terça-feira, 3 de dezembro de 2013

o que tu queres, sei eu.

As mulheres sabem muitas coisas, logo, sabem demais. Sabem claramente se gostam delas, podem é fingir despercebimento se percebem a ausência e pretendem reaproximação, "poder sempre ser que". Sabem o que querem e o que não querem, e sabem-no ainda em relação ao sexo oposto, muito menos expedito nessas matérias de saberes externos ligados ao género. Sabem o que ler e o que escutar, o que vestir ou despir para agradar, como falar, o que dizer, como se movimentar, por onde andar. Conseguem fingir que não ligam a nada disto, até porque a naturalidade é um charme e tudo quanto caiba nela é uma prova de graça irrefutável, muito mais valiosa do que qualquer outro tipo de construção alicerçada nos looks aplaudidos por revistas cor de roda ( também eles poderosíssimos, claro). As mulheres também sabem fingir que determinadas coisas não as sacodem, só para ficarem atentas às reacções do sexo oposto, quando na verdade estão importadíssimas com  o excesso de simpatia que a cara metade dispensa à vizinha do primeiro frente. Ninguém precisa de saber isso, são informações confidenciais. Percebem ainda quando eles, cansados, só querem sofás, bola e zapping, porque é nesse exacto momento que têm de provar a importância delas na sua vida. Óbvio que não é urgente o detergente esquecido no supermercado, mas a verdade verdadinha é que ele faria um favor imenso se o fosse comprar, porque só assim ela passará a semana descansada e sem roupas acumuladas no cestinho de verga arrumado atrás da porta da casa de banho, que lhe salta para a vista todas as manhãs, na hora do duche. Uma maçada (esta ligeira manipulação também é arte nossa, caso não saibam). É claro que também podem insinuar vinho, e como que não quer a coisa juntar o Skip à lista, tudo depende da disposição.

Conhecemo-nos muito bem umas às outras, e aí começa a verdadeira questão dos excessos das sabedorias. Sabemos os intentos disfarçados a léguas de distância, conhecemos o cheiro, as sílabas, as interjeições e as vontades, os jogos de cintura e toda a capacidade de ardil capaz de nascer num corpo feminino direccionado. Só uma verdadeira mulher pode ler outra, até porque só a semelhança nos permite este profundo conhecimento, quase indizível. Talvez por isso, nunca arriscamos decifrar uma por completo. 

( Muito embora às vezes dê mesmo vontade de fazê-lo, dizendo: Anda cá, comparsa, cá mais cinco!! O que tu queres, sei eu...)

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

animais

O Parafuso é o cão que não é meu, mas que me beija todos os dias ao de leve. Saltita à volta do carro quando me vê aparecer e lambe-me as mãos a uma distância de segurança que a vida já lhe ensinou, não vá o diabo tecê-las ( há quem diga que o diabo aparece onde menos se espera). O cão da família abana o rabo insistentemente, basta que eu estacione em frente à casa. Rebola-se no chão quando apareço e nunca se esquece de me cumprimentar. Não me diz adeus, fica deitado enquanto saio, a olhar-me com paciência (sabe lá ele quando vou voltar). Nenhum deles me pertence directamente, mas ambos são meus. Nunca fui de trocar pessoas por animais. Não aprecio excessos radicais de fundamentalismos, sequer. Mas entendo, juro que entendo, o apego nos afectos sentido por muita gente: não falham, dão muito mais do que o que pedem, não atacam, têm tempo e disponibilidade. Tudo o que ser humano não é.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

prioridades

Enervo-me comigo mesma quando deixo a vida inverter-me prioridades. Bem sei que não posso deixar de tentar ser feliz porque morrem crianças vítimas de tortura, mas posso bem tentar reorganizar o valor das acções onde me centro de forma mais consciente. A inconsciência é um sítio onde entramos quando permitimos a invasão de um qualquer adulterador de um estado de sanidade digno de referência. O egoísmo pode ser um deles, mas há muitos. Tantos, nunca mais acabam. Depois também há isto. E há ainda uma cena de pancadaria à qual eu assisti em directo da janela da minha casa, com gritos e ofensas dirigidas. E murros e pontapés, e mulheres aos gritos. E degradação. Não gosto de violência, nunca gostei. Consigo destilá-la em situações específicas, muito embora me sinta sempre ofendida na minha integridade. Quando extrapola para a lei do mais fraco, perco as forças. Fico com uma indisposição nauseada que afecta o meu estado físico e o meu estado mental, talvez  porque a inclua numa questão gratuita, sem precedentes. Uma criança é um ser indefeso, aqui, na Síria, na China e na lua, e quem atenta sobre ela é uma pessoa má. É por isso que eu acho tão importante dotar quem cresce de prioridades. Mesmo que elas se invertam vida afora, invertem sempre, mas pode ser que se invertam menos um bocadinho. Não há magias, actos alargados que movam montanhas, caminhos potenciadores de acabar com o mal do mundo, eu pelo menos não conheço. Mas há a acção pequenina da porta para dentro, que pode fazer com que a importância do respeito reapareça nos lugares de quase morte. Não roubarás, não matarás, honrarás o teu pai e a tua mãe, não cobiçarás os bens do próximo, parecem ditos antigos de obstinação bíblica, mas a verdade é que são condutas de acção urgentes para que o mundo se reorganize outra vez. Se é que isso existe, se é que alguma vez houve, se é que pode haver. Não percebo, honestamente não percebo a nossa incapacidade de foco no essencial. Um certo desfalecimento da coerência perante a veleidade caprichosa, que só reaparece quando a vida resolve colocar à prova a nossa existência. Nessa altura somos todos conformidade, todos consciência, muito embora com efectiva possibilidade de novo desmaio significativo. Nunca aprendemos, a não ser a fazer contas de matemática, a saber o nome dos rios e dos mares, a conhecer a gramática portuguesa, entre outras questões culturais de segunda necessidade. Também sei que a proximidade com a violência nos tira a capacidade de raciocínio. Perdemos a definição e entramos em choque entre a justiça o resto. Que fazer para acabar com ela, senão usá-la no seguimento? Mais ou menos o mesmo que se usa na educação dita normal: a criança levanta a mão e leva uma palmada. Aprende a autoridade, ou seja, percebe claramente quem nada mais. Mas percebe ainda que quando crescer, também pode bater. Daí à violência e ao abuso vai uma enormidade, pois claro, e antes que se insurjam as vozes pedagógicas anti psicologia da educação. Ou pode até nem ir, depende. Fazer coisas que contrariem actos de prepotência é que faz muita falta. Aos nossos filhos, ao nosso País, ao mundo no geral. Tudo vale para um recomeço. Matar mulheres aqui ao lado e crianças na Síria, é que não. Isso, jamais poderá valer.

domingo, 24 de novembro de 2013

temporal


( Embala-me a música que escuto em baixo som, quase imperceptível aos ouvidos. Assim decifro devagar notas musicais de primeira categoria. Não se deve apreciar qualidade em decibéis exagerados, tal como não se deve degustar acepipes em garfadas apressadas. Perde-se o som, perde-se o gosto. E por aí afora.)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

gata que é gata, lê o jornal

A senhora que me agarra as compras do tapete está pelos cabelos com tanta gentinha. É Domingo, dia do descanso, mas não há outra coisa que se faça que não ir às compras a um local apinhado de gente? Não me pergunta com a boca, fá-lo com os olhos, é a mesmíssima coisa. Comida de gata, areia de gata, iogurtes naturais, pastilhas da máquina da loiça, aguenta tudo até ao saco do jornal. Não encontra o código de barras, separa um a um, saca de um complemento que não diz coisa nenhuma, eu vou olhando até que vocifero com calma, - olhe, está no principal. Não sei se a ajudei se a atrapalhei, sei que perante a minha humilde observação responde irada que não sabe quem leia um saco de jornais. Sorri para dentro e disse-lhe tranquila, - eu não sou, que não tenho tempo. Mas lá em casa, e como já deve ter percebido, há uma gata desocupada. Tenho de lhe dar que fazer. 

O meu bom humor ainda me salva do mundo de vez em quando, merece um bem haja. Ela trabalha ao Domingo e eu, muitas vezes, também. Estou do lado dela, estarei sempre do lado dela, estou do lado de toda a gente cansada até à altura da inconveniência. Depois disso dou um ar da minha graça e posso até criar gatos que lêem, cães que dançam ou peixes que falam, há de tudo cá em casa. Má educação, é que não.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

descobertas

Descobri há pouco tempo o porquê dos mortos serem santos, numa descoberta que nem sei porque tanto tardou. Houve tempos em que considerei a compaixão pelo desaparecimento com a eventual consciência da falta, muito embora, confesse, não me parecia suficiente. É um dado adquirido, todos sabemos, a morte santifica as gentes. E eis que por portas travessas percebi porquê, alvíssaras, necessitava mesmo de um decreto que me regulamentasse com sentido a beatificação dos detestáveis: os mortos são santos porque partiram para o desconhecido. Deixaram de se movimentar em terreno visível, passaram a ocupar a mística celeste, certamente ganharam poderes. A inimizade visível pode ser detestável, mas a invisível torna-se assustadora, logo, muito mais perigosa. E nós preferimos viver sem sustos, claro, nem que seja a idolatrar solenemente quem outrora desdenhávamos. Olarila.

(Bem vistas as coisas, não há assim tanto morto santo, há é muita gente amedrontada. No fundo eu sabia, eu sabia que o perdão é limitado, que o além assusta sempre, e que gente é sempre gente.)    

terça-feira, 12 de novembro de 2013

a louca

A louca subia a ladeira a empurrar o carrinho de mão. Um xaile apertado ao peito, um lenço apertado ao pescoço, uma vida apertada à loucura. Sempre simpatizei com ela. Mais do que a mitologia explica-me as insolências das almas, os descaros dos espíritos, as imprudências dos corpos, os desfasamentos do mundo. Só os fracos precisam dela, admito: um norte onde cabe o inexplicável, o indizível, o improvável. 

(Os fortes admitem tudo dentro de uma certa normalidade.) 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

informação

A blogosfera é um mundo vastíssimo de pontos de vista. Utilizo-a há já alguns anos como meio de expressão e de leitura, em diversos domínios. Sou ecléctica, eventualmente por natureza e vocação. Perco-me em meandros políticos ( não muito), deito um olho à moda, como qualquer mulher que se preze, aprecio os informativos e noticiosos, mas são os blogues reflexivos e profundamente pessoais que me prendem realmente. Desses, há um que me cativou há muito, e que reúne num único local texto e fotografia de elevadíssima qualidade. Por simpatia ou por gosto, quiçá também por partilha de pontos de vista, o seu autor resolveu presentear-me com um convite de colaboração que me deixa verdadeiramente lisonjeada, e ao qual não havia recusa possível de considerar. É portanto com muita satisfação que informo os meus caríssimos leitores, que a partir de Domingo, dia 10, podem ler-me também no Assim na Terra como no Céu.
E, Paulo, last but not least, prometo tentar estar à altura do desafio ( ou quase, vá.). :) 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

absurdos

Depois da crucificação de Margarida Rebelo Pinto em praça pública, posso deixar umas notas soltas sobre o assunto. Não gosto dela enquanto escritora, mas já a li. Só por isso sei que não gosto mesmo, não trata mera recusa por loiras elegantes que escrevem romances de amor e prozac, nem sequer uma antipatia generalizada, estilo Valter Hugo Mãe. Não percebi muito bem porque se prestou a fazer comentário público sobre política, mas enquanto cidadã tem todo o direito a fazê-lo, tanto quanto qualquer outro português. A diferença é que ela o fez num programa televisivo. Que o povo esteja farto de política, dos políticos e da crise, eu percebo. Que entenda achincalhar quem nos governa, manifestar o seu desagrado, e fazer esperas encapuçadas ao Senhor Primeiro Ministro, eu também consigo considerar. Mas vetar a oportunidade de manifesto oposto ao da globalidade, parece-me um absurdo. Uma democracia prima pela liberdade, e liberdade é escolha pessoal e única de opinião, postura e manifestação.

(A ridicularização excessiva é ridícula.)   

outono

( Fotografia do Paulo.)

As aranhas eram pretas e espreitavam pelos buracos de tijolo tosco que guardava o tanque. O baloiço ao lado baloiçava enquanto as vigas carunchosas do tempo e da chuva se queixavam ruidosamente, ao mesmo tempos que os nossos pés tocavam o castanheiro em frente. Era Outono, e o meu pai não sabia que eu corria o risco de ser atingida por um conjunto de telhas desgovernadas, os riscos para o meu pai eram todos calculados e rigorosos: os carros, os ciganos, as árvores que eu gostava de subir, os poços, os doces, a doida da velha que morava aos fundos, o porco que grunhia quando morria às mãos de Manel Azinheira, trauma certo para uma pequena que naquela altura ainda só tinha idade para comer as sopas. Também havia o muro demasiado alto que permitia ver a aldeia ao longe. Ninguém subiria aquilo, quanto mais uma menina franzina, quanto mais duas. As mesmas que brincavam horas debaixo de uma mesa a fazer de casa de bonecas, mesmo ao lado da avó e do gato zarolho e coxo, para além de feio. Os ares de anjo governam o mundo, não sei se já tinha dito. Um banco alto, um tijolo por cima, um fim da tarde, um lusco fusco. Ninguém via nada e nós éramos grandes. Tínhamos pena, claro, o que é isso de grandeza sem que ninguém saiba a distância que nos separa do resto? Mas era um segredo só nosso, para poder acontecer.
Também fugia muito para o pé dos ciganos. Eram bonitos, viviam numa tenda, cantavam e dançavam na noite e na lua enquanto eu espreitava; aaai, meus olhos ficaram lá, meus olhos ficaram lá, meus olhos ficaram lá... Não percebia muito bem o que era isso de deixar olhos e vir embora, mas pensava sempre que haveria de existir uma explicação ajuizada. Um dia encontrei-a, muito mais tarde, longe da sensatez que entretanto me morreu de vez num lago onde os sapos coaxavam em coro. Era sensato eu ver de fora, mas a tábua que atravessava o rio até meio chamou-me e eu fui. Claro que não nadava, mas sobrevivi e achei que o juízo em excesso não era chamado para a vida. Foi outro dos perigos identificados para o futuro, a tábua no rio, mas para mim perigosas eram as formigas de asas, as malvadas. Não sei porquê ninguém percebia.
Nesse dia era são Martinho ou coisa que o valha. As castanhas crepitavam num lume aceso na berma da estrada, e havia vinho tinto que eu cheirava do copo do meu pai e do meu avô. - Queres provar?, dizia o avô Manel, sob o olhar aterrado de minha avó. A minha avó era mais de marmelada e bordados a ponto de cruz. Sim, sei tudo, porque é como andar de bicicleta. Claro que ao cair da noite o corvo Jacob me desassossegava em conjunto com as vozes que choram a cantar. Ainda hoje, a poder, escuto-lhes as lamurias internas, ninguém chora como os ciganos quando cantam nas noites de Outono. A velha dos fundos às vezes ralhava. Um dia morreu e ninguém deu por ela senão quando o gato apadrinhou a nossa casa. Tinha fome o traiçoeiro, via-se mesmo que não era cão.
Também aprecio broas da época, não me venham com a história de que a gula não move o mundo. Move, a gula também é um móbil, de gente e de bichos. E o néctar dos deuses pode desembrulhar-nos o estômago e o espírito, sou até capaz de cantar no final do repasto, mas só se houver castanhas, claro. Nunca mais me esqueci da velha, dos ciganos, dos perigos que engoliam gente pequena e da Nádia, que escolheu vivê-los comigo. E sobrevivemos, que nisto tudo já é Outono outra vez.   

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

ninguém disse que era fácil...

Convenhamos, o que é grande custa e dá trabalho. Dá trabalho crescer, caímos no chão diversas vezes porque a cabeça pesa demais e o corpo de menos, e nessa altura ainda nem sabemos o peso interno que ela vai ter um dia mais tarde (muito mais tarde, num tarde que tarda mas que quando chega veio depressa demais; e depois já não recuamos). Dá trabalho escolher os amigos que mais gostamos e penar pelos que queríamos sem que esses nos estejam ao alcance, não lhes apetece, não estão para aí virados, haverá gente rejeitada por nós exactamente com o mesmo tipo de sentimento (faz parte, ninguém avança sem rejeição). Custa estar na escola aos seis quando o corpo quer andar a correr no recreio mais pequeno do que o Deus nos acuda. Aos seis ninguém percebe o porquê das aulas serem muitas e a brincadeira ser muito pouca, só por falta de capacidades técnicas das criancinhas não se invertem as prioridades (há dias em que penso que nós, adultos, deveríamos permitir que se invertessem). Dá trabalho cumprir as regras da sociedade e da educação impelidas por pais, por avós, por professores e outros interveniente, que o que não falta é gente capacitada a moldar pequenos seres que crescem e que devem aprender o que é a vida ( a vida enquanto se cresce não é nada do que os adultos pensam, e ainda bem). Dá trabalho escolher a única profissão que se gosta e deixar para trás todas as que não se gosta, porque para isso é preciso considerar uma aptidão pouco mais do que imaginada e conceptualizada sem o rigor verdadeiro que rege cada uma delas ( quero ser médico porque curo gente, mas ainda ninguém morreu às minhas mãos, quando morrer não sei se ainda vou querer). Custa construir uma família e esperar pelo tempo certo para fazer tudo aquilo que já deveria ter sido feito, porque a nossa vontade na hora do amor é realizar o que o corpo permite sem olhar a critério, não vá o mundo acabar no próximo instante e deixar por conceber a pertinência da maior perfeição que veio ao mundo (e que às vezes passa, o que me leva a questionar a excelência ao limite das minhas forças). Dá trabalho e dói ser mãe, no corpo e na alma, porque a verdade é que esquecemos a prioridade do nosso Eu para construirmos uma outra paralela, muito mais pura, muito mais merecedora, muito mais plena, muito mais vida ( e quem quiser desmentir esta, por favor arranje um bom argumento). Dá trabalho ser mulher, perseguir os sonhos e os objectivos, cumprir connosco e com a sociedade, ao mesmo tempo que nos permitimos uma existência complacente com o nosso ego (agrilhoada ao nosso super ego, abanado pelo sem vergonha do nosso id ). Custa ser feliz. Para que isso aconteça não somos nós,  somos nós e mais alguém, que uma das impossibilidades do Homem é ser feliz sozinho. E para haver a comunhão há um outro conjunto de circunstâncias diversas e também elas trabalhosas, muito mais acres do que o ar fresco e solitário da noite, fazendo-me crer que os caminhos são o que temos sempre de atravessar para alcançar o que buscamos. Todos sabemos, claro, fracas palavras, pura trivialidade, meros desabafos. De resto, nunca ninguém me disse que a vida era fácil. Fui eu que julguei em tempos, ainda em ignorância, e honestamente não sei se queria dar total descrédito ao assunto. 

mapa

O trabalho nasce-me dos dedos apressados que se comprometeram com resultados rápidos. A espera pode magoar o corpo, sei disso. As doces, as amargas, as outras eventualmente toleram-se. Agarro o que me vem à mão, não posso perder-me, é essencial balizar a cordilheira de respostas dadas. Na desarrumação da casa pego ao calhas o mapa vivido. Um mapa vivido não é um objecto indiferenciado. Um mapa vivido é todo ele o cheiro, a cor, o ar, a viagem no conjunto das bolinhas e das linhas traçadas a critério, revividas ao rigor do segundo, na permanente memória. Vou dobrá-lo com cuidado e deixá-lo dormir. Precisarei dele para todo o sempre. 

domingo, 3 de novembro de 2013

I Just Called To Say I Love You


porque acontece?

Percam 15 minutos do vosso domingo a escutar isto. Encontrei-o aqui, e nele encontro alguém que fala com grande lucidez e na primeira pessoas, sobre a questões da violência doméstica. Porque o assunto é sempre da ordem do dia. E porque a consciência dele nem sempre aparece, mesmo em quem acontece.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

(...)

( Fotografia do Paulo)

Por vezes canso-me do politicamente correcto, da aparência cuidada, do traje irrepreensível e do cabelo alinhado. Canso-me das horas que me travam mais do que a saia que visto, das pessoas que me olham com olhos de sociedade, dos familiares que me aguardam com ar de compromisso, dos que se sentam na minha beira à espera de compreensão. As manhãs exigem que as encare com sorrisos, as tardes querem prontidão na indolência da sesta, as noites tardam ou livram-se de mim mais depressa do que as ondas se escapulem do mar, surfadas na ira por um McNamara qualquer, desalinhadas, excessivas, violências sem direcção. Estatelam-se numa areia fininha e sempre igual, uns montinhos, umas pegadas, umas conchas e uns caranguejos, umas direcções trocadas e umas rochas duras, um cheiro a maresia e um frio gelado que de manhã aquece ao sol madrugador, nunca dorme mais do que deve. O cuco espreita para fora do relógio de madeira que não conhece outros compassos, o pássaro canta em harmonia inexplicável, os cães correm atrás dos donos e os gatos atrás do leite, os carros apinham-se  nos cruzamentos onde os semáforos acendem e apagam para que pessoas cruzem a passadeira que as leva ao destino, a bica e a nata, o jornal e o ponto, a secretária e a empreitada até ser noite, poucas pausas, nenhumas emoções, elevado rendimento, rotina q.b. Quando me canso desleixo o propósito e acordo a latência. Descuro a norma e agarro o grito, visto um vestido encarnado a condizer com a boca e com o sangue que me arrasta e circulo pelas avenidas em desalinho acordado, mais rápido do que a minha própria sombra. Subo as calçadas e rumo à torre mais alta, esqueço os ventos e as vigias, afronto os guardas e as armas, as bandeiras e os galões, as poses e as convicções. No final caio sempre desamparada, sem anjos da guarda que se condigam para me alinharem os passos. Não me assusto que não meto medo, sou mais fiel à nobreza da vida do que o meu coração ao meu corpo; só me deixo circular ao semblante da lua, tão ela como ninguém, e acordo quase sempre antes de sair para a rua. Quando isso não acontece, sinto que pouca coisa me passa ao lado.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

matemática pura

Vera insurge-se irritadíssima pela sua ignorância. Quando foi ela levaram-lhe uma boa metade do aparelho, ficou limitada nas suas capacidades reprodutivas, entregue à sorte e ao calha, pode ser que aconteça, quem sabe um dia, não sonhe muito com esse assunto, pode ser que Deus queira. Pois bem, e se Deus não quiser? E se pretender que os resquícios que guarda lhe engelhem e ressicam dentro do ventre, mirrem, desapareçam, morram devagarinho deixando-a entregue à infertilidade que tanto a assusta? Haveria de ser já, disse-lhe o médico, meia dúzia de meses, um restabelecimento suficiente, um não dar descanso ao que sobrou com vida e que por certo será suficiente para colocar uns óvulos férteis no útero, à espera de fecundação. Haja colaboração de quem de direito, haja e da boa, já agora. Entretanto escuta um novo processo, uma mesma doença altissonante, um outro procedimento, nada de barrigas abertas, uns furinhos, umas horas, sabe lá a outra o que a vida é. Há pessoas que parecem não perceber que as próprias dores são sempre maiores. São dores lancinantes do corpo ou da alma, capazes de aturdir forças e de matar coragens, de espetar facas em ânimos e de despertar estados débeis devidamente justificados, arrumados num diagnóstico insólito, nunca no mundo se viu igual. No corpo dos outros nunca nada é nada. No corpo dos outros crescem pequenos males de curas e consequências pouco graves, meras disfunções inconsequentes, poucos prejuízos, e, se ou houver, rapidamente ultrapassáveis. Ao telefone reforça tudo aquilo enquanto a convalescente, paciente, escuta. No final Vera insiste e remata que não percebe porque não foi avisada. A interlocutora por seu lado ousa não perceber o porquê da indignação, e reserva-se ao direito de nem devolver feed-back. É profundamente discreta por natureza, mas e se não fosse? Nada vezes nada é nada, contar o quê? 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

requerimento

Carlos é um homem pequeno. A genética ficou-lhe com uns bons dois palmos, desenhou-lhe uma cara pincelada excessivamente feminina, deu-lhe uns braços tímidos e um ar acanhado, um trinta e oito de pé, mais coisa menos coisa. Passeia-se pelo hospital com o seu carrinho da correspondência, encontro-o no piso três, sai do elevador, dirige-se ao secretariado, encosta a viatura, lambe os dedos diminutos, escolhe a correspondência endereçada, bate na porta com dois toc tocs ritmados, não ouve resposta e entra, poisando no balcão os envelopes gigantes carregadinhos de radiografias, ecografias, tomografias e outros meios auxiliares de diagnóstico. Não consigo deixar de o imaginar nos outros pisos, todo o dia acima e abaixo num ritual repetitivo, a chamada do elevador, a selecção do piso, a saída, o secretariado, o estacionamento, a humidificação dos dedos, a separação, os toc tocs, a entrada, o regresso. De repente, e no meio dos pensamentos, estranhei um esgar que emitiu, acabei por perceber que estava indignado perante uma senhora que surge na sua frente, dona Lurdes, fiquei a saber. Um horário trocado, um requerimento que deveria ter sido feito e não foi, uma equipa que deveria funcionar e não funciona, um centro hospitalar que deveria ser gerido por homens e é gerido por miúdos, daqueles que ele tem lá em casa. Esbraceja e gesticula efusivamente para dona Lurdes que o escuta, na hora da bica, carteira na mão, máquina em frente, acenos de cabeça, concorda com tudo. A ele até lhe dava jeito, a miúda entra às oito, às oito e meia estava ali, tinha uma hora de almoço, saia mais cedo, só tinha a ganhar, mas ninguém fez o requerimento, o centro hospitalar que deveria ser gerido por homens é gerido por miúdos, daqueles que ele tem lá em casa, repetia. Sim sim, sr Carlos, acena ela, moeda na mão, na hora da bica, em frente à máquina do café. Iniciei internamente o circuito de volta, mas o sr Carlos prosseguia afincada e lentamente com o discurso da indignação, a meio do qual começou a abanicar o corpo e a impulsionar-se para a frente, dedo em riste, ar quase demolidor, pés pequenos de um lado para o outro, braços tímidos agitados. Confesso que ali a meio comecei a ficar assustada com a sanidade do sr Carlos, que repete o seu dia ao pormenor do detalhe. Mudam os nomes, mudam os pisos, mudam as doenças e mudam os pacotes, muda quem morre e muda quem nasce, mas o resto é sempre igual. Fez-se de tal forma à repetição da existência que a estendeu ao seu quotidiano, não consegue validar ideias sem a exaustão do raciocínio, morosamente. Não aprecio pessoas repetitivas que reclamam o rigor do segundo. Podem ter razão, aceito que a tenham toda, mas perdem-na, enterram-na, dão cabo dela quando a expõem assim demoradamente, no meio de um corredor onde passa gente que ouve durante longos minutos, os poucos que não se podem perder. Não quero os meus exames no carrinho do sr Carlos. Não quero ser mais uma na efusividade da sua existência, transportada fora de horas que não foram requeridas num carrinho de ferro conduzido a contragosto, por um homem pequeno e repetitivo. Amanhã, bem cedo, vou ao hospital meter o meu requerimento.  

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

...


(Andam aí outra vez, mas nenhuma das novas chega aos calcanhares de Adeus Tristeza. Tenho para mim que é da melodia, a lembrar-me a entrada num casório qualquer. Gosto de casamentos, e isto independentemente da amizade que me una aos noivos. Não tem rigorosamente nada a ver com o amor e a cerimónia, isso é com cada um. É porque é das poucas alturas da minha vida em que posso usar chapéu, pintar os lábios de vermelho e embrulhar-me num lenço de seda, sem parecer excessiva. E isso, já é cá comigo.) 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

facilidades

Oiço demasiadas vezes pessoas que vociferam coisas, contra os meninos que não querem aprender (todos os meninos querem aprender, assim a vida não os leve para outros caminhos). Lembro-me com frequência do Samuel. O Samuel não queria aprender, o Samuel queria o prazer fácil que o sossegasse depressa, não estava para ter trabalho (a vida já lhe dava tanto). Queria a consola que tentava roubar ao colega que não emprestava, queria apanhar o sol enquanto se deitava na relva a apreciar Joana, a miúda mais gira do colégio. - Era até ao osso, ouvia-o dizer, enquanto a pobre se esgueirava por entre as outras meninas, tímida, encolhida, envergonhada. O professor Tó não tinha paciência para saídas destas, faltas de respeito ( o que é isso, respeito? ), a menina merecia-o. - Vai cavar, malandro, e ele fingia que ia.
A Dona Zé da cozinha era outra das visadas. Salgava o que não devia, cozia demais o que tinha de ficar meio cru, deixava o pitéu sempre aquém da expectativa ( que vida, caramba, deveria ser feita à medida e não é!). Na parte da tarde, ao calor, era preciso estar sentado na aula teórica. Liliana, a professora de Inglês, tinha as costas quentes do marido, um educador brutamontes que assustava meninos desobedientes. Bastava-lhe isso para se pavonear por entre as mesas de cabeça erguida e ameaça na ponta da língua, para quê perder tempo com outras estratégias educativas (será que as há, quando ninguém quer aprender?). Cristina tinha a boca ao lado por um acidente vascular cerebral precoce. A fala ficou-lhe apanhada, a aparência estranhamente engelhada, perdia a paciência com a mosca que lhe poisava na orelha, quanto mais com as investidas de Samuel, cruel como poucas pessoas conseguem ser ( a vida, será que é?). António era o motorista que vivia a vinho tinto carrascão. Cheirava-se à distância de dez pessoas, para além da cor que se percebia a uns bons cem metros. Transportava a canalha para a outra escola quando era preciso, - não valem nada, dizia à boca cheia, -ninguém lhes dá educação,  um dia a sociedade ainda se há-de fartar disto ( nunca se fartará do vinho, néctar dos deuses e às vezes dos diabos. Ninguém lhes dá educação, ninguém lhes dá coisa nenhuma, qual é a parte da frase, proferida por vós, que não percebem?). 
Um dia chamei a mãe que olhou para mim sem nunca olhar para o filho. Uma figura inteiriça, farta de carnes e de presunção, com um umbigo maior do que o globo terrestre. O filho tinha vindo em má hora, quis a ignorância que não o tivesse percebido a tempo, só quando saltou dentro da barriga aos pontapés. Foi tarde demais, teve de nascer. Tinha uma história negra e pouco ou nada para dar, um trabalho numa empresa de limpezas e sabe-se lá mais onde, outros filhos, tantos encargos, mais uns vícios.

( A vida é também ela um ciclo vicioso. A grandiosidade de poucos é arriscar quebrá-lo, a sensatez de outros é tentar entendê-lo e harmonizá-lo, a pequenez de alguns é só desdenhá-lo. É provável esta última, percebo. Bem vistas as coisas, quem é que não aprecia uma boa facilidade? )

sábado, 19 de outubro de 2013

perdições

O mundo é um lugar harmonioso. Baralha-se quando as pessoas julgam que podem ser o que não são. Daí em diante, algures num passado longínquo, quiçá desde que o Homem é Homem, vivemos numa selva ligeiramente racional. 

( Do género, um dia ainda te como sem que tu queiras: pode, pode nem nunca acontecer, mas a vontade latente imiscui-se no ar que respiramos, transparece pelos ventos do suão, aloja-se nos fundos dos dias e das noites, cripta-se pelas madrugadas do Outono. A sorte é quando faltam as forças e morre ressequida onde nasceu, local de onde nunca deveria ter saído. E não, não acho que tudo seja permitido, do corpo para fora. Do corpo para fora devemos respeito ao mundo. Do corpo para dentro serão outras questões, intimas, pessoais, eventualmente e se conseguirmos, totalmente libertas das normas da socialização. Um ver se te avias, uma festa, uma ausência de limites, uma perdição.)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

clandestinidade institucional, pequena miragem de vida.

Saio pelo portão da frente e viro à esquerda, não posso pagar, ali ao lado há uma outra solução mais baratinha, também ela satisfatória. Não há médico, mas vai-se ao hospital, uma injecção dá a patroa, percebe do oficio, a comida é preparada na cozinha pela auxiliar que até sabe qualquer coisa de culinária, pica tudo na picadora, mistura na sopinha, fruta nem sempre mas quase, pão a todas as refeições. Leva seiscentos ou assim, ouvi dizer, não se passa fome nem solidão, há uma televisão para todos que anima o espírito nos dias em que ele ainda vive desperto, nos outros espreita-se só a fresta da janela que dá para a estrada, não há quintal. Em opção posso sempre ficar em casa sozinho, distraído pela doença neurológica que desencaminha muitos euros em comprimidos, leva memórias e competências, atenções e capacidades de comer a horas e de ter cuidadinho com os bicos do fogão. Depois vem o Natal, e o que eu gosto do Natal. No Natal as pessoas preocupa-se muito com os velhinhos que passam os outros onze meses sozinhos, trazem farófias e fatias doiradinhas e polvilhadas a canela e açúcar, o café escuro acompanha. Nessas alturas tudo parece funcionar em permanência, a solidariedade brota nas pessoas, nas famílias, nos políticos e na vizinhança que não quer perder a oportunidade da boa acção que acolhe a necessidade de braços abertos, há alturas em que o mundo se sustenta a ele próprio. Ah, maravilha das maravilhas. Mas depois vem o ano novo e a vida velha. O costume, o pão que está seco, a sopa que azedou, o dinheiro que não cobre as dores que desatinam nas pernas e nas costas, malvadas, em tempos varriam o mundo. Volto a pensar e preciso de um sítio que eu possa e que exista para mim. Os que existem para mim são os que que eu consigo pagar, que aos outros não chego, por pobreza ou falta de poder, logo não constituem solução. A clandestinidade para mim não é um problema, é uma resolução.

(E um País que permite e incentiva isto, não é desenvolvido, é uma aberração. Desenvolvimento é adaptação às limitações, e não decretos em escadinha com exigências bonitinhas e dispensáveis que não matam a fome, não curam doenças, nem eliminam a solidão.)

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

mudanças

pela vida.  Quis o mundo que as mulheres gerassem, que as mulheres parissem, que as mulheres criassem. Quer ainda que as mulheres agradem, que as mulheres sejam, que as mulheres amem. A sociedade aprimorou-se e hoje exige que sejam belas, mas que mantenham o resto. O resto faz viver o mundo real, mas a realidade não se prende apenas com a concretização do corpo. A construção interna de uma imagem feminina tem direito à beleza, que morre com o passar da vida. E com a continuidade da mesma. Ora bolas, que não encontro um final perfeito. Valham-nos então os felizes, pois.  

terça-feira, 15 de outubro de 2013

fotografias de gente feliz

Gostava de vê-los, aquela coisa do casal, duas filhas lindas, um carro jeitoso, uma apartamento comprado há pouco nos prédios ricos da cidade, uma pose feliz. Ela ligeiramente grande, foi a gestação das filhas, havia que correr ao fim do dia enquanto as ditas ficavam na avó, fizesse chuva, fizesse sol. Parece que o esforço não se dava a conhecer a quem espreitava, tinha sempre ar de matrona imponente, e a antipatia não ajudava a compor a delicadeza que se quer numa senhora. Encontrava os dois a subir o prédio, meninas pelas mãos, pressa no passo, entra, beija, deixa, a correria das matinas que se preparam para largar em fugida mal vacilamos os pés tropeços nos saltos ou nos sapatos de graxa, sim sim, ainda se usam. Há tempos que a encontro só a ela, ligeiramente mais leve de corpo, significativamente mais pesada de espírito, impaciência expressa na voz, na boca, no cabelo, na roupa, muito embora com simpatia manifestamente mais desenvolvida, confesso que nem percebia. A avó espera sempre na escada, as netas correm todos os dias para lhe chegar, e parece que já não as incomodo à passagem, valha-nos isso. Não o via há uns meses, poucos, dois ou três, o tempo suficiente para agora o encontrar a sorrir nas Caraíbas (alvissaras às redes sociais), ao lado de uma outra senhora também ela imponente, mas desta feita muito mais sorridente. Andem, poupem-me a explicações, eu sei que os homens se perdem com simpatias, não deve haver nada melhor. Foto explícita, coco na mão, legenda ao lado, não vá o mundo perder a felicidade que expele dos olhos já sem óculos, há soluções muito mais charmosas, todos sabemos. Menos incómodas também, estamos lá para chatices crónicas. Vi-o ontem nesses propósitos, mesmo antes de hoje a vislumbrar novamente, saia travada, saltinho médio, filha ao colo, filha na mão, a pressa de sempre, a avó à espera, o dia que corre quase quase igual. Nem me perco a imputar acusações, tenho lá eu tal competência, muito embora pudesse tentar, sou mulher. Centro-me em poucas questões essenciais, ora vejamos: a maternidade é a melhor e a pior coisa do mundo, da paternidade não falo, não sei o que é; a minha vizinha de baixo, sempre atenta às minhas saídas e às minhas chegadas, está por ora ocupadíssima no amparo às netas e à filha, vai-me deixar para sempre em sossego, tenho para mim; a impertinência, concluo, é um problema que se resolve por si, deveríamos estar conscientes disso, de nada me valeu o cuidado nos saltos, o elogio da paciência, a tentativa de emitir um ar de pessoa que gosta da vizinhança, pelo menos quando comparado com a tranquilidade impelida pela ocupação interna e externa da senhora (o ócio não dá saúde a ninguém); a simpatia pode nascer tarde, quase aos quarenta, dizem que não sabem porquê, mas eu juraria que sei; as Caraíbas, são um óptimo cenário para tirar fotografias de gente feliz.    

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

géneros

Disseste-me ontem que distingo homem de mulher com uma forte veemência, de um lado uns do outro os outros, cada um com a sua tarefa a cumprir, distinta, fragmentada, definida por um critério impresso nas páginas dos tempos, como se esses não tivessem ultrapassados. Não estão, lamento dizer-te mas não estão, se é que importa analisar propósitos e tarefas de género, como se o corpo a sociedade e o espírito não se encarregassem por eles de fecundar caminhos distintos, sem discussão. Não me soa a estranho, não me impugna o encanto, sempre gostei de ser mulher, havendo o homem no lado oposto da barricada. De resto, nunca me perdi em discussões feministas quando as mesmas se constituem extremistas ao ponto de considerarem uma igualdade impossível de acontecer, muito além da razoabilidade dos direitos de dignidade, porque esses não se discutem. Porém parece-me importante referir, que se por um lado encaixo o homem no lugar do homem e a mulher no lugar da mulher, tenho cada um em muito boa conta, são metades, ambos existem em igualdade e em diferença. É por isso que me excluo completamente das que o julgam um mero enfeite doméstico, um acessório ligeiramente incómodo que serve para fazer biberões à noite, levar o lixo à rua e os miúdos à bola, segurar o comando da ZON e ir comprar pão quando chove. Para além das bilhas do gás, claro, que as plumas acho que já nem existem, e se existirem são transportadas às costas de meninas agradáveis, não nos interessam nada, portanto. Também não pertenço à classe das que os consideram uns palermas aturdidos por isto ou por aquilo que agora não interessa especificar, capazes de pensar pouco e de fazer ainda menos, reféns de um corpo que gosta de sossego e de comidinha a horas, na mesa e onde apetecer. Caramba, tu não sabes, se calhar eu nem te digo, mas tenho-vos mesmo em boa conta. Vocês podem ser sensíveis, pois podem, e não ficam com um ar frágil, ficam com um ar humano e nós gostamos, mesmo que seja sempre às escondidas do mundo lá fora. Vocês são inteligentes como nós nunca sabemos ser, uma inteligência segura de si, pouco dada a colapsos nervosos reservados para a outra metade do planeta. Vocês podem ser tolerantes ao limite do razoável, fazer orelhas moucas quando não devem mas também quando devem, quando as hormonas nos engoliram e notam-me muito a olho nu, nos gestos rápidos, nos olhares retorcidos, nos sonos agitados, nos gritos estrídulos. Vocês sabem ainda que um galanteio nos recupera do mundo dos mortos, aquele onde caímos por pouca coisa e de onde julgamos nunca mais sair, é impossível, muito fundo, tão escuro, irreversível. Vocês vivem a vossa vida e a de quem está próximo, passam pela alheia como nós passamos por carros de fórmula 1, e isso chega-vos e não querem mais. Nós não temos isto mas temos outras coisas, umas boas e algumas más. Uma certa complementaridade que há quem goste de frisar como incómoda, sem pensar que a única verdade é que se fossemos seriamente iguais fugiríamos uns dos outros, e o mundo, o pobre, morreria. Por tédio e ausência de multiplicação, ambas terríveis, abomináveis, desprezíveis, completamente evitáveis.    

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

frustrações

Não olhem o mundo com a ilusão interna da construção à medida, olhem-no com olhos de ver. Não o cheirem afastados ou demasiado próximos, ambos turvam a claridade exacta, tanto quanto é possível tê-la. Espreitem-no todos os dias sem critério de superioridade ou inferioridade, imiscuam-se nele, percorram-no por dentro e por fora, sem medo e com perseverança. Vivam-no, esmigalhem-no, observem-no com a minúcia detalhada da cirurgia que corta e repara, para que fique inteiro outra vez. Desiludam-se, sim, por muito que exerçam a tarefa ao rigor matemático a desilusão estará sempre presente, é assim que se constrói a realidade do lado de fora, que a outra é imaginação, idealização, construção interna crescida à medida da individualidade de quem quer o mundo redondo, com perfeita sintonia entre o mar e a terra, entre o ar e o céu,  escorreitos em continentes pequenos e fluidos que percorrem o circuito exacto da sensatez que não há, mas que nós queríamos tanto, mas tanto. Insisto para que o façam de exacta forma comigo, peço que não me imaginem num ser que não habita senão na mente, e que encarem a frustração sequente de algum abuso atrevido, como aquilo que me faz gente. De outra forma, eu não existia. 

(Às vezes não pensamos nisso, mas a frustração é o que nos torna reais.)

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

infertilidades

Espanta-me a leviandade com que pessoas escrevem livros. Aceito artigos de opinião, ensaios de pequenos textos, blogues, revistas, palavras seguidinhas com um propósito específico de carácter diverso, mas livros são outra questão. Um livro é um conjunto de folhas reunidas onde as palavras se encaixam para um propósito unipessoal, destinado a cada leitor que se deixe desafiar. É um aglomerado de factos, ideias ou histórias com capacidade para sacudir o mundo que nunca mais ficará exactamente igual, perante a novidade. É um conto fantástico e impossível narrado ao pormenor do detalhe, e deixem-me referir-vos aqui as intermitências de Saramago, não há exemplo melhor. É um encaixe encadeado em personagens inventadas mais próprias do que a pele que as escreve, por dentro e para fora. Quando pegamos num livro folheamos e cheiramos as folhas, olhamos a lombada, espreitamos o prefácio e a partir daquele exacto momento sabemos que a história também nos pertence. Em conclusão, um livro oferece imaginários, e oferecer imaginários é uma responsabilidade. A ligeireza com que hoje se vendem histórias só é comparável à maternidade imprudente. Mães que não são mães geram o corpo mas não geram a alma crescente, deixada sozinha ao Deus dará deste mundo. Não sabem o cheiro, não conhecem o choro, perdem a essência e não acodem aos medos. Em ambos os casos deveria reinar uma certa infertilidade.

motivações

No caminho encontro sequelas apagadas do que já foi. Cartazes rasgados pela fúria do tempo ou outra fúria qualquer, enfeites que definham no fresco do outono, promessas feitas e mortas num Domingo, dia de descanso, à medida que as horas passavam e contavam votos que derrotavam ou elegiam a proposta criteriosa de quem prometeu a vida, porque dava jeito. Fez-me lembrar o grande Skinner e a motivação, uma teoria excessivamente descredibilizada, não obstante a verdade que acarta em cada palavrinha descritiva. Será eventualmente a prova mais do que provada do poder do condicionamento em detrimento da cognição e da emoção humana, deveríamos considerar a existência frequente dessa possibilidade. Quando se esperam resultados positivos muda-se a cor ao céu, a forma ao mundo, promete-se dar o que não se tem e matar-se de morte matada a necessidade, o desemprego, a indignidade e a exploração. Quando já não se espera nada volta tudo a ser gente outra vez, vencedores ou derrotados, e o sossego percebe-se nas esquinas dos prédios, nas caras das pessoas, na normalidade da realidade, no que não há nem vai haver.

sábado, 5 de outubro de 2013

sobrevivências

Há muito que escorrego de mansinho pelos conjuntos de mães. Tropeço neles pelos corredores da escola, no portão da entrada, na pastelaria em frente, nas filas dos supermercados, temo que qualquer dia se tornem virais e me tomem à minha passagem, de emboscada. Falam entre elas das roupinhas que não servem, das tosses que nascem indesejadas a meio da noite, de professoras de matemática que não explicam convenientemente a matéria, de directores de escola que deveriam era estar a aprender relações humanas, de professores de educação física que sujeitam meninos a sacrifícios sobre-humanos, aulas debaixo de chuva, nunca foram pais, vê-se bem, se tivessem sido tudo isto lhes faria doer. Encontram-se normalmente de braços cruzados mas de pose preparada à movimentação efusiva, à demonstração por gestos de todas estas desgraças que atacam as criancinhas da casa, indefesas, uns seres pequeninos para sempre que necessitam de guarda próxima, detalhada e partilhada, discutida em praça pública ao mais ínfimo pormenor do detalhe. Como eu, há umas poucas, certamente apelidadas de demitidas. Percebo-as à distância, olham só para o filho quando o acompanham e dizem bom dia às que ficam sem abrandarem o passo, abrandar o passo pode sempre ser a morte do artista e representar a necessidade de permanência forçada na roda das decisões que urgem ser tomadas na hora, no dia, debaixo da chuva ou do sol, para posterior reconhecimento por quem de direito, a directora de turma, figura também ela ligeiramente hedionda. Num ápice entramos no carro e escapamos dali, e deixamos para trás aquele cenário inacabado de cabeças pintadas de cores distintas, as verdadeiras guardiãs dos filhos, delas, dos outros, dos das terras vizinhas e dos do mundo no geral. 
Não fosse a meia dúzia que encontro e ficaria deprimida, não há como a pertença para nos segurar a permanência. Assim, e no seio da demissão, sobrevivo todos os dias, ao vê-las passar por mim.    

( Curiosamente, e aquando da necessidade de intervenção efectiva e verdadeira, raramente oiço alguma, calam-se, apagam-se, encolhem-se num canto estranho e desaparecem, todas em conjunto, à espera. )

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

personagens

Há muito que lhe sigo a história delirante do namoro escondido ao mundo com um dos elementos dos Onedirection, que não sei quem são. Já li linhas e linhas de dizeres projectados e construídos na ideia impossível de concretizar, já a chamei ao mundo e já sonhei com ela, já quase consegui experimentar os sentires que delineia num fanfic de personagens reais, o único local público do mundo onde a sua vontade existe mesmo. É nele que o conhece na saída do metro de Londres, é aí que ele repara nela e se apresenta, a leva pela mão e lhe oferece umas flores enquanto conversam em Italiano, um pormenor que faz a história, mas que não faz a felicidade. Felicidade são os outros, claro, as mãos que tocam, as palavras que se dizem, a fabulações imiscuídas em macarrones doces e coloridos que sabem a chocolate sem que saibam, muito embora possam saber, não sabemos, nunca saberemos sem antes provarmos. Há coisas, admito, que se podem julgar conhecer. Há fantásticos que se ousam ter, vivenciar, provar, sentir a que sabem e a que cheiram, esventrar devagar e deslindar o que sonham, o que pensam, o que comem e o que ambicionam, o que temem e o que renegam, o que querem e o que tocam. Acabo por ficar sempre muito satisfeita quando encontro adolescentes capazes de divagar assim, uma permissão concedida para o mundo dos sonhos acordados, uma experimentação clandestina dos ídolos que se penduram em forma de poster na parede do quarto, que se olham e que se acariciam com os olhos à distância de coisa nenhuma, estão lá dentro, são delas, só eles não sabem disso. Depois tudo passa com a idade. Ou não passa, pois, permitindo a quem conjectura uma continuação de uma personalidade ingénua o suficiente para que viva agarradinha a fanfics naïfs, escritas por cabecinhas desocupadas em papel pardo ou em ecrãs de computador abertos aos olhos do mundo, este lugar onde podemos "quase ser" tudo o que quisermos, sem sermos. Nada contra, claro, são opções. Apenas penosas, suponho, quando a personagem basta por si.

dos luxos

Ainda continuo na dúvida existencial entre o dinheiro e o tempo, na classificação internacional do luxo. Hoje pensei nisso quando trouxe o jornal que não li por falta de tempo, a alguém com horas vagas que não o pode comprar. Abriu a janela, sorveu o ar com cheiro a humidade, encostou-se numa cadeira carunchosa e deixou-se estar, com tempo e sem dinheiro nenhum.

( Isto foi escrito há uns dias mas não foi publicado, por falta de tempo e paciência. Entretanto, e por portas travessas, descubro outro luxo muito mais importante: a lucidez. Levem-me o pouco dinheiro, roubem-me as réstias do tempo, mas deixem-me a lucidez fora disto. Não há nada mais incómodo do que observar a sua inexistência, aqui e ali, em apontamentos extraordinariamente frágeis, alucinados, pequenos de meter dó.)  

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

mitos

Viveremos por certo eternamente subjugados ao mito da força intelectual. E viveremos assim muito bem. Acreditamos nisso, causa-nos um certo conforto a ideia de que a mente concebe e a matéria obedece, de que só transpomos do corpo para fora o que o nosso sistema interno permite. A complexidade excede o dizível e por isso apuro o pensamento. Ocorrem-me duas situações de rompante, totalmente distintas entre si. Uma em que a força física vence, por imposição de supremacia declarada. Há aos magotes por ai, concluo que o entendimento viva lá adormecido. Outra em que vence o intelecto, por apenas nele conceber determinadas construções. Esta neste caso é minha, mas certamente não só. Porque chamo então de mito a questão da força intelectual? Por ser imensurável, indescritível, inaudível, impossível de converter em substância. Vejamos a questão do Q.I. Meço-o amiúde com cubos devidamente destinados ao efeito, sequências lógicas de acção que determinarão a capacidade de abstracção e de ordem, labirintos infindáveis e complexos que ditarão a existência ou não de capacidade de visualização num todo, operações aritméticas complexas que atestarão o raciocínio matemático. Traduzo tudo, abusivamente, num número inserido numa tabela aferida à população portuguesa, dito que a criança tem uma inteligência suprema, enquadro-a na perfeita capacidade de resposta escolar, mas a dita erra as contas de matemática. Meros exemplos, perfeitas indagações, puras manifestações efectivas da complexidade que nos regulamenta a acção. Interna, externa, de complemento. O cerne, o complemento. O contrabalanço do dentro e do fora, aquele que me faz pensar no Homem, dar pouca crença à teoria prática, desprezar a certeza absoluta e amar, de paixão apaixonada, o mito da subjectividade e toda a sua consequência.

( A propósito, leiam o que disse uma criança gira, aqui.)

sábado, 28 de setembro de 2013

palavras

Dizem que me vão levar um bocadinho do corpo com a mesma descontracção com que dizem que vão comer uma torradinha ao bar do hospital. Olham-me de frente sem procurar palavras (detesto pessoas que não procuram palavras) e atiram com as primeiras que vêm à boca, que podem soar bem ou menos bem, podem vir a direito ou podem vir de soslaio, podem atingir-me em cheio ou procurar o caminho para que me cheguem sensatas, se tiverem vontade própria. Não têm, disparate, nunca têm, as palavras não vivem por si, soltas no mundo a procurar combinação e cuidado, as palavras são uma arma certeira que utilizamos em comunicação, que transportam cargas efectivas de sentires manifestos, que nos vivem do corpo para dentro e dele para fora, mas nunca sem imposição. Há as que muito nos dão e as que pouco nos trazem, as que amamos e as que odiamos, as que tememos e as que ansiamos, muitas delas atribuídas a circunstâncias específicas, e por isso merecedoras de um lugar de destaque. Olham para mim e explicam-me a mecânica da situação como quem me relata as regras de um jogo qualquer, dissertam rapidamente sobre o furo pequenino que sarará em meia dúzia de dias, o que muda e o que ficará igual, quem constituirá a equipa e quanto tempo será necessário para que eu regresse a casa com um pouco menos de mim. Tudo se processa de forma rigorosa e profissional, tal e qual a da costureira que nos corta da saia o pedaço de pano que esgarçou, vai levar menos um bocadinho, cortou-se aqui, não havia remédio, ambas coisas próprias da idade.
No seguimento saímos e inevitavelmente vamos pensando na constância dos lugares, das coisas e das pessoas, na constância do corpo e na constância da alma, e percebemos que passamos uma vida a adaptarmos a mudança a nós e nós à mudança, ao mais e ao menos, ao muito e ao pouco, ao que precisamos e ao que dispensamos, ao que queremos e ao que conseguimos, ao que gostamos e ao que detestamos, ao que tememos e ao que alcançamos. E pensamos também, porque há dias prósperos a pensamentos, que o vazio das palavras é uma realidade tão palpável como o sumo das mesmas, que a utilização que lhe é dada é de uma importância fulcral, e ainda que o vento que as leva nos ditos populares pode ser o vento quente do estio, persistente, incómodo, sobranceiro. Eventualmente, e por vezes, vento nenhum.   

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

primaveras

A manhã despertou de uma noite escondida no fundo do armário das vontades, atada a fitinhas de seda que me emprestam doçura às mãos, pequenas, velhas, mirradas. Olho-me para o espelho sem delongas que permitam o traço preciso nos olhos castanhos, uma banalidade que vê de manhã cedo o cheiro do meu filho enrolado num lençol de quadrados, nariz de fora e mais nada. Apresso-me com os caracóis em desalinho, as flores secas espalhadas no chão, os bichos da casa que teimam viver e morrer quando o tempo quiser, é a vida e é a morte, esquecemos sempre de frisar esta última. Persigo as horas que fogem de um lado e tardam do outro, e de seguida espreito algures uma ardósia que pergunta que idade eu teria se não soubesse a que tinha. Depende, apeteceu-me responder. Tenho muitos anos logo de manhã cedo, quando acordo e quando afago, quando desperto para a vida e para a morte, quando tenho de cumprir o rigor dos dias que nascem quando eu queria que ainda estivessem apagados, nem que fosse só por mais uns minutinhos. Tenho poucos quando as vontades me dão cabo do coração descompassado, com idade suficiente para já ser crescido e ter juizinho. Tenho muitos quando como com uma vontade de leoa o que se espalha no meu corpo que absorve até o ar que trespassa as ruas vazias do Inverno. Tenho poucos, pouquíssimos, quando me encosto à ternura dos dez e me deixo estar ao lado dela enquanto como pipocas doces, que nem sempre aprecio o sal. Tenho imensos, tantos, quando olho para o calendário, mas não tenho quase nenhuns quando me agarras nas mãos como se eu fosse uma criança, de olhos abertos ou fechados, e vou. E também ai, verdade das verdades, acabo por não saber ao certo quantos tenho. Tenho alguns quando imagino o sobrinho que me nasce não tardará outra lua, o Outono é sempre bom para vir ao mundo, dias pequenos e frescos, sem excessos de claridade. A propósito, gosto do Outono, muita da minha vida começou no Outono: comecei eu, começamos nós, às vezes parece que há poucos, outras que há muitos anos. Fico até com vontade de te perguntar há quantos anos começamos, na tua cabeça, no teu colo, no meu rosto, no teu corpo, no nosso beijo. 

terça-feira, 24 de setembro de 2013

psicotrópicos

Não nos espantemos, ora, não há tempo para humores ligeiros, para afagos apaziguadores, para acções tranquilizantes de corpo e de alma. É o "alimento" condensado, o menor esforço, o preço mais baixo e o resultado garantido. Também não há culpas imputáveis, há somente a procura da satisfação própria de cada um numa sociedade em que a disponibilidade e o sossego se encomendam com muitos dias de antecedência, vão dar a volta ao longe e chegam cansados às mãos de quem pediu por precisar, sem carta e sem selecção. Não nos espantemos, pois, e mais do que tudo não condenemos, anda tudo farto de indignações. Pensar já todos podemos, intervir no que nos tiver ao alcance, também. Analisar alternativas em causa própria, quando as há, será além do mais inteligente. É por isto que números aos magotes nunca foram o meu forte. Setenta e cinco mil embalagens por dia é muita embalagem, convenhamos, e se o número não servir para nada além de constatações formidáveis, é por si só uma afronta ao País, aos técnicos, aos Portugueses e à sociedade no geral. E se assim for, perdoem-me a franqueza, mas mais vale deixarmos em sossego clandestino o silêncio da embalagem colorida, o ânimo fresquinho acabado de sair do invólucro fechado, a felicidade que se engole em forma de efeito concreto ou de efeito placebo, não importa, desde que seja um efeito qualquer que faça rir quem chora, animar quem definha, adormecer quem esbraceja, ou calar quem grita. 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

...

Diz-me pelo telefone que a idade a ataca. A quem o dizes menina, a mim doem-me partes significativas do corpo, dizem que é dos anos, aqueles que me tingiram a tez de cansaço. Há, e tenho uns olhos que me ardem às vezes, quando a noite se esquece de mim e me deixa plantada na janela do quarto. A minha bisa, recordo-me sempre dela, engelhou até aos 100, e eu lembro-me muito bem de que engelhou devagarinho. Era do lenço preto que lhe escondia a cara e da sardinha rançosa que comia amiúde ao jantar. A culpa será então do salmão fumado e do pãozinho de sementes com queijo amanteigado. Por outro lado também já quase não há quem aguente o sol a sol, a não ser por detrás de uma janelinha camuflada, à guarda do ar condicionado. Caramba, há uns dias a esta parte que o conservadorismo parece nascer-me nas pontas dos dedos. Não, não é isso, não é nada disso, não sei se viveria a sandes de courato, mas eventualmente viveria direita muito mais anos. A única maleita que lhe conheci era o desassossego cardíaco que impedia as pessoas de se situarem do seu lado esquerdo. Era uma palpitação de morte, que nunca a matou a não ser mais tarde, sozinha numa cama em frente ao oratório. Disseram-me depois que as palpitações eram coisas da cabeça dela, e a partir dai nunca mais dei grande crença à sintomatologia psicossomática, oiço-a, aligeiro-a, trato-a por tu e de cima para baixo. Fazia anos rentinha a mim e dava-me sempre figos e nozes que eu comia no degrau de pedra, nas bandas do alto do monte. O monte entretanto também morreu de cansaço, faltou-lhe a sopa de feijão a fervilhar na panela, os pontos costurados, as galinhas cortadas pelo pescoço.
Não há fortaleza que resista ao requinte. As pessoas, na generalidade, é que não se convencem disso. 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

pés de igualdade

Henrique é um depressivo crónico que me lê os estados de espírito com a clareza da água. Funga uma vez quando eu estou bem, funga duas ou três quando não estou. Por vezes tento trocar-lhe as voltas mas nunca consigo. Nessas alturas esfrega os dedos no cabelo como que a querer dizer-me que não o engano. 
Há pessoas que me conhecem há anos e raramente me lêem. 
A minha gata cheira-me e esfrega-se nas minhas desordens, mas julgo-a egoísta, nada a ver com o meu cão. Os animais são muito diferentes uns dos outros e as pessoas também, como se pertencessem todas a espécies diferentes. 
A doença mental sem perca de lucidez desenvolve uma perspicácia desconcertante, e a invasão do meu espaço por parte de quem não deve, incomoda-me. A ausência de sagacidade por parte de quem está próximo, também. As duas em pé de igualdade. Engraçada, é a vitória de uma suposta limitação sobre a desejada normalidade, no campo das relações em sociedade.

( Os gatos são normais e os cães são depressivos crónicos. Nada mais óbvio.)

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

mulheres

Mulheres juntas são um fenómeno estranho. Podem carregar com o mundo ou derrubar o mundo, depende apenas do que as move. Também conseguem, e ai reside o perigo, derrubar o que acabaram de construir só por capricho. Somos um fenómeno estranho, já tinha dito?

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

evoluções

Os dias amanhecem cedo. Cedo é sempre cedo demais, logo quando o restolhar dos Invernos nos convida ao cobertor pelas pernas, com chá e torradinha. São muitos os meninos que entram. Já ia em quinhentos, oiço dizer, que esticam a mochila onde os livros balançam numas costas pequeninas rente ao portão, onde se activa o cartão magnético. Também isso começa cedo e eu não sei onde pararemos. É que por vezes penso onde terminarão os limites da evolução. Cartões era só mais tarde. Redes sociais não havia, beijos tinham de ser roubados e às escondidas, até dos olhos dos cães. Palavrões quase não existiam, e se os houvesse era longe de casa, para lá da serra. Havia o pico com almofadinha e os cadernos de linhas, mas jamais um portefólio.  Havia pão com doce, nunca bolachinha recheada com creme de cereais. Também não havia sumos light nem muitos meninos gordos, e isto também deve querer dizer qualquer coisa. Onde terminará a evolução? 

( Não sou nada adepta de conservadorismos. Estou curiosa, nada mais do que isso.)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

...

Ninguém pode viver as minhas dores. São minhas, nasceram-me dentro da alma, perdidas entre um músculo e um suspiro, uma dúvida e uma pertença, o medo e a calma. Trato-as portanto com carinho, abano-as no meu colo quente e segredo-lhes dizeres ao ouvido, embalo-as rente à noite e adormeço-as com o cuidado devido para que não sobressaltem inquietas, com os ventos soturnos de Outono. Hoje, por exemplo, dói-me o meu naco de mãe. Para além de outros, também. Poderia espantá-la, tentar distraí-la, contar-lhes uma história ou uma piadinha cuidada que a fizesse rir e esbracejar de contentamento, mas em vez disso prefiro dar-lhe esmerada atenção. Oiço-a com tempo e paciência, escuto-lhe as razões da existência, percebo-lhe os fundamentos e os anseios, espreito-a por dentro e por fora, arrumo-a em mim. 

(Também não aprecio nada quando as desdenham. São valiosas, valem sempre a pena, o tempo que lhes dedico ensina-me a saber curá-las cada vez melhor.) 

sábado, 14 de setembro de 2013

dentes

Ultimamente perco as noites a olhar para os cozinheiros do Masterchef. Encantam-me os ingredientes espalhados nas mesas, a caixinha mistério de onde saem verdadeiras maravilhas, as cores deliciosas dos alimentos da despensa. Não sou refinada, nadinha, tanto me delicio com um tártaro de salmão como com um bom arroz de cabidela. Só esbarro verdadeiramente com uma concorrente detestável. Um dia destes todos desfizeram um ouriço do mar azul, cheio de espinhos venenosos. Confesso ter esperado ansiosa que espetasse o dedo mindinho num deles e atirasse um gritinho estridente capaz de lhe fazer cair os dentes. Claro que só, jamais desejaria uma consequência mais drástica a uma senhora. Os dentes um a um, devagarinho, parece-me extremamente adequado a uma mulher que diz à boca cheia que é a melhor cozinheira de todos e que me merece ganhar o desafio. Não sabe, possivelmente não merece, certamente até vai perder, e ficaria com uma boca cheinha de nada.

( Nunca devemos engolir demasiada prosápia. Corremos o risco, a sério, de um dia nos caírem os dentes.) 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

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( Eu sei, eu sei que piadinhas de profissão são qualquer coisa de desprezível...)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

mundo real

Uma menina de oito anos casou com um homem de quarenta. Morreu, no seguimento da sua função. Enquanto as questões culturais superarem a dignidade humana, viveremos sempre numa selva. Enquanto pessoas pertencerem umas às outras, viveremos sempre numa prisão. Isto leva-me a pensar no Homem até à sensação de impotência da sensatez e do respeito, perante o poder. E na terrível derrota da inteligência, pois. O que supostamente nos distingue da bicharada.

( E hoje, só por acaso, é onze de Setembro.)

domingo, 8 de setembro de 2013

da vida

O medo vê-se muito no rosto dos vivos doentes. De resto, o rosto é o único sítio onde se pode ver o medo. Na cara dos vivos doentes vêem-se medos que atravessam a pele cinzenta em ânsias por algum alívio, ainda que fugidiço. A doença terminal expõe quem a atravessa a um luto próprio, por expectativas que findam e por dias cancelados por uma força maior da qual se tem um receio profundo, residente ao lado da fraca esperança. Muitas vezes falsa. A esperança é uma confiança frágil e mortiça que por vezes renasce e nota-se nos olhos. É por isso que os doentes nos confundem o olhar perante um ar expectante e ao mesmo tempo assustado. Nem sempre o exterior age em consonância com a necessidade. Do lado de fora, um lugar confortável, acreditem, ousamos alternar a força com a fuga, uma auto protecção, uma defesa declarada. Somos humanos, achamos que temos direito a tudo. Não temos. Não há rigor cientifico, é certo, mas resta-nos a sensatez da retribuição trabalhada, e sempre, mas sempre, a presença. Não há nada que mais me repugne do que a fraqueza de quem foge ou desdenha os que estão na beira da morte. Até porque a morte é uma escola de vida. A cara dos que estão na beira da morte é o único local do mundo onde eu consigo ver a minha. Todos deveríamos vê-la de olhos bem abertos, senti-la, cheirá-la, saber como chega e como se instala, como nos come e como nos arrasta. Não há como o conhecimento para sabermos viver: quanto mais soubermos, melhor vivemos.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Jasmim


(Fotografia do Paulo)

Segredaste-me ao ouvido ao mesmo tempo que os segundos voavam entre os ventos fortes de Outono e as primeiras chuvas de Inverno. Deixaste que os gestos dissessem o que as palavras escondiam entre os teus olhos verdes e a tua boca grossa, o corpo tem discrepâncias capazes de nos traírem o propósito, asfixiado por sentimentos maiores. Hoje, com palavras ditas e amores falados, agarras-me pelas minhas mãos frouxas ao mesmo tempo que engolimos a cidade a uma velocidade vivaz, incauta, estonteante. A fusão torna a inversão viável e todas as propriedades possíveis, devidamente acondicionadas em almofadinhas cor de terra e de fogo, macias o suficiente para que nelas nos deitemos enquanto o sol se põe para dar lugar à lua, também ela muitíssimo nossa. Só temo mesmo a janela do quarto de qual a espreitamos. Envolve-a uma varandinha florida, pequena e frágil, que a qualquer minuto pode desabar. Exige-me cuidados redobrados, exímia atenção, exagerada cautela. Coloco um pé com jeitinho, depois o outro, e espreito para as ruas calmas enquanto me perscrutas do quarto, sempre num cuidado inquieto por uma veleidade qualquer. Nunca te deixas disso, nunca nunca te deixas disso. Eu olho-te invariavelmente com os mesmos olhos, miro-te por detrás de uns caracóis insistentes que me cercam a testa e me tapam o sinal azul e real que me habita desde a nascença, jamais deveria permitir que o escondessem, não há maior nobreza no meu corpo. Há porém fraquezas muito maiores em mim. Não acautelei convenientemente o meu coração, por exemplo, deixei-o contigo à hora certa, entre um dia e um outro, perdi o norte à exactidão do instante. A partir dele todas as flores dos jardins por onde nos passeamos têm perfume de jasmim, que hoje alaga a cidade e a deixa afundada numa penumbra embaciada por fins de tarde e por beijos. E o que eu gosto dos teus beijos. Aprecio-os especialmente quando os consigo roubar por entre os lençóis quentes da noite fresca, madrugada afora, esbanjados por entre as luzes perdidas de uma qualquer rua sem fim. Agora vou ali mirar o sol de Setembro, para logo depois me esperares no mesmo sítio, sempre igual. Não recearei sequer a varanda do quarto, que há muito me cheira ao aroma forte do jasmim. De lá, consigo ver o mundo.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O que será, que será?


( Foto de capa do novo álbum de Cher, actualmente com 67 anos, retirada daqui.)

Sensualidade pura, ou o duro medo de envelhecer?

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

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( Fotografia (linda de morrer) do Paulo.)

Já me disseram dele o que esquece ao diabo. Amaldiçoaram-no com vozes mordazes no rescaldo das dores que se arrumam lado a lado no armário dos desperdícios esquecidos, junto às aranhas, aos sapos verdes, às saramantigas e a outros bichos medonhos. Juram-me no seguimento a ausência eterna e jamais renegada, ensaiam uma solidão como quem treina uma musiquinha ao piano, dias e dias a fio, vai sempre soando um bocadinho melhor. Ousam espezinhá-lo, entregá-lo ao mundo dos mortos com as próprias mãos, cremá-lo, despejá-lo no monte para que voe com o vento que corre apressado e sem direcção, sem direito a flores e a rezas, a missas ou a orações. Atribuí-se à sua existência a desgraça da tristeza, grita-se em fado acompanhado a guitarra portuguesa, recita-se em prosa e em poesia, com ou sem verso, declamado num palanque ornamentado a flores e a cores, teatraliza-se em gritos e em choros que agonizam quem sente e quem olha a querer saber como é. Ninguém sabe e todos conhecem, ninguém necessita e todos precisam, não há quem o descreva, felizmente sente-se. Sem ele morreríamos entregues à lassidão, submersos em horinhas corridas e sem emoção, sozinhas e magras, sem poesia, sem saudade. Seria o mundo um local sem rei e sem roque, seríamos nós uns pobres sem coração, que bateria ao rigor do compasso sem descompasso nenhum, de marcha sem direcção, de abraços sem redor e sem sal, de bocas abertas a nada, de corpos tementes de coisíssima nenhuma. Será porventura dos mais poderosos constructos intangíveis, uma força bruta, anímica, que  rebenta com a solidez de uma rocha e com os picos de uma montanha, que respira e que suspira, que aspira e que sufoca, que mata e que faz viver. Ainda há pouco o amaldiçoaram de novo perto de mim. Ainda há pouco o definiram como um mero derivado do afecto, um sucedâneo promiscuo com língua e com corpos, uma aspereza que se esfrega até cansar para depois sucumbir ao cansaço da dualidade e regressar à unidade, cada um por si, um por cada qual, no caminho vazio de um sítio qualquer. Assanham-se ligeiramente quando me insurjo em reacção. Recolhem-se depressa numa túnica mal acabada quando me revolto, tapam os ouvidos surdos e fecham a boca morta, abraçam o corpo já velho e acutilam os gestos que pudessem renascer em ligeira euforia de contraditória manifestação. Fecham a porta, voltam as costas e seguem caminho, e eu fico a olhar ao longe, até que ela desapareça, sozinha e descrente, vestida de flores.

(Banalizem o cansaço e a maldade, banam o ócio e a euforia, matem o rancor e a cobiça. Desconfiem do sol e da sombra, questionem o vento e as marés, discutam a terra e a vida. Mas não me minorem o amor. )

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

divórcio

Diz ela que o divórcio acontece no quarto. Esqueçamos as avessas amanhadas em anos a fio, crescentes nos dias de frio intenso e de chuva miudinha, molha tolos e molha parvos. Esqueçamos as desavenças nos filhos, nas vestes e nos sustentos, estes últimos sempre demais ou sempre de menos, dependia de quem dizia e de quem fazia. Esqueçamos a farteza da rezinguice crónica dividida em partes exactamente iguais, em dois corpos completamente distintos no resto, haja entendimentos em alguma coisa que seja. Esqueçamos os dias sem falar e as noites sem tocar com o coração, as datas perdidas e os sonhos desfeitos, as tenções inacabadas por uma desavença qualquer. Esqueçamos as mãos que não se deram com o peito, os beijos que não se uniram com vontade, as palavras que não se disseram e as que se atiraram em flecha apontadas aos olhos e em reacção. Esqueçamos as zangas duradouras e as omissões persistentes de um bom dia que é para dizer todos os dias e com o mesmo gesto, é a força do hábito que nos edifica enquanto gente, única e relacional. Nada disto é divórcio se o quarto for sempre o mesmo, insiste. Nada disto é separação se os corpos se encontrarem todos as noites à mesma hora, de longe, visíveis aos olhos e ao odor, eventualmente à audição, que com os anos os ruídos do corpo assanham ao limite da evidência. Divórcio é afastamento do corpo para fora do alcance dos sentidos práticos da vida. É deixar de ouvir e deixar de ver, deixar de escutar e deixar de cheirar. Tudo o resto que morre nos dias tem um qualquer nome que eu desconheço. Mas que pelos vistos, divórcio não é.   

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

fusões

A colateralidade cerca-nos a existência ao limite do razoável. Experimento-a todos os dias, e talvez por isso a encare no limite da racionalidade. O mundo afigura-se como um local osmótico onde somos, damos e recebemos. À casualidade, não há quem a explique. Já a fusão, por sua vez, faz-me todo o sentido. Também por isso não perco tempo quando penso e acautelo. Ganho. O crescente não nasce irreflectido, mas submerso num conjunto de gestos direccionados e confluentes.

(Ora, não dás um sorriso sem que eu te responda. Tal como eu não encosto a cabeça, sem que a tomes no teu colo.) 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

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O excesso de maldade é sempre um transbordo, do que adversamente se reuniu no corpo. 

(Há quem diga que não há pessoas más, há pessoas loucas. No seguimento conclui-se que o mal é uma espécie de desfasamento sem antídoto permanente. A intensidade desvanece quando a carga alivia, mas não morre. Morrer é de velhice, quando o corpo caduca e o espírito acompanha. Aturar os loucos de uma vida é o fado do mundo, um ciclo interminável, consequente. Sem apelo nem agravo.
O que sinto pela maldade? Pena e alguma tolerância. Adivinho-a um desconforto sem fim de amargura recalcada.) 

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

o simples é belo

( Place des Vosges. Fotografia do Paulo )

Os jardins são qualquer coisa de sossegado, dividem-se em caminhos de areia e passeios de pedra, e encontram-se neles pessoas deitadas em cada recanto devidamente ornamentado a cores de petalazinhas perfumadas. Há os que escondem gente que lê debaixo de um tempo quente, e os que envolvem namorados que caminham de braço dado com um chapeau que resguarda narizinhos delicados, tementes ao sol. Mais um pouco e a bengalita rodava, era o quanto bastava para fazer relembrar o cenário dos filmes do antigamente, assim se tapassem ligeiramente as donzelas que hoje apreciam um bom bronzeado sem excessos de pózinhos Guerlain. As pernas senhores, todos haveriam de apreciar as pernas. Cruzam-se em sombrinhas de arbustos pequeninos perto do chafariz, e baloiçam-se, demoradas, nos minutos da tarde que chega lampeira e curiosa, à espreita. Suas donas reviram-se, para um lado, para o outro, sempre devagar. Uniformizam a tonalidade em cadeirinhas de encosto reforçado e borrifam a pele com a miraculosa eau thermale, que vai compondo o corpinho magro e torneado que se deleita sob os olhos do sol e de todos os outros que possam passar perto: os curiosos, os invejosos, os desejosos, os meros contempladores. Eu observo tudo e todos. Olho demoradamente os pormenores do fotógrafo que centra a árvore centenária que trepa o monumento, e encosto a cabeça no braço atento ao meu rosto sossegado; espreito em segredo a mãe que embala um bebé que chora no colo fusional; miro o velhinho que passeia o passeio dos justos naturalmente cansados. No final do trajecto, os caminhos errantes das palavras soltas contrariam ligeiramente a singela contemplação mental, mas só um bocadinho: o requinte dos sentidos também mora na simplicidade.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

figos

Cheirei uma cesta de figos maduros. Estavam à distância, mais ou menos uns cem metros, e o malvado do aroma percorreu-me as estranhas que ainda desesperam zangadas na ânsia da degustação. Lembrei-me da árvore que vivia inclinada no monte escondidinho, à beira do rio. Eu, ladina, subia-a com  mãos, com pés e com espírito, e uma vez lá em cima estava no topo do mundo. O mundo não tem topos, hoje sei isso. O mundo tem locais, todos da mesma altura, e somos nós que nos elevamos quando vencemos. No cimo da figueira, no fundo do lago, no pico da serra, na serenidade do vale.  

domingo, 18 de agosto de 2013

Paris


(Fotografia do Paulo)

Há muitos anos rumei numa traquitana de quatro rodas ao lado da pequena prima e da grande avó. Levava por missão ser a co-piloto do tio, pobre de mim, que dormitava aos soluços acordados por travões de carro cansado, no qual sonhava com a Torre Eiffel e com a Fête des Loges, prometida. Voltas e reviravoltas e só recordo que morri de medo na cascata que descia em rompante por uma pedra gigante, nós de boca aberta, eu sempre tão pequenina. Desta feita é a cidade que me abre as portas da luz num tempo que me escorre pelas mãos muito mais do que as águas do Sena, que me guardam o amor para sempre. Há lendas que encerram verdades que queremos dizer ao mundo num grito nosso e o resto que fique muito sossegado. Pode escutar, pode calar, pode fugir ou pode passar, o que importa é o que gritamos e sabemos, não interessa verdadeiramente senão a quem sente, muito embora o mundo delas se alimente. A propósito,  há por cá uns noivos que casam eternamente, dia após dia, a deslumbrar a élégance da capital francesa, num chic style romantique, perfeito.
Ainda há pouco subi uma escadaria com quatrocentos e muitos e ultrapassei as gárgulas do tempo que relembram os vivos e os mortos de que a maldade existe até no mundo dos santos, nunca conseguiremos sossegar, nunca poderemos dormir, jamais deveremos esquecer.
Deixei-a um dia por Saint-Michel e só tenho de me redimir pela renitência, mas caramba, não é de ânimo leve que se abandona Paris. A abadia tolheu-me a teimosia que se esvaiu envergonhada, nada a fazer-lhe senão matá-la, perante tamanho assombro rodeado a águas e areias movediças capazes de engolir gente para os mais recônditos sítios guardados pelo arcanjo. Oh, mon Dieu, como eu aprecio un bon mystère.
Por ora segue-me a torre alumiada por uma lua do lado esquerdo, o local preciso, nunca deveremos esquecer a importância da exactidão, do pormenor, do detalhe. A vida é feita de espontaneidades mas também de rigores, nunca me convenceram do contrário. Nada é submetido à linearidade absoluta, quanto mais a fragilidade dos corpos que circulam ao acaso (?) nos dias escolhidos por uma divindade qualquer. A confluência é o que nos constrói na diferença: o saber que se é, o acaso que se aprecia, o sentir que se arraiga no corpo que segue sem direcção, totalmente sabedor do caminho que escolhe ( precisa?) por uns dedos estirados, abraçados ao coração. Na epítome da luz lêem-se e relêem-se umas entrelinhas minuciosas mais do que certas, direitinhas como os degraus que nos transportam a Sacré Coeur. Neles podemos ver os noivos, podemos espreitar-se a Torre, podemos até descê-los rumo ao muro onde a cidade se define em todas as línguas possíveis e imaginárias, apenas superadas por tudo o que a boca não consegue dizer, os dedos não podem escrever, o corpo não permite expulsar.
Por ora só queria mesmo saber como se pode não regressar, et c'est tout. Uma impossibilidade, eu sei, e talvez por isso irei levá-la comigo. Encontrará no meu corpo o lugar exacto onde deve de estar, ao lado da severa saudade, au pays des rêves.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

palmier coberto

Os anos passam-me pelo corpo com uma velocidade alucinante, pregas na cintura, celulite nas coxas, peles secas nos pés, cabelos brancos na cabeça, rugas no canto dos olhos que vêm ligeiramente pior de há uns anos a esta parte, palato cada vez mais guloso, numa inversa proporcionalidade a toda e qualquer lógica. Nesse campo concreto dos sentidos valem-me os ouvidos cada vez mais apurados e mais requintados, ouvem tudo e só mesmo o que lhes apetece, potencialidade esta não atingível por qualquer órgão do corpo, convenhamos. Um louvor publico lhes deixo, merecidíssimo. Ainda outro dia sentei-me numa pastelaria e não havia o pecado que eu tinha escolhido para aquela altura, um direito adquirido por gulodice refinada, posso lá eu com contrariedades destas no fim de um dia de trabalho. Uma pessoa quando escolhe, escolhe, deveria ter direitos. O pasteleiro simpático indicou-me uma outra delicia que me deixou a olhar para a montra demoradamente, de facto caberia em mim, nem que sobrasse, sobra sempre qualquer coisa em formato adiposo aqui ou ali, que o que não me falta são locais de expansão livre e de desgaste lento. Foi um regalo poucochinho, regado a café forte sem açúcar para atenuar o pó doce e branquinho que jorrava do folhado a cada dentada, mais ou menos satisfeita, ligeiramente sorridente, parcamente deliciada. Sai de lá quase regalada, mas vai daí que pouco depois, o maldito do desejo voltou a crescer, direccionado ao esgotado palmier coberto que me persegue o espírito desde o dia em que o escolhi. Ora, todos nós sabemos que as perseguições de espírito são qualquer coisa de potência igual às perseguições à séria, isto para não dizer superiores, passo a explicar: podem até começar devagarinho, frouxas e tímidas enroladas num recanto miserável, como que a dormir quase sossegadas. Tornam-se robustas com o tempo corrente, bastantes o suficiente para que o corpo todo as sintas e as viva em suspiritos constantes e impertinentes, um estorvo à tranquilidade, careço tanto de um sossego maior. No rigor da incapacidade do domínio cedemos sempre, e das duas uma, ou acalmamos ou desiludimos. São sempre estes os cúmulos de qualquer ânsia.

(Muitas vezes uso um truque, cedo de uma vez antes da vontade se tornar uma hecatombe. O palmier de hoje, que havia, não me enchia as medidas, foi só isso. Magro, definhado, quase sem doce de ovos entre o folhado e o açúcar, não se admite uma míngua assim. A boca estava-me num sabor estranhíssimo, entre a fome e a vontade, acabei por engolir um pastel de coco e morder a língua, que agora me sangra em fio. Não há penso que a segure, nem outro acepipe que a acalme. )

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

descansos


(Audrey Hepburn)

Agosto é do descanso, nota-se nas pessoas, nota-se nos jornais, nota-se nas ruas e nos dias de calor intenso, nota-se nos bichos deitados no quente do chão. Descansam as doenças, descansam os médicos, descansam as estradas e as passadeiras para peões, descansam as ideias que dormem até Setembro, quando a escola começa e o trabalho reage à morte do fastio. A blogoesfera na generalidade, também dorme. As ideias, fraquinhas, escorrem dos dedos molengas e saem numas linhas que ocupam um espaço virtual aborrecido e enfadonho, falo por mim. Raramente releio os meus textos, mas ultimamente, e se o fizer, enfastio-me. Há honrosos blogues excepcionais que mantém o vigor, verdadeiras lufadas de ar fresco no meio de um atlântico mortiço no pasmo da mornidão, atestamentos mais do que suficientes para que saibamos que o calor também pode servir para um ou outro apontamento de interesse, ainda que possa ser domingueiro, veraneante, parodiante. No outro lado, naquele onde se escreve sem vontade e sem ter de quê, nascem uns conjuntinhos estranhos e desenxabidos condecorados a bocejos persistentes, sobreviventes aos dias sem o adorno das pérolas e dos sapatos altos, do risco preto ou do bâton encarnado, totalmente imperdoáveis, impensáveis, desnecessários. Escrever sem vontade e sem ter de quê deveria ser proibido. Já que a mão que nos modera, em Agosto dorme também.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

procura activa de emprego,


ou de como a graça, pode não ter graça nenhuma...

(Deixado há pouco na caixa do correio, ao lado da campainha que daria acesso directo a uma entrada no edifício e a um atendimento com cara, nomes e preenchimento de uma ficha de inscrição.)

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

silêncios

Sei exactamente em que data se iniciou a clausura e conheço-lhe as razões como à palma da minha mão, que apesar de vincada a sulcos profundíssimos é mais minha do que o próprio chão. Sei onde se inicia cada traço, onde morre cada gesto, onde vive cada palavra e onde mora cada lágrima. Sei-lhe as intensidades, as fraquezas, as espinhas e os predicados, leio-lhe os sorrisos e as felicidades, encontro-lhe os segredos e tolero-lhe as vaidades. As razões, assevero-vos, são tão basilares à minha existência como o ar que respiro ao segundo, sem quebra ou interrupção. Pouco se abrange deste excesso, talhado em trajectos antagónicos que expulso pela boca por prenúncio, quiçá presunção. Eu é que sei. É tudo tão claro como os silêncios das minhas mãos.  

domingo, 4 de agosto de 2013

nós

somos tantos que até assusta.

banda sonora


...

Os sítios onde as mulheres tentam ficar mais bonitas assustam quaisquer olhos. Saio sempre de lá enfastiada, farta, cansada de cabelos armados em molas coloridas, pincéis com tinta, frasquinhos de vernizes berrantes, pés calejados com a mania de que são gente, panelinhas de cera encardidas, revistas cor de rosa, louras platinadas, chinelos de enfiar no dedo, madeixas de gosto duvidoso, pinças, frascos que fazem milagres e vidas dos outros. Essas últimas vomito-as logo à porta de saída. O resto destilo com jeitinho e em pouco tempo passa. 

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