é sempre igual ao presumível desgraçado, na hora de comer, na ânsia de consumar, no infortúnio de adoecer, na urgência de se aliviar.
sábado, 30 de agosto de 2014
(...)
O amor é o final de um caminho que encontramos depois de nós próprios. Somos capazes de gostar sem saber quem somos, de nos apaixonarmos por sedução, de nos sentirmos atraídos por complemento, de apreciarmos por devoção. Julgo até que conseguimos percorrer uma vida sem nos procurarmos, que podemos trasladar montanhas sem nos encontrarmos, que somos capazes de procurar pela eternidade um rumo, sem o descobrirmos. Mas sendo assim nunca amamos. Um amor real implica solidão e encontro, necessita de fraqueza e de força, carece de retiro e pensamento, e só depois chegaremos à companhia da certeza. Jamais poderá ser uma mera projecção, será sempre um conhecimento, uma aceitação, um respeito a dois muito além de nós mesmos. Um amor real parece-me um caminho difícil que nem todos conseguem percorrer, daí a facilidade do suposto encontro e desencontro, do enamoramento enfeitiçado, do desprendimento rápido, da cómoda leviandade.
quinta-feira, 28 de agosto de 2014
em escuta
Hoje fui ao rio. Crianças geladas saltavam para a água enquanto as mães as olhavam com cuidado do lado de forma, ao mesmo tempo que os maridos jogavam cartas numa mesa de pedra. Um homem a meu lado afirma entre-dentes que ser mãe é diferente de ser pai, e eu fico surpresa com a assumpção. Inquiro, exijo uma explicação que me satisfaça a curiosidade beliscada por uma figura alta e corcunda, cinquentona e triste. A natureza não engana ninguém, disse-me, mas eu insisti numa melhor explicação. O homem adulterou o mundo ao ponto de hoje tudo estar fora de sítio, prosseguiu tranquilo. Domesticou os homens, profissionalizou as mulheres, colocou as crianças fora do colo cedo demais. Não credito no homem, mas acredito na natureza. São as fêmeas que gestam, que parem, que amamentam e que cuidam. É assim com todos os animais. O pai complementa, eventualmente substitui, em caso de necessidade, mas o verbo cuidar não nos pertence. Tal como não é nossa a dor suprema do parto, ou o dom final do amor.
( Gosto de ouvir quem pensa alto. Independentemente de onde estiver a verdade, que não pretendo descobrir.)
( Gosto de ouvir quem pensa alto. Independentemente de onde estiver a verdade, que não pretendo descobrir.)
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
pecado
Ontem abeirei-me de uma mesa de queijos como se de um manjar se tratasse. Agarrei num prato grande e abasteci-me das mais diversas qualidades, gostos e cheiros, enquanto uma fatia de pão bem grossa acompanhava o repasto. Sentei-me com calma e tranquilidade ao mesmo tempo que uma nesga de sol teimosa me atingia na cara, mas não lhe liguei grande coisa. Vazei meio copo de tinto para molhar a boca a cada mudança de paladar, e demorei-me naquilo uma boa hora. Soube-me pela vida, e fez-me repensar que a fartura é uma virtude francamente pouco recomendável. Há muito que não comia queijos e a espera valeu-me a pena, julgo ser capaz de aguardar mais um meses para tamanho petisco. É claro que não me apraz aproveitar a ideia para a generalidade dos prazeres terrenos, mas ainda assim levou-me a pensar que a avidez da ganância é um pecado bem mais danoso do que a simples satisfação de uma gula. Tudo é sempre relativo, até quando se joga ao pecado.
sábado, 23 de agosto de 2014
manhãs
Descobri há muito que sou do dia. Pertenço à claridade das manhãs, ao canto dos pássaros, ao sol nascente. Em tempos jamais transitava a noite em claro, contam-se pelos dedos de uma mão, se é que as houve. Nesse caso não duvido de que tenham sido por nobres e fortes motivos, raros portanto. Enquanto a juventude acordava a aurora com o barulho da festa, eu adormecia a madrugada, cedo, a horas decentes. Quis a vida e o destino que o trabalho apareça por vezes em horas tardias. Que o raciocínio tanja a perfeição depois do pôr do sol, que os ouvidos necessitem de estar atentos ao fim da tarde, que as palavras nasçam certeiras no inicio da noite, tudo exigências de carácter importante. Hoje, pela fresca, tudo parecia mais fácil. A arrufada escorregou lesta com o café, a senhora do botequim estava simpática, a praça ali ao lado cheirava a fresco e a flores. As palavras de quem falou percebiam-se bem, deveria ser do vento fresco que me entrava pela janela. As frases que eu proferia soavam na perfeição, certamente pela música clássica que se ouvia ao de leve. O raciocínio estava escorreito, apesar de ocupado, julgo que foi das gerberas, símbolo da pureza. À noite, por sua vez, tudo se conflui. A clareza de espírito tem, também ela, tendência a convergir com a disposição. Nem sempre o final dos meus dias é tão limpo como as manhãs. Diria até que nunca é.
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
cumplicidade
Ontem peguei num livro na calada da noite. Folheei-o com cuidado e cheirei-lhe as páginas, olhei-o muito de perto e voltei a colocá-lo na estante que enfeita com particular delicadeza, é especialmente bonito. Lamentei porque não me leu, não conseguiu encontrar-me, as suas palavras não me atingiram no sítio exacto em que me apaixono. Aviso sempre todas as pessoas para que não me ofereçam livros. Os livros escolhem-me, não sou apenas eu a escolhê-lhos, são mais ou menos como o amor. No seguimento, podem até dizer-me que está sujeito a emergir de surpresa ou em aproximação desprevenida, mas não foi o caso. Uma noite de insónia é o teste perfeito para qualquer tipo de cumplicidade. Nascente ou sucessiva.
terça-feira, 19 de agosto de 2014
não há mulheres feias, há mulheres tristes
Não há mulheres feias, há mulheres tristes. Não me cabem discursos fundamentalistas sobre o universo feminino, mas preocupa-me o exagero do conceito estético como uma necessidade fulminante, na qual qualquer mulher deve caber. Ser mulher é muito mais do que um corpo, é muito mais do que um sentido, é muito mais do que o objectivo, cego, da perfeição. Ser mulher é todo um conjunto indefinível de conteúdos, princípios, meandros e fins, para os quais o corpo é um meio, independentemente de tudo o resto. Não deixarei nunca de ser mulher à medida que as rugas se instalem, que o corpo se canse ou que o cabelo ceda, mas sou capaz de quebrar, se permitir que o mundo me governe em nome de um padrão. Deixar que a sociedade mate a beleza que todas reunimos, é uma fraqueza. Sorrir para a vida no corpo que temos, uma das nossas maiores forças.
segunda-feira, 18 de agosto de 2014
complexidades
( Imagem retirada de Psicopatos)
Tenho horas em que dou por mim a querer que um ser do sexo oposto me entenda. Seja ele filho, amor ou progenitor, amigo ou conhecido. Armo-me de intenção, escolho as palavras a dedo, alinho as frases de acordo com um raciocínio quase matemático, e deito cá para fora toda a explicação que me parece sempre entendível, compreensível, óbvia até. Nas primeiras dúvidas manifestas realinho tudo, dou a volta do avesso e experimento a questão da perspectiva, atalho caminhos, aligeiro arestas, opto por outros trâmites, posso até gerar novas etapas, tudo em prol da boa explicitação e do consequente entendimento. Normalmente, minutos depois de todo o esforço, volto a mim. Reitero que a nossa complexidade é um problema tão sério, que transforma a (magnifica) simplicidade deles num obstáculo.
sexta-feira, 15 de agosto de 2014
nada é por acaso
Encarando o sonho como um reflexo inconsciente, sou efectivamente obrigada a concluir que não há censuras que valham, ao nosso eu mais interno. Conseguimos reunir num mesmo local o sagrado e o profano, o medo e o desejo, o amor e o rancor. Talvez sejam eles, sonhos e inconscientes, a prova provada de que a sociedade mata a nossa natureza, ao mesmo tempo que nos coloca no patamar possível da existência. Nada é por acaso.
terça-feira, 12 de agosto de 2014
tempos
Espreito uma porta encostada que se esconde à minha entrada com a vergonha de quem não se deixa invadir há muito. Insisto, encontro-lhe a chave debaixo do vaso do lado esquerdo, azul, povoado por uma terra seca e já sem vida. Rodo a fechadura com jeito e o clic permite-me sentir realmente o passado. Recuo uns trinta anos no tempo. Visto uma saia rodada e calço umas sandálias de tiras brancas. O gato Tareco brinca debaixo da mesa onde eu me sento a cozinhar massinha esparguete em água fria. Tentei atá-lo ao pé de mim e ao pé da mesa, mas ele esgueirou-se pela porta e renunciou ao pitéu que eu confeccionava com a delicadeza de uma senhora muito prendada. Carmina borda uns lençóis na mesa quadrada. Pergunta-me se tenho trabalhos de casa, se quero doce de tomate no pão, se a professora mandou algum recado. Tenho fome, claro. Como um papo-seco estaladiço e abalo porta fora, o cão Camões espera-me, cego de um olho, já sabe que dali em diante e até ser escuro é hora de passear. Volto sempre antes da ida ao leite. Gosto de ver Gertrudes apertar as tetas da vaca até que o púcaro se encha até ao fim, sou capaz de o levar à boca logo ali, mas o zelo impede-me, antes de tudo necessita de levantar fervura. Nestas coisas o meu pai está sempre do meu lado. Se ele já tiver chegado permite-me colocar o dedo na nata fresca e lambuzar-me sem que o fogão mate o que quer que seja, nunca adoeci da barriga por tal deleite, e se foi o caso já me esqueci. Num instante volto ao presente. Talvez porque o silêncio incómodo do vazio faça ranger muitas tábuas, faça estalar muitos móveis, deixe os ratos correrem o soalho, por baixo dos meus pés. Ainda arrisco abrir umas gavetas, ainda ouso espreitar a fotografia pendurada na sala de jantar, num golpe de sorte encontro uma caixinha de madeira que guardava os alfinetes e que lá dentro, tem um mundo enorme. Não destapei o fogão coberto pelo pano velho, não abri o guarda-fatos onde os vestidos se emparelham por cores e onde o espelho reflecte saudade. Por querer levantei um pano que me deixa a descoberto a máquina de costura. Dezenas de carrinhos de linhas encontram-se arrumados, devidamente ordenados, prestes a morar ali para sempre. Do lado de fora, um tempo depois, alguém arrisca dizer que tem de se dar a volta ao lixo. Nunca percebi bem a noção exacta que as pessoas têm de desperdício. Desperdício é um resto, e uma casa vazia de pessoas não é resto nenhum, penso para mim. Em seguida percorro a aldeia com os olhos. As casa fechadas, os restos, os desperdícios, tantos lugares já sem gente. Daqui a um tempo estarei no futuro, e nesse dia que há-de vir, toda a casa e toda a memória estará arrumada. Nunca morta, jamais apagada, meramente arrumada. Por ora e em mim, há muito passado e outro tanto presente. O tal futuro parece sempre tão longe, mas dizem que virá.
segunda-feira, 11 de agosto de 2014
natalidade
No centro de saúde apinham-se velhinhos e um deles profere
que não há descendência suficiente para os substituir. Os outros anuem com a
cabeça, os mais novos dizem que sim com a boca, não há dinheiro, há vida
profissional, o governo não ajuda. - Mentira, o governo instituiu há pouco um
subsídio, diz alguém, pouca coisa, mas não deixa de ser um incentivo. Oiço tudo
aquilo e mantenho-me calada. Sei da conjuntura, sei da crise, sei do trabalho
em demasia e do dinheiro diminuto, mas ter ou não filhos não passa só por aí.
Há uns anos atrás ter filhos fazia parte da cultura e da família, as pessoas casavam (mesmo que depois se divorciassem), e o dois era o número perfeito que ditava a
ordem, mais um menos um, dependendo da vontade, da possibilidade, às vezes da
sorte que se seguia a um erro de cálculo do calendário fértil. Depois começámos a era
da evolução e da diminuição da importância da família e dos valores. Basta olharmos os cartazes da publicidade e as revistas da moda, para constarmos que as
criancinhas estão excluídas dos restaurantes de luxo onde se ouve jazz e se
degusta gourmet, das férias de sonho onde se fotografam mares infinitos num
sossego possível apenas a dois, das carreiras de sucesso onde o tailleur só
assenta às esbeltas que também não têm olheiras, que não são interrompidas a
meio de uma reunião importante pela professora da escola, e que podem trabalhar
sem interrupções de infantários insistentes ao menor sinal de febre,
conjuntivite, virose ou estomatite aftosa. O elixir da felicidade de hoje não é liderado
por criancinhas, é encabeçado por dinheiro e viagens, paixões e vontades, carreiras e vocações, menos
família, mais individualidade, menos conjunto, mais indivíduo, menos nós, mais eu. A dedicação ao
outro está frágil há muitos anos, a realização pessoal depende mais do próprio
umbigo do que do nascimento e do crescimento dos filhos, o ginásio é um local
de culto onde se passam longas horas por dia, a cozinha um lugar de onde se
foge a não ser aos fins-de-semana, nas noites longas de amigos, a dissertar
sobre o futuro da sociedade que ninguém sabe onde irá parar, sem sopa, sem sujidade, tudo soft e muito clean. Não tenho nada
contra este tipo de perspetiva. Não me incomoda de forma alguma a preservação da individualidade
de cada um e de cada qual, não me perco a discorrer sobre as vantagens ou
desvantagens de se ter filhos ou não, é uma questão pessoal, e como tal liberta de avaliações e juízos de valor, pelo menos da minha parte. Só não me parece ser tão simples como
querem fazer parecer as análises que atribuem a diminuição da natalidade à
falta de recursos do país e à culpa das políticas. Será também por isso, mas vai muito além disso.
Talvez um dia. Talvez um dia se reequilibre isto tudo.
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
quinta-feira, 7 de agosto de 2014
confiar
Sou da opinião de que no mundo deveria existir um compêndio emocional. Não uma brincadeirinha como o DSM, onde se colocam apenas as perturbações, meia dúzia de folhas, uma miséria que tapa os olhos à necessidade e que se centra na patologia declara, esquecendo os intervalos, os intermeios, os estados mornos do sentir, que muito embora equilibrados têm que se lhe diga. Um compêndio, o que era necessário era um compêndio com todas as formas possíveis de expressar a emoção de tudo o que nos acontece e de tudo o que acontece aos outros, uma ferramenta que esgotaria num ápice, dado o proveito revelado. A mim, por exemplo, faz-me uma falta tremenda perceber ao certo o que sente o velho que ontem deixou a casa de sempre, o café da vida, a esquina dos ventos do norte (o norte faz-nos sempre tanta falta), a horta cultivada na hora ditada pelo borda d’água, o livrinho que orienta quase tudo quando a terra produz. Faz-me falta saber como se encontra hoje, na companhia da esposa de todos os anos, quando de repente (a velhice acontece sempre de repente), se juntou à comunidade onde agora reside, a comer ao lado de quem nunca viu, a escutar os gritos de quem já enlouqueceu, a solicitar ajuda à menina que o olha e lhe descobre a nudez do corpo. Faz-me falta sentir o que pensa o meu filho quando lhe imponho a regra da educação. Quando o ensino que deve ser correcto mesmo quando algum outro membro do grupo não é, quando lhe explico que intervir e reagir, sim, sempre, mas no limite da civilidade, sempre sempre do lado de cá. Faz-me falta perceber o que sente o enfermeiro a quem é exigida a clareza perante a morte, a competência perante a doença, a ligeireza perante o horário excessivo de trabalho, o ordenado magro e os anos de serviço, cada vez maiores e cada vez piores. Faz-me falta saber o que é o outro lado da educação. Qual o papel e o sentir do professor invadido, do professor avaliado, do professor excluído e do professor cansado. Faz-me falta, uma falta imensa conseguir olhar para os outros e saber o que lhes vai na alma, não por curiosidade, mas por compreensão. Se no mundo todos colocássemos num livrinho de bolso o que sentimos ao longo do tempo, se registássemos os medos e as certezas, as dúvidas e as ansiedades, as dores e as felicidades, no fim de uma vida estaríamos perante um precioso manual de orientação (não de instrução, claro, nunca de instrução), onde por certo caberia tudo quanto pode haver, devidamente organizado alfabeticamente, tematicamente, por estados de dimensão e de existência. Por consultá-lo e acolhê-lo, haveria de ser bem mais fácil a harmonização da humanidade, a partilha dos recursos e o respeito pelas diferenças necessárias para a continuidade disto tudo. Assim, cada um na sua, e temos a intolerância e a ignorância, até porque, valha-nos Deus, não conseguimos crer nem confiar. Nem, pior ainda, fazer crer ou confiar.
quarta-feira, 6 de agosto de 2014
gosto do MEC, mas por vezes não sei onde morar (como é linda a puta da vida)
Descubro momentos felizes em todos os dias da minha existência. É linda, a vida é linda a toda a hora, quando acordamos de manhã, quando miramos a rua, quando levantamos o corpo na direcção do objectivo (se o houver). É linda quando cheiramos o verão quente, quando espreitamos o Inverno, quando devoramos chocolates e escutamos o amor da poesia (ou a poesia do amor, o que não é bem a mesma coisa). É linda quando queremos e quando escolhemos, quando caminhamos contra ao vento ou a favor, dependendo da circunstância e do barco que governamos (ou desgovernamos, depende, há horas em que um barco desgovernado é todo um programa onde eu quero estar). É linda nos momentos e é linda nas noites cheias, é linda nos ensinamentos e nas aprendizagens, é soberana na beleza da natureza que parece desenrolar-se, fluída, em sucessões prováveis que permitem para sempre a continuidade da humanidade (até quando haverá isso tudo?). É linda nas contrariedades. Aprecio quando me testa, quando me põe à prova, quando me coloca objectivos quase impossíveis, tarefas quase impensáveis, montes improváveis de escalar, e rios perigosos de atravessar (ao mesmo tempo que me segreda ao ouvido, em surdina, -anda, só mais um esforço). Nessas alturas, quando o mundo se une a favor ou contra, depende de nós, da nossa força de braços e da nossa forma de sermos, de intervirmos ou de deixarmos correr, de optarmos ou de deixarmos acontecer, enquanto nos deitamos, sossegados, num regaço (um regaço para mim será sempre um avental). Pior, é quando tudo se une em sentidos inverso. É quando a atmosfera não flui, é quando os desencontros se mostram em potência, é quando a realidade se assoma contra tudo e contra todos, é quando a razão nasce em cada qual, sem elos mais fortes ou elos mais fracos, sem frestas perigosas que façam ruir a verdade, sem vencedores e sem vencidos. É quando a inevitabilidade do mundo se instala, é quando o fado acontece, é quando a miragem se confunde com o deserto, que a vida não é tão linda quando eu gostaria que fosse. Gosto do MEC, gosto muito. Mas por vezes, tantas vezes, não sei bem onde morar (como é (linda a) puta (d)a vida).
terça-feira, 5 de agosto de 2014
tudo o que eu te dou
Os caminhos são sempre um desafio. Um desafio é uma incógnita, sabemos lá para onde nos penderá o corpo, sempre ignorante (e ávido) de futuro. A ignorância é por conseguinte uma constância na nossa vida, por muito que saibamos, por muito que ambicionemos. O passado é aquilo que já foi, certo, mas também tem como função o ensino. Afasta-se da ignorância para entrar no âmbito do conhecimento, haverá riqueza maior que possamos encerrar? Não creio. No meu encontro conquistas e encontro vitórias, mas também encontro erros e más decisões. Das conquistas e das vitórias guardo os lucros, dos erros deverei guardar os ensinamentos que a vida me deu? Certamente, mas por vezes esqueço. Hoje, por exemplo, encontrei um para engrossar o admirável livro da falha: julgar intentos é como jogarmos uma roleta russa, cravejada de opções. Do outro lado há o efeito momento e o efeito surpresa, o efeito circunstância e o efeito ocasião, entre dezenas de outros efeitos, alguns deles em permanente fusão. Crer de forma suprema na nossa opinião e expectativa, é tão falível quanto uma noite inteirinha de casino.
(Só tive uma em que ganhei à séria: no de Lisboa, só eu e uma multidão, com o Pedro Abrunhosa ao piano a cantar o mais extraordinário " tudo o que eu te dou". Há momentos maiores do que um mundo, mesmo que não consigamos ver os olhos de ninguém.)
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
explicações
Nem sempre esclareço tudo o que sinto. Aprendi na escola a pensar a lógica matemática, a realizar raciocínios exactos, a cumprir regras precisas à rigidez do correcto, a chegar à hora marcada, antes do toque de entrada. Tudo isto tinha uma explicação coerente dada pelo mundo, tal como tinha uma razão o que aprendia no resto da vida, o pão do pequeno almoço, o leite do lanche, o beijo do cumprimento, o sono da noite. Até determinada altura vivi sob orientação externa de carácter definido, métodos orientadores de acções fundamentais ao crescimento, rigores preestabelecidos que permitem a uma mente imprecisa e evolutiva caminhar num espaço externo, do corpo para fora, anos depois. Nesses anos depois, quando o intelecto amadurece, nem tudo se explica, tudo se sente, eventualmente tudo se aceita. Falo por mim, muito embora compreenda (e aceite, lá está) outras reflexões. Não consigo explicar inúmeras sensações que tenho, alcançar sensibilidades que me assaltam, perceber o vácuo do mundo que não se mede, que não se contabiliza, que não se regista. Facilmente, e por outro lado, entro nos caminhos seguintes, ou seja, depressa aceito, e já senti de tudo um pouco. Esta visão parece-me uma mais-valia profissional, muito embora o sentir-me aquém seja uma constante: todos querem respostas válidas para agarrar a mente, que não há quem a segure, quanto mais o corpo. Não tenho, lamento e uso dizer, mas não tenho de todo. Porém, o verdadeiro busílis encontra-se em mim e comigo. Se rapidamente aceito e não explico, fico-me porém com os sentires, a esses não há como fugir. E o que fazer com aqueles que me invadem na calada da noite, de emboscada, impossíveis de matar, ocultos de tudo o que me seja coerente? Também não sei, lamento e uso pensar, mas não sei de todo.
E sendo assim concluo que sei pouca coisa, sinto em demasia, explico quase nada e aceito quase tudo. Sou aparentemente estupenda. E assustadoramente real.
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
alegria
Nunca me entreguei ao culto do monocórdico. Tenho pouca paciência para estados crónicos de aborrecimento, pouca tolerância para ares cismáticos com cigarro criteriosamente dependurado na ponta dos dedos, olhos profundos e boca semicerrada. Nunca fui dada ao charme da melancolia, parece-me sempre um constructo enfadado e sem graça que se arquitecta em torno de plumas pretas, traços carregados nas pálpebras, pérolas sisudas e caras de poucos amigos, quase impenetráveis. Não é por isso que não gosto de poesia, e para que não haja confusão. A poesia é impenetrável por si mesma, é a confidência de um estado de alma que traduz em palavras belas alegrias e tristezas, desgostos e ambições, amores e desamores, ódios ou paixões. Veste-se assim por graça, por pura harmonia de palavras, mas não é gente. É (grandemente) pedaços de estados de espírito, e como tal pode tudo quanto quer. Vulgarmente são as mulheres que apreciam o embrulho da tristeza. Empenham-se em emitir semblantes graves e penetrantes, dedicam-se a transmitir uma introespecção expressa num cuidado extremo de rigor descontente, como se a aura procedida lhes desse um poder oculto, pelo mistério. Haverá quem goste, mas deve cansar. Eu prefiro mil vezes o sorriso do que o ar pesado, sou mais dada à festa do que à reza, prefiro o rock ao fado, e dançar folclore é para mim uma perdição. Preciso da alegria do povo, dos aglomerados em torno de uma banda qualquer, de um mar revolto e de uma tempestade de luzes ao entardecer. Sou capaz de escrever sem corrigir, de cantar sem ter voz para isso, de declamar em voz alta um sentir emocionado, por forma a deixar que me ouve embaraçado. Não me escondo no mundo por vergonha, não me construo, manifesto-me. É claro que há olhos críticos pela simplicidade. Uma senhora deverá manter a pose, olhar a direito, andar recta e monocromática, usar uma bolsa de mão, na mão. Deve embrulhar-se em lenços de seda carismáticos, deve ler obras de referência literária, deve alisar o cabelo ao nível do rosto, usar salto fino, e jamais vestir um calção. Deve ser mãe e mulher a tempo inteiro, relegar a alegria imprópria, comer pouco ou quase nada, como uma sopa insípida regada com crème fraîche. No final não há sobremesa ou licor para rematar. Não que eu não goste destas senhoras, que eu imagino à distância enquanto mordo um big mac, sentada num carro empoeirado e com um gelado à espera. Gosto de as idealizar na varanda resguardada enquanto eu levo com a brisa do mar, deitadas quietas a ouvir Beethoven enquanto eu danço Lindsey Stirling, embrulhadas num vison ao mesmo tempo que eu me estendo na areia, num pano engelhado, de nariz sardento a corar ao sol. Até porque, pasmem-se, em caso de necessidade consigo quase tudo: elevo-me nuns saltos altos vinte e quatro horas sem me cansar, respiro ar sem que se veja, mantenho a rigidez do olhar, caminho direita sem acusar reacções e solto palavras frias, no limiar da educação. Mas não gosto lá muito quando isto tudo é preciso. Nada é mais fatigante do que uma permanente construção.
(E cansada já eu ando que chegue.)
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