sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Da vida...

Pela escada, quase que voo. Atrasada, como sempre. Saco do lixo na mão, mala na outra. A vontade impiedosa de ainda me dar ao luxo de bebericar um café; talvez atenue os efeitos de uma noite pouco dormida. Porque ás vezes perco-me. E quando me perco não durmo, pouco como, só respiro.
A meio do patamar, encontro a Dona L. A senhora que limpa o condomínio. Bom dia Doutora, diz-me ela. Não gosto que me tratem assim no meu meio. Ela sabe, já lhe disse. Mas insiste. Julgo que me tem carinho já de longos anos, e não consegue tratar-me de outra forma. Olhos de sofrimento, mãos cansadas, ar pesado, que revela uma idade que ainda não tem. Alma de lutadora. De noite e de dia. Não raras vezes, apanhei-a, a limpar a escada ao Sábado à noite, de madrugada. Porque precisava de passar incógnita. Não fossem denunciá-la à Segurança Social. Porque o que ganha a limpar, não chega para sustentar os filhos e o marido, que vive na sua beira, e na beira do álcool. E necessitava do subsídio que lhe era facultado. Continuo a descida. Na entrada encontro o neto do Construtor cujo escritório funciona no meu bloco de apartamentos. O Doutor C. Engravatado. Pouco fez pela vida, para além da licenciatura. Bom ar, boa pinta, sorriso de orelha a orelha, a olhar-me com ar de quem tudo quer tudo pode. Altivo, sedutor. Não me seduz, minimamente. Não sei porquê, mas também não importa.
Na saída, a bicicleta, que de verão ou de inverno, de noite ou de dia, transportam a Dona L., pela cidade que a vê lutar todos os dias.
Ás vezes apresento por aqui discursos pregados por quem, e não obstante a vida já ter pregado algumas partidas, no fundo tem sorte. E assim, é fácil pregá-los. Aprendi muito com o que me foi proporcionado. E foi-me proporcionado, de facto. Aproveitei, é certo. Mas há pessoas que quase não têm o que aproveitar. Ou que, uma vez errando, dificilmente se recompõem, tal a ausência de oportunidades. E para essas tudo será mais difícil. O nosso querer pode, é certo. Mas as circunstâncias também.
Doutora? Doutor? E o resto? A luta, o dia a dia? O acordar de madrugada já a pensar, em como ter o pão para a boca, de quem depende de nós? E sempre a sorrir. Gente que passa na sombra do tempo, que ninguém nota, que ninguém vê, senão a cidade. Mas que são gente que luta.
Admiro a Dona L. , já lhe disse. Mas deve ser tão raro, que acho que ela não acredita.

2 comentários:

Deixar um sorriso...


Seguidores