terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Hoje eram estes...



(Porque há dias em que nos apetece tocar no céu)

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Há muitos anos que a minha terra tem uma feira tradicional de comes e bebes. Há poucos anos, mas há alguns, os suficientes para percebermos que não funciona, criou-se uma tenda electrónica aliada ao certame, onde alguns Djs passam música num clima rodeado de vinho tinto vendido a copo de três. Também existe a sangria, feita em alguidares de barro escondidos à asae, ou os licores doces, ginginhas e outros que tais. A bandinha da alegria chegava em tempos para que a noite se acabasse sem grandes desassossegos, mas a tradição já não chega. É preciso inundar a tenda de confusões de pessoas novas e velhas que se abanam ao som electrónico, enquanto as barraquinhas dos bares vendem imperiais em copos de plástico, e fabricam com velocidade alucinante o vómito que se espalha no chão. Já houve brigas, facadas, fechos à pressão. Já se disse que acabou, até porque não vem aliada à tradição, mas volta, volta sempre. Cansei-me da noite, também pode ter sido isso. Não da noite no geral mas da noite que encontro perto, carregada de pretensiosismo, interesse, distracção rápida e barata, em forma de shots verdes e cor de rosa, cores estranhas demais para mim. Gosto do chouriço, da morcela de arroz, da chanfana. Gosto da sandes de leitão, das tortas de Azeitão, das barrigas de freira. Gosta dos Indianos que trazem vestidos coloridos que ponho no verão e que me brindam sempre com um sorriso. Gosto da feira em si, não do redor. O redor está estranho, pestilento. Cheira a azedo e a desperdícios de corpo e de alma.

Curtas

As minhas férias estão a entrar devagarinho, em forma de ferrinhos pequenos com elásticos coloridos, dentro da boca do meu filho.
No ano passado entraram em forma de motor para dento do meu carro.
E no próximo ano vamos então à India. Isto se nenhum outro artefacto se insurgir com força a carecer de aquisição, coisa que convenhamos, é de possibilidade considerável.
Pronto, ali na costa próxima também não se está mal. Tem perceves e outros crustáceos agarrados às rochas, carapau seco e mulheres de bigode. Nunca lá vi nenhum rato.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Destinos

Existem pessoas que nascem com um determinado fim. Não quero com isto dizer que a nossa existência é limitada a uma genética quanto à qual nada poderemos fazer, e que devido a isso temos uma acção limitada de evolução, circunscrita ao que o nosso corpo consegue por aptidão, e a nada mais. Ainda assim, e mesmo relegando esta teoria deveras limitativa para a nossa existência, não poderemos refutá-la por completo, que existem características que nascem connosco e que nos toldam os passos, prendem-nos, seguram-nos ali, ou pelo contrário impulsionam-nos, podendo até levar-nos longe. E isto aplica-se em diversos âmbitos, sendo que não poderemos negar, ainda que com o devido respeito e limite, que enquanto seres individuais temos algumas pré destinações dadas à nascença, por factores diversos, que poderemos ou não vir a tentar contrariar, umas vezes frutífera, outras infrutiferamente. A Meryl Steep, por exemplo, nasceu para representar, sentada ao lado de outros grandes nomes, como Jack Nicholson ou Marlon Brando. Eles poderiam obviamente ter feito outra coisa da vida, a sua genética tê-lo-ia por certo permitido, mas o mundo da sétima arte seria mais pobre. Tal como seria mais pobre o mundo do futebol sem um Diego Maradona, ou o da escrita sem um José Saramago, ou ainda o mundo da música clássica sem um Beethoven. Fico feliz de haver quem descubra a sua essência desta forma pura e nos presenteie com ela, para que possamos ter contacto com o que existe de melhor em cada arte. Estou-lhes eternamente agradecida, e a outros, claro, muitos outros.

( Freud, quase esquecia Freud. Nunca a psicologia seria a mesma sem Freud. Talvez até eu fosse outra, mais limitada, menos abrangente. Muito menos interna)

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Quase

Existem coisas que existem apenas ali. Ali não é um ali fixo, é um ali que pode ser imensos lados dependendo do que seja. São lados onde determinadas coisas acontecem como em mais local algum podem acontecer. Ou porque soam diferente, ou porque sabem diferente, ou porque cheiram outro cheiro, particular, único. Ainda que por vezes consigamos encontrar substituições quase à altura, estas não deixam porém de ter esta particularidade inerente, que trata a palavra quase. Não simpatizo muito com ela, sinto-a sempre como um aquém, seja do que for. Estava quase lá, era quase isto, sabia quase assim, estava quase quase a resultar. Embirro particularmente com esta do quase quase, em modo bisado apenas para reforçar um quase, que mais não é do que um quase igual aos outros, ou seja, uma inferioridade simples e pura, mas que gostamos de redobrar, quando sentimos que de facto estávamos mesmo muito perto do objectivo. Tudo isto para dizer que hoje comi pipocas com mel. E não foram quase, foram mesmo. No sítio, com o cheiro e o sabor de sempre, o pano de fundo e a areia. E estava feliz. O quase que eventualmente me faltava era de facto um quase pequeno. Um quase quase, por assim dizer.

( Bem vistas as coisas talvez até nem me faltasse nada. O quase também poderá ser aquilo que nos falta e que nos irá faltar toda a vida, porque nos falta sempre qualquer coisa. Somos permanentemente insatisfeitos, eu pelo menos sou. Ou seja quando o quase me abandonar, é possível que eu já não saiba viver)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Rigores

Se existe coisa no mundo pela qual me apaixonei há muito para não mais me desiludir, foi a nossa individualidade. Edificada muito devagarinho, em dias, minutos, instantes seguidinhos que nos constroem, e nos tornam seres únicos de personalidades singulares. E gosto desta realidade não só pela sua extraordinária beleza, mas também porque me sossega, e eu, como qualquer ser humano, necessito de sossego para existir tranquila. Desde o dia em que encarei essa essência deixei de me preocupar em demasia com tempos, épocas ou alturas em que determinada coisa deveria acontecer. Posso deixar-vos a exemplo o biberão que o meu filho mamou até tarde, muito tarde até, e que parecia interferir com o bem estar de alguma envolta próxima que se apercebia do assunto. Era tarde, muito tarde até. Não era sensato.
E foi então nesse dia onde a minha preocupação acalmou, que a minha vida pareceu encaixar numa cadeira de baloiço daquelas que existiam muito antigamente, situadas no meio de um jardim cheio de flores, floridas também elas. Nessa cadeira balanço ao sabor de mim ou de quem me está perto, solta para voar alto, presa o suficiente para não cair, mas apenas e só para não cair. E balanço de noite ou de dia, depressa ou devagar, por dentro ou por fora, sem critério definido a dedo ou a livro, e sem rigor matemático. Nunca me apeteceu matematizar a minha vida. Aquilo do um mais um igual a dois, nem sempre me faz muito sentido. Ou melhor, cada vez me faz menos sentido. Tal como não me faz sentido a rigidez de andar ao um, falar aos dois, socializar aos quatro, ler e contar aos seis, namorar aos quinze, casar aos vinte, ter filhos aos trinta, ficar velho a partir dos sessenta, morrer aos noventa, entre outras. Não tentem, por favor. Com esforço que façam, ninguém no mundo me vai conseguir convencer de que a vida é mais ou menos isto.

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Fátima tem nome de santa. Nada condizente com a sua postura um tanto ou quanto exagerada, apelativa, roliça. Fala de sexo como quem fala de comida, e a verdade é que não está muito enganada, é comida, não para o corpo, mas para a alma. Alimenta-o, equilibra-o, faz-lhe falta. Tenho o sexo como uma das grandezas do mundo, especialmente quando vivenciado com amor. Não gosto por isso de o ver banalizado, discutido em conversas de café e partilhado em mesas de reuniões femininas, como quem fala de uma tarde de atum que se comeu ao jantar. Em cima da mesa da cozinha.

(Sim, sou um bocadinho enojada nestas coisas. Fico meio tremelica e sem saber o que dizer, diante destas mulheres desinibidas que partilham a vida da cama umas com as outras. Umas felizardas, com imenso para contar.)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Indecências

De uma forma ou de outra continuamos a julgar que podemos pôr as mãos nas opções sexuais dos outros. Que resilientes, se adaptam como podem. Adaptam-se e sobrevivem, fazem o que entendem, à margem de uma sociedade que resolve condenar pormenores, e deixar o cerne à disposição da desgraça. É tipicamente nosso. Defender a moral e os bons costumes, enquanto por detrás da sama correm parasitas, bolores e outros fungos. Deveriam estes ser postos a céu aberto, para que os púdicos vissem com os seus próprios olhos as realidades que se abafam em nome da decência. Nunca percebi muito bem este conceito da decência. Dúbio, de índole vã. Para mim, por exemplo, indecente é a mesquinhez, a inveja, a ganância. O amor, seja entre quem for, nunca é indecente. É amor, logo é uma grandeza, não uma indecência.

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Já me esforcei, continuo a esforçar-me, e até hoje ainda não consegui entender qual a real necessidade do engano. Nem falo do engano ao outro, coisa mais do que possível de acontecer, quando primeiramente nos enganamos a nós próprios. Falo nesse mesmo, o que se faz ao próprio. Um conjunto de artimanhas mais ou menos rebuscadas que se utilizam amiúde e de forma doseada, pelas pessoas que se querem convencer de que tem de ser assim mesmo, quando a realidade, a dura e amarga realidade, é que é assim porque não têm coragem para que seja de outra forma. Ou porque é mais fácil, ou mais cómodo. Mas não porque tem de ser. O que tem de ser é outra coisa. A vida, a doença, as necessidades básicas, a morte. O resto, quase tudo o resto, é arbítrio ou resignação.

Vontades

A resistência é uma coisa estranha. Mune-se de um tamanho infinito quando precisa, para depois, e após descanso, quase se sumir dos corpos. Já conheci casos de gente que resiste até a um determinado objectivo, e que desfalece, em forças, vontades ou vidas, mal o consegue realizar. Faz-me pensar na nossa potência interna, e no quanto ela pesa nos nossos dias. O nosso querer, o nosso arbítrio. Não sendo detentora de poder contra determinadas grandezas que possam emergir, é porém forte e importante, nada secundária. Gostaria muito de encontrar uma forma de fazer o mundo acreditar nesta verdade. Mas parece-me difícil, pois cada vez mais me cerco de gente que julga que o mundo gira fora, ao invés de girar dentro. Umas falsas crenças, que deixam pessoas à mercê dos outros e das suas vontades e decisões, ao invés de utilizar toda a capacidade adaptativa de que são dotadas. O caso chega ao extremo quando encontro, tal como hoje, uma pessoa que espera um milagre de uma qualquer mulher que reza para que encontre um emprego, enquanto ela se encontra sentada num banco do jardim. Crer na sociedade já não é bonito. Crer em poderes extraordinários, que pelas mãos de algum habilidoso se tornarão em realidades concretas, pode chegar a ser perigoso. No fundo, e o que mais me intriga, é a capacidade de se deixarem ir, e de se anularem ao ponto de nada fazerem, enquanto outros, sejam pessoas, sejam santos, o fingem fazer.

( Agora a sério, Dona Justa rezou por mim muito tempo. Também eu, alienada, julguei poder crer nas suas preces, mas até hoje continuo ao abandono. Há quem diga que é do mau feitio. Eu estou convencida de que foi a reza que não resultou.)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

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Fez cento e um e ninguém apareceu. Ocupações, compreendo. Eu compreendo. Ele, provavelmente, não.

( Está lúcido, cantou connosco. E soprou nas três velas. Nas três velas, meu Deus.)

Vinculação

O DN de hoje toca-me numa ferida que nunca sarei. Tenho mais destas, não muitas, mas as suficientes para que determinadas partes de mim sangrem de vez em quando. E não aprecio propriamente as vozes que proferem, desconhecedoras do que falam, só pode, que com o tempo se banalizam determinadas situações, como se possível fosse, quem lida com o sofrimento alheio, se habituar a ele como se habitua a picar um ponto, a seriar papéis ou a desenhar casas de habitação. A diferença está apenas em que o encaramos, ponto final. Somos talvez corajosos, talvez realistas, mas nunca desligados.
Pegava-lhes já tarde. Doze, treze, por aí, quando a vida já lhes tinha dado voltas suficientes para que se sentissem sacudidos por todos, excluídos de muitos locais, até do seio familiar. Por motivos diversos, que eram muitos. O estudo publicado hoje, começa mais cedo. Nos primeiros meses de vida, e nas constantes perturbações de vinculação que vão emergir. Talvez seja até um termo pouco abordado, a não ser por nós e por mais uma ou outra classe que lhe reconhece a importância. Está errado. A vinculação adequada, tal como afirmava Bolby, na sua extraordinária teoria do apego, é um dos primeiros sustentáculos de uma boa saúde mental, que se inicia no berço e que evolui ao longo do crescimento, num conjunto de vínculos que construímos com o tempo. E neste seguimento poderemos pensar, que vínculos construirão crianças, e posteriormente jovens, que se encontram num permanente processo de ganho e de perca? E que segurança sentirão eles num mundo que lhes dá e lhes tira com a velocidade da luz? Como crescerá saudável um bebé, sem uma figura disponível e permanente de referência? Como receberá ele amor, de alguém que hoje está e amanhã já não está, e a quem ele não pertence, por disponibilidade que esse alguém até possa ter?
Não questiono boas vontades, mas também não vivo de ilusões. A institucionalização deveria ser sempre um último recurso, e investida, quando realmente necessária, até ao infinito, por forma a garantir a quem vem ao mundo por azar, um crescimento minimamente favorável.

( Samuel tinha treze. Uma mãe que não via há meses e que chamada por mim, estranhamente, compareceu. Entrou e saiu sem olhar para o filho. É só um exemplo, mas tenho muitos mais. E não, nunca me consegui habituar a isto.)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Pentaminós



Tenho ali um jogo de pentaminós que me está a deixar numa ligeira aflição. Diz algures nas instruções que existem mais de mil maneiras de os encaixar, por forma a caberem dentro de um quadrado. Com excepção das da cábula, ainda não dei com nenhuma. E não, não é de hoje. É de ontem. De anteontem, vá.

( Isto não são prognósticos, muito menos diagnósticos. São meros desabafos.)

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"Os poetas e os romancistas são aliados preciosos, e o seu testemunho merece a mais alta consideração, porque eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas que a nossa sabedoria escolar nem sequer sonha ainda. São, no conhecimento da alma, nossos mestres, que somos homens vulgares, pois bebem de fontes que não se tornaram ainda acessíveis à ciência."

Sigmund Freud

Há quem o julgue rebuscado. Eu própria, aquando do ingresso profundo nas suas teorias da sexualidade, o considerei um tanto ou quanto exagerado. Com o tempo, encontrei sentido em quase tudo o que defende. Uma visão diferente da banal, mas que não deixa por isso de ser verdadeira. Enfaixa-nos num terreno ao qual não gostamos de pertencer, nos meandros do inconsciente, das pulsões, das compulsões. Mas pertencemos, e pertencemos muito. Ando de mãos dadas com ele outra vez. Agora que o tempo acalmou, e a mente já me pede ânimo.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Mãos e prioridades

É dona de uma voz áspera, que arranha o próprio ar quando lhe sai da boca, vinda de umas cordas vocais histeriónicas, agudas, finas. Não é fácil arrancar-lhe de dentro de corpo sons mais amenos, mais doces, menos ofensivos. Dizem que foi do crescimento severo, da educação, mas eu não creio nestas teorias a cem por cento, creio apenas em certa parte, que de resto, e na evolução, múltiplos factores se entrelaçam intimamente, fazendo com que exista uma clara impossibilidade em isolar um deles, e em torná-lo responsável por certos reveses de feitio. Quem a cerca diz que não lhe conhece bons modos, sendo que apenas profere ditos amargos e acesos, destinados a contaminar a envolta com um veneno miudinho mas muito poderoso, que lhe escorre não só pela boca mas por todo o corpo, e de qualquer orifício que apanhe, tal o aperto. Posso jurar por exemplo que já lhe vi sair fumo de dentro das orelhas, um determinado dia em que se enfureceu mais a preceito, no qual ganhei sério medo que rebentasse, que por certo me atingiria com força bem como a toda a envolta. E o que lhe saltaria de dentro deveria ser suficiente para matar uns quinze ou vinte, de porte considerável, quanto mais a mim, uma pobre alma pequena e mirrada, com ar um tanto ou quanto cadavérico, conseguido com um punhado de anos em cima, e muito fastio desde a nascença. Dever-me-ia ter protegido, e desde pequena ter comido a bom comer, por forma a ganhar alguma resistência física aos males do mundo, pujança, arcaboiço, por assim dizer, coisa que de facto não ocorreu, motivo pelo qual treino a mente ao infinito, embora a pobre não aguente tamanhas malvadezas, é limitada neste campo.
Outro dia encontrei-a a esfregar as mãos com um creme gorduroso, fiquei intrigada. Por que raio haveria ela de amaciar o corpo, onde ninguém toca, ninguém sente, enquanto pela boca só lhe saem impropérios rijos e entufados, ditos austeros e poderosos, em total contraste com o corpo que cuida e amacia. Questionei-a, receosa, não fosse a malvada desconfiar da minha pergunta e arremessar-me com o frasco na testa, arremesso esse mais do que suficiente para me deixar em muito mau estado. Sorriu-me, quase que ensandeci. Resolveu explicar-me a preceito que uma mulher tem de ser macia, seja nova ou seja velha, isenta de impurezas no corpo, por forma a que o mesmo permaneça agradável ao toque, mesmo numa pele gasta pelo tempo.
Perante o meu ar intrigado pela incoerência encontrada, remata, aposto que as suas mãos não são tão macias como as minhas. Ela tem razão, eu também aposto que não.

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Ainda bem que existem grandezas no mundo fora do nosso alcance. Que não movemos nem mudamos, como o clima por exemplo. Na adversidade, treinam-se as estratégias de adaptação, uma mais valia preciosa da qual somos portadores. De outra forma e a podermos mudar tudo, tal e qual mudamos leis, acordos, vontades ou ambições, o mundo já teria entrado num colapso inevitável. E nós, por acréscimo, também. Restam-nos portanto as miudezas, que nos competem como que numa forma de consolo, e nas quais depositamos os nossos interesses e projecções. Egoístas, naturalmente.

Medo

Já esteve quase a entregar-se à razão. A deixar-se estar encarquilhada e rija nos seus braços fortes, que a sustêm num encosto certo, sempre igual, infalível. Aconteceu já por algumas vezes na sua existência as emoções encontrarem-se por demais dúbias, capazes de a enlevar aos píncaros do mundo num minuto, para que no minuto seguinte a larguem no chão, de corpo inteiro, inerte, quase morto. Nessas alturas em que se levanta a custo, quando nela descobre forças que nem sabia existirem, racionaliza o mundo que a rodeia, enfia-o dentro de uma fórmula matemática organizada, entre quadrados, arestas, linhas rectas, tudo na maior precisão. Sente-se segura nesse reino, onde manda e desmanda ao sabor da sua lucidez, uma rocha forte, uma robustez, consistente o suficiente para que não caia com facilidade nos terrenos que pisa todos os dias. Sacode as indecisões, as incertezas, as fragilidades, as possibilidades que não sabe se vãs se concretas, e deixa-se seguir assim, numa linha estanque, mas muito monótona. Não somos assim, acaba por concluir, quando o cansaço a assalta com força e a sua alma pede aconchego e emoção. Não conseguiremos nunca controlar o mundo ao minuto, sem falhas, sem quebras, sem entregas e sem pertenças. Quem ousou fabricar-nos, dotou-nos de um cariz relacional e social, e por muito que a individualização extrema por vezes nos pareça a solução para os problemas que nos cercam, por muito que a rigidez de atitude nos salvaguarde de quedas traiçoeiras, passado o tempo da cura, voltamos lá. É inevitável, não sabemos viver ausentes, e a fazermos tal entrega, a deixarmo-nos submersos por esta redoma que nos parece guardar, mais não fariamos do que aguçar a nossa fragilidade, atiçar as nossas lacunas, transformar a nossa existência num isolamento, crentes na certeza deste mundo tão incerto.
Puro desfasamento e descompasso. Uma falsa segurança, um medo de viver que nos impede o ajustamento e nos entrega à ilusão da convicção.

( Eu, pelo contrário e também desfasada, tenho medo de pouca coisa. O medo faz parte da vida, da morte, da existência.)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

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O neurótico histérico talvez seja a estrutura de personalidade que mais me irrita. Sabem perfeitamente que o outro tem sentires diferentes, pode ser seduzido, e por isso tentam manipulá-lo, controlando a sua atenção. Por norma pavoneiam-se, mostram-se, abanam-se, tal e qual como o animal na iminência da conquista. Alguns conseguem controlar os espasmos de exagero, e travam quase a tempo. São uns queridos, poupam-me imenso. Outros entram numa espiral de auto valorização patética de tão exagerada, e não perdem uma de se vangloriarem de uma forma estudada e pensada para agradar. Com estes por vezes sou tramada. Dá-me um gozo imenso deixá-los ir, só para depois os tramar numa curva apertadinha, auto construída, e muito, muito perigosa.

(Só para os aflitos, que julguem que eu tramo quem de mim se socorre, sosseguem. Isto é na vida, não no consultório.)

Carnaval

Existem coisas que são para as crianças. Muito embora por vezes as tomemos de assalto e queiramos apoderar-nos delas, vestindo uns fatos de freira ou enfermeira sexy, normalmente uma projecção recalcada que se destila em duas noites do ano. Nada tenho contra, eu que até gosto da data e da diversão. Até porque, e alargando o ponto de vista, a libertação interna é sempre uma coisa que faz falta ao povo, demasiado calcado pela envolta e com medo de libertar o que lhe vai dentro, sendo que aproveita qualquer hipótese de fazê-lo longe dos olhos da censura, com um à vontade que liberta a alma. É Carnaval, ninguém leva a mal, e por isso pode-se dançar a moda do Quim Barreiros com mãos peregrinas, um calor humano que só visto, pura diversão, enquanto se envergam trajes escolhidos a preceito para deixar transparecer determinadas partes do corpo normalmente mais recatadas, e que nestes dias podem ser vistas sem qualquer reserva ou pudor, enquanto se lançam serpentinas e bolinhas coloridas. Aqui na minha cidade costumava dar-se primazia à criançada, que desfila trajada com maior ou menor rigor, dependendo da escola a que pertencem, sendo que sempre se destrinçou muito bem o público do privado, com um aprimorado investimento deste último, que aproveita a data para publicitar o serviço, através de criancinhas vestidas de moranguitos vermelhos, marinheiros branquinhos e azuis, ou capuchinhos vermelhos com cestinha, caçador e lobo mau. Tudo isto em absoluto contraste com uns disfarces menos sofisticados, deixados muitas das vezes ao critério de cada casa, ou aproveitando materiais simples e de uso comum, para se brincar sem gastar muito dinheiro. Pós desfile, costumava-se presentear os garotos com uma qualquer banda ou grupo juvenil, coisa que este ano não ocorreu por motivos de crise, justificação aceite por todos, claro. Porém, e segundo as línguas da terra, que os meus olhos não viram tal coisa e ainda bem, gastou-se a sobra conseguida na tarde, para se brindar os foliões nocturnos com um senhor estranho, de nome José Castelo Branco. Diz quem viu que o senhor é alto e muito semelhante a uma figura feminina, de bochechas repuxadas, e cabelo liso, muito arranjado. Fez vibrar o povo, claro, cansado da crise, do desemprego, das contas para pagar e da vida de todos os dias. É engraçado este Carnaval adulto, que deveria ser apenas uma manifestação de alegria e boa disposição, e que reflecte, num tão curto espaço de tempo, tantos podres inerentes à sociedade, desde o oportunismo, ao mediatismo, passando directamente por outros despojos sociais, emergidos em jeito de diversão. Não fosse esta inversão de interesses, que relega o que verdadeiramente importa, e o caso nem merecia a minha atenção, passava-me ao lado, não me debruçava sobre ele. Assim, e com crianças à parte, enoja-me, e deixa-me ainda mais descrente da mísera sociedade onde me encontro.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Outro

Todas as etapas têm um inicio e um fim, a vida está cravejada delas, sendo até ela própria uma etapa. Faz parte da nossa inerência este sentido, este caminho, os percursos, os objectivos. Ansiamos por norma o culminar de algumas quando nos encontramos no caminho, apressamo-nos, queremos chegar ao fim, seja por algum desgaste sentido, seja pela vontade de experimentar a chegada de uma nova fase, uma nova vida, um novo percurso. Lembro-me sempre de uma das minhas maiores ânsias, e que tratou a minha adolescência, sempre expectante do que seria o passo seguinte, onde a vida me pertenceria por inteiro e o meu arbítrio ganharia forma decente. Nem comento esta ilusão, não me apetece, desconforta-me. Hoje, volvidos muitos, aprendi numa aprendizagem ainda em progresso, a apreciar com outro sabor os caminhos. A ver-lhe as frestas e as luzes, as particularidades, os contornos, senti-los de uma forma mais intensa. Gosto de intensidades, cada vez mais, e sinto isso no decorrer dos meus dias. A vida que se vive só por viver, parece não fazer-me sentido, careço de entrega, de vontade, de desfrute e de apreciação. Aquela ânsia apressada do objectivo, com a desilusão em alguns deles, fez-me crer que os dias e as tarefas deverão valer por si mesmas, ser aproveitadas ao minuto, e naquele exacto instante em que se dão, sem preocupação excessiva pelo tempo seguinte. Se a abordagem for outra, se nos encontrarmos no permanente encalço do que ambicionamos sem vivermos em pleno os caminhos, mais não conseguiremos do que um sentimento de corrida constante, com a inerente consequência da falha, que tantas vezes irá surgir. Isso faz então com que não tenha pressa. Com que tenha calma, e acima de tudo disponibilidade para sentir. A mim, ao tempo, às dádivas, ao outro. Sentir o outro até talvez seja o maior luxo que consegui com o tempo. Cresço com ele, absorvo a sua vida, o seu cheiro, o seu ser e o seu saber, que completa o meu com uma mestria quase perfeita.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Samba

Ontem dissertei qualquer coisa, ao menos não engasguei.
Hoje aturei uns doze mais uns irmãos mais pequenos que quiseram ficar na festa. O mais novo, o Lucas, tinha três e uma desenvoltura de muitos mais. Mas quase cabia na minha mão, uma coisa muito estranha, estou desabituada de crianças tão pequenas. São frágeis, rápidas e esguias, fogem-me dos dedos sem eu dar por isso. Comi mousse de chocolate instantânea, uma perdição desde sempre, em pé de igualdade com os boca doce de caramelo. Deram-lhe um peixe que baptizamos de Óscar. Já tive mais peixes com o nome de Óscar, uma espécie de tradição familiar. Está na mesa da sala e nada desenvolto no meio de umas bolinhas coloridas. Não pára e julgo que estou a enlouquecer, enquanto em conjunto oiço o corso carnavalesco, lá fora, muito animado. Antes que tal maleita me aconteça, é melhor sair para sambar. Temos ambos queda para isso.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Silêncios

Às vezes faz-se silêncio. Sou livre de me silenciar ou ausentar, é um direito que me assiste.
Nada é tão amplo como o silêncio, onde tudo cabe e tudo se pode excluir. Poderemos projectar-nos nele, e deixar que o nosso corpo construa o que pretende, quando, mísero, ousa interpretá-lo. Não simpatizo que tentem perceber o meus silêncios ou as minhas ausências, a não ser, obviamente, quando se encontra implícita essa tentativa da minha parte, em situações particulares e específicas. Os meus silêncios podem chegar a ser opacos, e logo passíveis de se tornarem enganosos, ainda que não seja essa a sua função. Podem induzir em erro quem me tenta escutar com os olhos, e que julga possuir mestria para tal afoite. O silêncio faz parte de mim, organiza-me, arruma-me, suporta-me. Às vezes guarda-me num colo discreto.

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Hoje é o dia em que vou saber se presto para dissertar. Não que o não tenha já feito, em outras épocas, em que o empreendimento não ia muito além do objectivo e do orgulho. Hoje estou toda metida lá dentro, e quando assim é a entrega é feita de outra forma, mais suave, mas muito mais intensa. Existem muitas coisas que já comprovei com o tempo. Que presto para cozinhar, para ouvir. Presto para ler e para passear. Presto para estar ao relento e para ver o mar. Por outro lado, não presto para fingir, para comer, embora antagónico, para subir a árvores, magoo-me sempre. Não presto para viver sempre igual, nem para ser demasiado séria. Faz-me mal, conspurca-me a alma, e deixa-me muito vazia. Não presto ainda para viver saudades, não gosto quando as coisas me fazem muita falta. Dissertar, assim, de forma séria, não sei ainda, vamos ver. O meu filho ensinou-me a fazer uns Power Points muito janotas. Vão por certo ajudar-me, defronte à plateia que me estiver a avaliar. A propósito, também não simpatizo muito com avaliações. Numerarem o que eu digo, como o faço, e porquê. Ora agora isso vale X. Não gosto, não posso gostar. Faço porque eu quero e como eu quero, e isso deveria chegar. No meu mundo perfeito chegaria. Cá não chega porque a competição diz-nos que temos de ser melhores, a fim de podermos chegar a algum lado. Acho que é por isso que continuo no caminho, sem chegar a lado nenhum.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Sérgio

Veste uma camisa listada, um casaco bordeaux e uma calça mais ou menos do mesmo tom. Usa uns óculos pretos de massa grossa, que poderiam ser para o estilo, mas não são. Nota-se muito que não são. Até aqui tudo certo. Posso até parecer critica nos devaneios que por cá deixo, vou largando uns apartes, quando mais nada me ocorre e me apetecer tecer alguma consideração sobre qualquer coisa, que a não ser séria, pode ser moda, mas nada mais do que isso. É quando fala que me entorpece as ideias. Já encontrei gente nova com setenta ou oitenta de BI, gente curva mas engrandecida, munida de uma liberdade sem tamanho e uma capacidade de inspirar e expirar a vida tal e qual ela é. Não são muitos, que o crescimentos e a evolução podem tornar as pessoas chatas e macambúzias, com os azares, as agruras e os azedumes próprios da vida, pelo que só os que são compostos por matéria específica, adaptável e maleável, conseguem passar pelo tempo e manter a jovialidade e a alegria, enquanto crescem em responsabilidade e em substância. Mas agora estes inversos, de gente de vinte com sentir e pensar de gente de sessenta ou setenta, é que de facto não encontro muitas vezes. E fico arrepiada, enfartada, não gosto de me deparar com estas realidades de pessoas que crescem à velocidade da luz, e que sem passar pela irreverência e pelos sonhos dos vinte, saltam directos para a faixa da resignação. E pelo decorrer do discurso percebe-se que a postura não calha assim devido a este ou àquele tema que em específico pode fazer doer, mas estende-se a toda uma vida, a toda uma envolvência, a sonhos pouco sonhados, a objectivos limitados, a prisões construídas dentro de um corpo que o prendem mais do que uma jaula a sério. Fiquei aturdida, quase assustada. Senti-me na presença de um ser estranho, retirado de um livro velho e amarelado, munido de pasta castanha e rigor militar. Não gosto de rigores excessivos. Não simpatizo com militares, salvando as devidas, por inerências familiares que merecem todo o meu respeito. Não que tenha medo a estas gentes ornamentadas a severidade, não é isso. Sou eu o problema, que me sinto de imediato impotente para dar de mim, pois nunca serei recebida. A entrada está fechada, blindada, guardada no casulo da perfeição conseguida, e dos dias que correm iguais, sem libertações manifestas ou acessos de excesso. É o que julga. Uma impossibilidade de entendimento para um ser livre como eu. Nunca conseguiria viver sem excessos e libertações soltas. Nunca os conseguiria prender no meu corpo. Ele também não consegue, ninguém o consegue. Mas se não fosse conhecedora desta limitação humana, quase juraria que sim.

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Entre as minhas amigas de secundário, de há uns anos portanto, encontro tipos definidos, salvando uma ou outra excepção que possa surgir, evidentemente. As que se mantiveram mais ou menos iguais. As que por obra de qualquer acaso adormeceram para não mais terem acordado. E por último as que adormeceram, e que nas intermitências voltaram ao mundo, que o tempo já lhes chegou para tal regresso efectuarem. Hoje são essas as mais magras, as mais aprumadas, as mais cuidadosas consigo, mas não obstante tudo isto, são contudo as mais pirosas. Este culto tardio do corpo surge muitas vezes indexado à falta de gosto, que poderá nunca ter sido muito, é bem certo, mas que quando emergido assim, por necessidade e nos pré quarenta, nasce envolto em penugens, brilhos e unhas coloridas, entre outros compostos e parafernálias. Uma maravilha, que só vista.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

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Existem dias intensos, em que o nosso corpo se perde na emoção da existência e encolhe, ressequido, sem saber como reestabelecer. São dias em que o que de bom nos acontece se equipara, e em termos de intensidade e consequência, ao de menos bom, sendo o efeito manifesto exactamente igual. E nesses dias, em que o nosso corpo resolve trair-nos, não por maldade, mas talvez por fraqueza, um beijo ou um afago podem ser iguais a um soco, que quebram-nos com uma força forte, e ele cede. Não é a mesmo coisa, ouso dizer. Cá dentro não existem misturas e destrinça-se tudo o que houver para destrinçar. São as reacções que nos atraiçoam, se deixam emergir, e esbarram exactamente ao lado do que queremos deitar cá para fora. Percebo-as, mas não perdoo estas traições do meu ser. Deixam-me inerte, prostrada, totalmente incapacitada para tomar decisões capazes, tal a dimensão da rendição. Já há um tempo que estas entregas totais me confundem. Fujo delas sempre que posso. Mesmo às das mãos da minha alma.

Dias

Hoje era o dia em que eu inventava um pacote de açúcar Nicola e escrevia, um dia vamos contar as casinhas brancas de Mikonos. Hoje é o dia.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Simplicidades

- Mãe o que é malvada sorte? Não percebo. Se é sorte, não é malvada...

(Sim eu sei que a definição vai mais longe, mas de facto normalmente aliamos sorte a boa sorte. Sortes malvadas não têm jeito nenhum. Não deveriam existir, ou algo do género.)


- Mãe estou tão grande. Não percebo como sou tão grande, vindo de ti tão pequenina.

( Ele não percebe e eu também não)


E agora vou dormir. Há quem diga que faz crescer.

Dia

Nada tenho contra o dia, como nada tenho contra outras celebrações. No seguimento só não percebo a valorização de uns em detrimento de outros, com o devido desdém que por norma acompanha os relegados. Por exemplo, mulheres que veneram o da mulher, e que detestam o dos namorados. Felizmente, e a meu ver, cada um comemora o que quer, e quando quer. E se apraz a muitos jantar fora, embrulhados em bombons e flores de peluche, porque isso os faz sentir muito felizes, que o façam, que o que a malta quer é felicidade. Se é a pretexto, vontade ou circunstância, não me cabe a mim avaliar. Acho é muita piada a alguns discursos que já foram de despeito pelo dia, e que hoje, por força das circunstâncias, têm direito a outros contornos, devidamente justificados com as palavras que se consideram pertinentes de escrever. Sabem perfeitamente que já foram gritos de revolta, já desdenharam e criticaram, e que se hoje são a favor, fica bem uma explicação. Ora eu acho que o que fica sempre bem, é o respeito por opiniões e gostos diferentes dos nossos. Quanto mais não seja para depois não ficarmos assim, com esta necessidade ridícula da argumentação, sob pena de não sermos coerentes, ou, pior, não podermos dar asas às nossas expressões românticas. Nada é mais grave do que corações presos no peito, com medo de saltarem para a rua, por palavras proferidas em dias de indignação.

Possidónia

Chamava-se Possidónia, um nome que poderia ser de bicho, mas não era de gente. E era de gente de ambos os sexos, coisa que convenhamos nem é muito habitual de encontrar, tirando os Marias, os Joões e os Josés, e eventualmente mais algum, que com um certo jeito se prestam a servir ambas as necessidades, e muito bem. O meu filho, por exemplo, só não foi João Maria por teimosia paterna, não fosse o menino ficar perturbado com o facto de ter Maria no nome, e devido a isso pudesse ser assaltado por alguma dúvida existencial. Um disparate, mas adiante. Foi Possidónia em homenagem a um tio materno que se havia atirado para dentro de um poço ainda novo, mais ou menos na altura do seu nascimento. Turvaram-se as ideias, que isto de gente que se mata, ainda para mais desta forma, escolhendo um buraco fundo à beira da porta, não é fácil de destilar e de libertar de dentro do corpo, e quando a pobre criança viu a luz do mundo, logo uma voz se levantou, e orientou a mudança do "o" pelo "a". E assim se emergiu Possidónio, acabadinho de enfiar debaixo dos torrões de terra, sete palmos abaixo do chão, e que veio de novo aterrar na vida, num corpo terno recém nascido. A garota foi vivendo e respondia pela graça que lhe deram, não conhecia outra, habituou-se aquilo, mas quando cresceu a coisa começou a ficar feia. Até porque para além do nome, e como que detentora de toda a essência do morto, já enterrado, já esquecido, e muito provavelmente já comido pela bicharada da terra que lhe há-de ter penetrado o caixão em número suficiente para lhe ter reduzido o corpo a nada, herdou a sua feiura em modos dobrados, desde a estatura curta e encurvada, passando pelo peso considerável, e pela cor macilenta, quase cinzenta, fazendo crer na envolta que Possidónio ainda vivia ali, embalado pela tristeza que lhe levara o corpo para dentro do poço fundo. Tinha-se esquecido cá da alma.
Porém num certo dia, e num rasgo de alegria, Possidónia apaixonou-se. Escolheu um dia especial, abençoado por um Santo, para efectur o pedido de namoro, embora soube-se que essas coisas são de homem para mulher e não de mulher para homem, mas ainda assim resolveu insinuar-se devagarinho, no lusco fusco da tarde, por detrás de uma oliveira florida. O moço, jeitoso e assustado, não se queria crer em tal situação, e fugiu de Possinónia mal lhe olhou de perto para os cabelos encrespados, as orelhas penduradas, o nariz arrebitado e o corpo retorcido.
Possidónia ficou triste novamente nesse dia. Fugiu para longe e nunca mais se ouviu nada dela. Quem sabe até se esmoreceu no tempo, podendo ter sido absorvida pela terra que possui um corpo já comido, de um nome igualzinho ao seu, e que sedenta de um outro assim a engoliu.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

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Ou em preto, tanto faz. E não, não é um suplício de prenda. Calhou hoje, foi só.

Orgulho

Existem pessoas na minha volta que me fazem sentir orgulho. Uma presunção, orgulho é coisa para se sentir de nós próprios e dos nossos ganhos, e mesmo assim com o devido respeito pela limitação que nos cerca a existência. Mas tenho dias assim, em que sinto coisas que não devo, sentimentos que não são meus, apropriações alheias de realidades valiosas. Não são minhas, mas fazem parte da minha vida, logo, e na medida do razoável, pertencem-me. Uma coisa totalmente descabida, bem sei. E por isso hoje estou muito orgulhosa. Crescer não deve ser fácil, embora eu já me tenha esquecido em parte considerável. Crescer com sentido humano brota por certo de dentro do peito, com ferocidade e tenacidade, ou então já se teria perdido. E não perdeu, porque a cada dia mais se encontra. E o meu orgulho hoje não me cabe dentro, transborda, destila, salta de mim.

Pesos

Há dias em que me surgem dilemas estranhos. O dizer ou não dizer determinada coisa, por exemplo, é só um deles. Chego a hesitar, quando entro no âmbito da angústia, do vou guardar para mim. Chego até, e no seguimento, a julgar-me situada em algum tipo de neurose marcada pelo medo da perca, sendo que devido a isso evitaria dizer coisas menos boas, não fosse a pessoa em questão não gostar, e zás, fugir. Mas depois deixo de me menosprezar e vejo que já vou um nadinha mais longe. O que eu faço é não reivindicar sentimentos que não me pertencem, não desejar vindas que não querem chegar, respeitar tempos que se querem ter. Quando muito fico ligeiramente triste, sinto a falta, uma emoção perfeitamente normal, uma reacção do espírito a alguma contrariedade, que gostamos de satisfazer as nossas vontades, fomos feitos desta forma. Mas reconheço sempre as decisões alheias, e talvez por isso já seja raro chatear-me com o que quer que seja. Ninguém é obrigado a nada. E se é, faz por imposição e não por vontade, coisa que convenhamos, a mim não me interessa nadinha. Não gosto de esforços bem intencionados, no fundo é isto. Boa intenção sim, mas não em esforço. Gosto muito mais de genuinidade, franqueza, mesmo que para isso tenha de arcar com as consequências, que nem sempre são simpáticas.
Fretes, são obras de transporte. E eu posso ser um bocado pesada para isso, e vir a provocar algum mau jeito irreversível, no corpo que se prestou. Uma maçada desnecessária, podem crer.

( E só em mais um aparte, dispenso justificações elaboradas e insistentes. Causam-me umas náuseas fortes, um revolvimento das entranhas, um desassossego na alma.)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

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O meu filho disse-me que eu era um bocadinho piegas. Vindo da boca doce que o compõe, a coisa soube-me bem. Disse-o com doçura, tal e qual eu lhe sussurro ao ouvido, quando ele tem febre. Não sejas piegas, filho, já passa, e dou-lhe um beijo na testa quente.
Existe vocabulário que é íntimo, pessoal, e que quando usado no devido local a que pertence, pode ser bom de se ouvir. Fora da esfera ganha um tom ofensivo, perturbador, mesmo em palavra fraca. Temos também a exemplo, mariquinhas, que vai na mesma linha de acção. Há sentimentos que a serem usados em público devem ser criteriosamente estudados, a fim de se encontrar uma palavra que se adeqúe à situação. Sob pena de se entrar num discurso fraco, que verdadeiro ou falso, não vem ao caso, fica ridículo e insignificante. Lembrado apenas pela palavra em questão, pela ofensa, e não pelo que eventualmente se pretendia dizer, se é que se pretendia dizer alguma coisa. Vale zero, portanto.

( O tema é velho, mas olhem, calhou hoje. E para que conste, eu não sou nada piegas. E o meu filho também não.)

Recalcamentos

Zézinha tinha a mania que escolhia as escolhas erradas. Nunca a compreendi muito bem, pelo menos aquela certeza exacerbada que a inundava, e que lhe dizia com palavras muito fortes, inaudíveis, mas totalmente perceptíveis ao seu ser, que o caminho certo era o outro. Cheguei a perguntar-lhe onde ia buscar tanta convicção, uma coisa que pouco ou nada temos, mas à qual nos queremos agarrar com unhas, dentes e eventualmente com outras partes do corpo, que parecem sossegar na beira delas, sem sequer se aperceberem da fragilidade do encosto, que de certo tem apenas o nome. Até porque, e a ter algo por indubitável, esse algo deveria apenas ser a consciência de se estar no caminho errado, sem qualquer indicação possível de que qualquer outra escolha teria sido mais acertada, não sabemos, não é possível, não vamos nunca sabe-lo, que o mundo rege-se de histórias e de momentos, de vidas e de escolhas, do agora e do presente, e não do que poderia ter sido, do que poderíamos ter escolhido, do onde poderíamos ter ido.
Talvez por isso vive imersa numa mágoa desmesurada, envolta numa saca tipo serapilheira, onde guarda todas os acontecimentos que poderiam ter sido seus e que efectivamente não chegaram a ser. Atrás deles guarda ainda as histórias de vida de quem os apanhou, de quem os seguiu, de quem os escolheu, e pesa todas com a sua, julgando assim comparar o que poderia ter feito, quase vivendo dessas impossibilidades que já foram, e que já não voltam. Não abrange que a tê-los escolhido, o resultado poderia nem ter sido aquele, poderia até ter sido outro, completamente oposto à felicidade que encontra nos rostos abençoados pela sorte da correcta escolha. Que ainda para mais são apenas rostos, a mais falsa das coisas para onde olhamos a toda a hora. Outro dia tentei romper-lhe a saca. Mandei-lhe um puxão com toda a força, arranquei-lha das mãos à traição, é o preço que paga do desabafo, e comecei a esburacá-la com força, quase em desespero, antes que a agarrasse de novo e a guardasse para sempre, num local murado e sombrio. Foi nesse exacto momento que travei ao ver-lhe os olhos. De tanto vaguear pelas vidas que deixou no passado, de tanto sonhar com o que poderia ter sido sem efectivamente ser, esqueceu-se de que o mundo nasce todos os dias, com outras coisas, outras gentes, outros apegos e outros aconchegos. E por isso estancou, vazia e perdida, só de pensar que largaria para todo o sempre as vidas que não viveu, os sítios onde não foi, as flores que não cheirou, os livros que não leu, mas com os quais dormia todas as noites, lado a lado na mesma cama, mais ou menos sossegada.
Ousei deixá-la ficar. Quem sou eu para roubar vidas, sejam elas verdadeiras sejam elas falsas? Cada um tem por direito escolher como quer viver, e se essa escolha recair sobre o que não se tem por não se ter querido, mas que por arrependimento persegue as almas em lamento, que assim o seja.

( Fiquei feliz comigo, travei a tempo. Houveram alturas em que o impulso da razão me movia a existência. Lá, nunca lhe teria largado a saca.)

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É já raro encontrar gente simpática. Daquela simpatia genuína, desinteressada, da boa disposição. E é bom, é muito bom. No inicio estranhamos, claro, mas depois abrimos, soltamos, quase sem darmos por isso. E é aí que percebemos realmente, o quanto nos deambulamos por este mundo fechados, reservados, guardados. E do quanto ele nos exige, todos os dias.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

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Tenho qualquer coisa contra convites de educação. Aqueles tipo, à e tal, se quiseres aparece, apenas porque me encontraram na esquina do supermercado. Eu sou muito educada, sou sim senhor, mas existem coisas que ou são de vontade e de querer, ou então não deveremos fazê-las só por educação, circunstância ou protocolo. Os convites são apenas uma delas.

( Aliás, cada vez encaixo menos coisas dentro do território do tem que ser. São mesmo só as que têm que ser, e no resto, deixo as emoções entrarem. Um descanso, podem crer)

Rocha

Existem alguns sítios do mundo que me pertencem. Não por direito, mas por vontade, até porque os terrenos públicos podem ter mais do que um dono, mais do que um proprietário, mais do que um guardião. A Nazaré, por exemplo, pertence-me. Mesmo que outras gentes lhe pisem o chão todos os dias, se alberguem no vento que lá sopra, se salpiquem da água que salta do mar, e eu, apenas seja bafejada por esses seus predicados quando lá me desloco para o efeito, ou seja, apenas quando posso e quando os meus dias me permitem devaneios, coisa rara, convenhamos. De qualquer forma, também não sei se a quereria sempre. Faz parte daqueles sentimentos que se constróem envoltos em alguma mística inexplicável, dos quais a falta e a saudade são parte integrante, e sem os quais a coisa perderia por certo a graça. Pelo menos esta graça de encanto. Ganharia com certeza um outro cheiro, um outro sabor, muito mais vulgar e enjoativo, entre a pevide salgada e o pastel de nata doce, os restos de peixe assado as bolas de Berlim com creme, que assim me cheiram sempre a maravilha. Um dia tive um sonho com o mar da Nazaré. Nele, o dito encolhia-se para dentro do oceano, deixando a descoberto inúmeras rochas cravejadas de caranguejos minúsculos e mexilhão de casca grossa. E eu podia palmilhar a pé a distância que me separava da rocha grande, uma rocha robusta e resistente à envolta, cansada de levar com ondas gigantescas de espuma branca e enraivecida. Gosto muito daquela rocha. A Nazaré não seria a mesma sem a sua presença. Fui até lá e cumprimentei-a, fiz-lhe uma festa delicada no seu corpo possante e encrespado, de cor verde, muito escura. A pobre gemeu e caiu, sendo devorada para todo o sempre por umas areias pequeninas e enfurecidas, cansadas do peso da resistência.

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Houveram tempos em que sentia as ofensas como um punhal a mim direccionado, que me atingia com muita força e me deixava inerte no chão. Depois disso e a retorcer-me com dores, levantava-me devagarinho, ou ao invés muito depressa, e com um destino de justiça marcado. Hoje isto passou-me. As ofensas deixam-me num estado impávido e sereno, sendo frequente mantê-las submersas pelo ar que respiro, à espera que caiam, sem me ralar nada com elas. Num instante morrem, por falta de estímulo e aconchego.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O que há de novo no amor?

Apelativo o nome, que nem sei se é bem este, ou se qualquer coisa semelhante, mais palavra, menos palavra. Ainda há pouco por cá falei dele, e agora este filme remeteu-me para qualquer coisa que sinto, mas que até talvez nunca tenha escrito. O amor tem muitas coisas novas, todos os dias. Constitui uma emoção, uma realidade sentida por alguém, só podendo por isso mesmo estar sujeita às deambulações do corpo que o alberga, e que a ser consistente apresentará consistência, sendo que o oposto será também possível. Não amamos todos da mesma forma, e incorremos com frequência no atentado humano de criticar sentimentos, de ousar proferir que não são verdadeiros, reais, sinceros. Não deveríamos fazê-lo. Corremos riscos de sermos injustos, embora por vezes até nem o sejamos, não sabemos. Não poderemos saber. Não será igual, e pegando em estruturas de personalidade que possamos atingir, o amor sentido por uma mente mais psicopática, ao amor sentido por uma mente neurótica. O primeiro, minado pela dificuldade que o assalta diariamente, e que constitui o vector da injustiça, poderá ser um amor mais individualista, num autocentramento que não o deixa saltar de si e entrar no outro. Mas não quer isto dizer que não ame. O neurótico, por sua vez, pleno de consciência das necessidades alheias, sabedor que já está de que o outro pode não estar satisfeito e querer abandoná-lo, é assaltado pelo medo da perca, e consequentemente pode tornar-se possessivo, controlador, numa tentativa de assegurar o que tanto medo tem de perder. Mas isso não quer dizer que não ame. E seguindo esta linha de raciocínio, poderíamos atingir as diversas estruturas onde nos encaixamos, cada uma diferente da outra, e entregue a falhas, receios, limitações. E dentro de cada uma delas, tudo o que nos rodeia e tudo o que construimos enquanto pessoas, terá também o seu papel preponderante no desenvolvimento dos sentimentos e de suas manifestações.
O que há de novo no amor? Tudo, todos os dias, em todas as gentes que já vieram e em todas as que hão-de vir, que se subjugam a realidades diversas, conceitos internos e externos, desejos, projecções, necessidades individuais. Muito necessidades individuais. No fundo, muito egoísmo à mistura ( Hum, esta se calhar doeu. E nem sequer deveria ser dita assim, de forma fria, em vésperas de Valentim...).

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

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Às vezes tenho dificuldades em me entender com eles. Não percebem o que eu digo, depreendem o que calha, que pode ir de encontro aos interesses, e maravilha, ou não, um drama, mas raramente entendem exactamente o que eu pretendo explicar. A calma, aquela grande mais valia que nos sossega o corpo quando apetece gritar com alguém, por vezes abandona-me. Não devia, a bandida. E é aí que penso, são velhos. Não me ouvem, ou ouvem mal, estão doentes, cansados, e provavelmente fartos de serem enganados. Foram muitas das vezes largados por aqueles pelos quais deram a vida. De forma certa ou errada, não vem ao caso, deram, nas circunstâncias que tiveram. Têm uns dias já no fim e muito pouco a perder, por isso tentam ainda aproveitar o que podem. Olham-se ao espelho e vêm caras engelhadas, carrancudas, ornamentadas de cabelos brancos e ásperos, um desconsolo. Vêm vê-los ao fim de semana, com o traje de Domingo, lancham, et voilá, tarefa cumprida, pelo que chegou a hora de irem embora, até ao próximo fim de semana. Até lá, tudo na mesma. Dores, bengalas, tardes da Júlia e sopas de café. No lugar deles, era provável que eu também não fosse uma pêra doce. E também não compreendesse o que me queriam dizer, principalmente se não me apetecesse entender aquilo. Queria eu lá saber se era para o meu bem. Do meu bem, quem sabe sou eu.

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Existem coisas que não melhoram com o tempo. Industrializam-se, tornam-se rentáveis, correctas, saudáveis, mas não melhoram na verdadeira acepção da palavra. Penso nisso quando masco uma pastilha e me lembro das Super Gorila, umas bujardas em forma de pastilhas doces, que podiam ser de laranja, morango, mentol, multi frutos. Cravejadas de açúcar, robustas, nada destas coisas dietéticas que hoje recheiam os supermercados e nos fazem ter os prazeres da vida de uma forma completamente desenxabida. Tenho dias em que quase me rendo a estas coisas que os tempos modernos inventaram, em nome da saúde, da linha, da sensatez. Mas depois existem as outras alturas em que me apetece mandar isto tudo à fava, e deixar-me lambuzar ao sabor da minha vontade. Sem dietas, com açúcar, com sal ou piri piri, e com tudo o resto que me der na real gana. E mando, que por mor não sei de que grandeza, já expulsei os sentimentos de culpa para um outro lugar deste mundo gigantesco. E tenho para mim que nunca mais os vou encontrar. Existem libertações que valem para além de uma vida.

Voltas trocadas

A vida por vezes troca-nos as voltas. Houve tempos em que eu olhava a envolta, e coberta de uma ignorância pela qual passamos sem saber que lá estamos, julgava a vida das mulheres adultas inundada de realizações pessoais e profissionais, capazes de lhes enlevar a auto estima aos altos píncaros, e de significar uma felicidade suprema sem igual. E essa realização parecia-me tanto maior quanto maiores as corridas que se faziam pelo tempo, sendo que as mais preenchidas seriam sem dúvida as mais realizadas. Hoje não percebo como cheguei a julgar isto, juntamente como julguei outras ignorâncias que me toldaram o caminho e que me deixaram crente em mentiras anos largos, sempre na espera vã de um dia lá chegar. Talvez façam parte do processo estas idealizações, que nos vão colmatando as falhas do caminho, que todos as têm, e fazendo com que busquemos objectivos ambicionados. Temos este hábito tipicamente humano de avaliar o que nos é externo, e de desejar coisas que julgamos boas por essa avaliação leviana que construimos, baseada em nada, ou quando muito, numa imagem que nem sempre nos transmite o real. E só quando lá chegamos, quando corremos sem parar, quando percebemos que a felicidade existe mas não salta em todas as esquinas que cruzamos, e que para saltar teremos de nos empenhar, e que por vezes o sossego é realmente o que nos falta para sermos ainda muito mais felizes, é que consciencializamos que vivemos anos equivocados, em busca de constructos idealizados, que não são mais do que isso mesmo. Hoje já não sonho com as vidas dos outros. O glamour já não me seduz, a beleza já me pode soar a efémero. O mundo perdeu magia, é certo, mas ganhou muito em consistência.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Certezas

Existiam dias em que tinha umas certezas estúpidas. Não deveríamos ter certezas de nada no que confere a sentimentos alheios, projecções, ambições. Para termos a real consciência do erro em que incorremos, basta que olhemos para nós, e que percebamos as mudanças que efectuamos na nossa vida ao sabor das nossas vontades e das nossas indecisões. Mas ao invés disso, ao invés de respeitarmos a natureza dos corpos que povoam a terra, e que na maioria das vezes até aos próprios se atraiçoam, em nome do capricho e em detrimento da palavra, cremos. Olhamos para os dias com uns olhos turvos pelo que queremos ver, e que parece tão claro como a luz que nos emana da alma. A nossa alma por vezes engana. Ilumina-se de réstias de nada, floresce imersa em arbítrios, cresce ramificada em sonhos. Uma fraca incumbência à qual sujeitamos o corpo. E depois de repente, quando a luz se apaga e tudo ameaça ruir, corrói-se perdida entre ela, jura aprender a sério o que há muito já sabe e que sempre acabou por esquecer, não por esquecimento sentido, mas por esquecimento querido. Porque existem aprendizagens daquelas que doem. Umas que parece que não queremos saber nunca, mas que o trânsito dos dias insiste em relembrar-nos, malvados sejam. Como os pingos de água que caem no Inverno, mesmo com sol. Talvez por isto tudo não deixava que essas certezas lhe roubassem o corpo. Guardava-as de esguelha enquanto não se conseguia libertar delas, meio de dentro e meio de fora, prestes a sacudi-las antes que o seu sangue as absorvesse e lhe começassem a correr pelas veias, lhe percorressem o corpo e lhe saíssem pelos poros, pela boca, pelo ventre. Ou pior, se alojassem para sempre no músculo que bombeia a emoção. E então era vê-la a arrastar-se pela rua, carregada de certezas vãs que lhe pesavam no costado fraco e cansado, e às quais ia largando, devagarinho, nas fortes pedras da calçada.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

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As bolachas em saquetas individuais, têm em mim um efeito estranho. Como as que estão na saqueta e pronto, sejam elas duas sejam elas cinco. E é exactamente pelo mesmo motivo, que não arrisco a comprar pacotes únicos.

Dores

Há nove anos atrás, por esta altura, estava muito redonda. Prestes a deitar cá para fora o meu filho, que quis ver isto um pouco mais cedo do que o esperado. Não me lembro muito bem dos apertos, das mãos que me entraram no corpo, das caras que me cercaram enquanto gritei. Lembro-me do exacto momento em que o vi, escuro e engelhado, no minuto em que deixou de ser meu. Senti o alívio do abrandamento, a plenitude do sentimento, a dor da separação. Fiquei cansada nesse dia. Deixar soltar do ventre o que de mais precioso o mundo nos deu, custa. Tal como custa a continuidade de o deixar ir mais um bocadinho, todos os dias.

Breves, sobre um tema grande

Não posso deixar de encarar a situação do País como um mal para o qual todos contribuímos e para o qual cada um, na medida da sua possibilidade, tem de se empenhar para resolver. Talvez por isso me irritem os discursos do têm que fazer alguma coisa, do resolvam o que arranjaram. Todos temos de fazer alguma coisa, mais ou menos a teoria da formiga em formigueiro, que tão pequena já lá chegou. Independentemente de poder haver maiores ou menores culpados, só uma consciência social nos irá ajudar. E sim, preocupa-me esta consciência social. O desânimo que se instala, as injustiças de que são alvo alguns dos que lutam, e que consequentemente os desanima, o oportunismo que assola os mais fracos que se julgam mais fortes, e que muitas vezes conseguem levar a deles em frente, pelo menos durante algum tempo. Sempre gostei de estudar os fenómenos sociais. Sempre me apaixonaram determinados comportamentos, decisões, caminhos. Ainda lembro alguns episódios estudados em cadeiras de Sociologia, que me remeteram para esta importância real, como o célebre ataque a uma moça, ao qual inúmeros vizinhos assistiram sem se mexerem, por julgarem que alguém já o teria feito. Uma demissão social, um crer no outro, uma desresponsabilização. Poderão também ler o grande Ensaio sobre a Cegueira, de uma clareza incrível no que toca ao comportamento humano em sociedade. São meros exemplos entre tantos outros.
Hoje estou num estado de alguma preocupação, após ter visto ontem o Prós e Contras subordinado ao tema do desemprego. Abordaram-se estas questões da sociedade, e assaltaram-me muitas outras. Parece ser um problema sobre o qual poucos se debruçam. Deviam fazê-lo, os comportamentos sociais são um terreno a respeitar. E muito.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Sobras

Encontra-se amargurada na cama. Tem uma perna retorcida com dores, umas costas tortas e encurvadas, uma boca que escorre água sem ela o querer. Segura-a com uns paninhos de papel dobrados, com vista a aumentar a consistência e a ser possível absorver as sobras que deita, e que limpa cuidadosamente, pelos cantos esbranquiçados. Diz que está amarga. É caminho possível tenho a dizer, que a pobre da boca é bem capaz de se lhe ter feito ao resto do corpo, rijo, desadaptado, insatisfeito. Até porque, e através das palavras que a percorrem dias a fio, desde sempre e até agora, seria por certo impossível não se atingir tal fatalidade, consequência do trato a que foi submetida, sempre e em qualquer direcção, servindo de trajecto pelo qual se expulsavam agonias, desamores, azares e presunções, todos muito ligados uns aos outros, misturados ainda a alguns que aqui não estão. Foi senhora grande lá na terra, juntou no corpo a grandeza da posse, grandeza esta que encontro amiúde nos dias da vida, e que quando devidamente tratada, cuidada e protelada, tem tendência a reunir-se fortemente na velhice, e a deixar quem tanta coisa reuniu, envolto num vazio estranho com o qual não sabe de todo lidar. A voz já não é de comando, os haveres já não chegam para acalmar o corpo, velho, doente e cansado, o poder esvai-se devagarinho, e nasce o terrível sentimento da dependência. Dependência esta baptizada de palavras acres e avinagradas, que corroem uma envolta disponível mas humana. Não serão por certo absorvidas na totalidade por quem a cuida, estas sérias lamentações e ataques agudos, e tenho para mim que se revezam e lhe entram no corpo outra vez, transformando-se em outras grandezas físicas e palpáveis, a carecerem de sair por algum lado, como por exemplo em forma de água amarga que escorre pela boca.

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Por muito que não me apeteça dou por mim subjugada a números. Os números das horas, os números dos dias, os números do dinheiro. Escasseiam-me todos. Vivo então a contá-los, a arranjar artimanhas de esticá-los, a tentar encolher as minhas necessidades para que todas lhes caibam dentro. Das horas, dos dias, dos euros. Tenho alturas em que me irrita andar neste modo contraído. Sinto-me apertada, sufocada, capaz de explodir e de me deixar espalhada pelo tempo. Sem qualquer sombra de limite.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Domingo


Percebo o quanto gosto da minha casa quando ao final do Domingo, me apetecia outro Domingo exactamente igual. Também gosto muito de Domingos. Nem tem propriamente a ver com o descanso, tem a ver com a concepção que criei sobre ele. Os outros dias, mesmo que de descanso, não são iguais. Não reúnem lareira, sofá, chás e bolos, mantas e filmes, telefones que não tocam, entre outras. No meu corpo o Domingo é um dia especial. E tento sempre apreciá-lo com cuidado, não vá o dito zangar-se e deixar de me pertencer. Não saberia viver sem os meus Domingos de Inverno. Um capricho, uma paixão.

Da sensação

Encontro por vezes tentativas, vãs, de definir determinadas emoções. Sentimentos, grandezas que se encontram dentro do corpo, sejam elas de carácter positivo ou não, não importa, que enclausuramos ambas dentro de nós. Deveríamos parar com isso, se precioso for o nosso tempo, que de resto, definições precisas não atingiremos nunca. Não existem palavras que cheguem para catalogar o que sentimos, é isso, pelo menos quando a grandeza se impõe. O amor, a mais definida e a mais incompreendida de todas as palavras, também me apaixona. Existe talvez quem lhe chegue perto, que terá de já o ter sentido em plenitude, mas mesmo assim, e ainda que seja dominador de todas as palavras que nos podem sair pela boca, fica no aquém. Percebo que se faça, eu própria, perco-me diariamente a tentar catalogar sentires, denominar sensações, arrumar consciências. Faz parte da nossa necessidade de condensar o que não tem arrumação, de compreender o que não se entende, de perceber o que nos escapa à abrangência. Deveríamos ser mais resignados, e deixarmos estes percursos irrealizáveis para algum ser supremo, dotado de uma qualquer faculdade que a nós nos escapa. Era sensato. Como remédio, e com o intuito de nos percebermos melhor, deveríamos entregarmos-nos com mais exclusividade às sensações. Usufruir sem tentar compreender, viver sem tentar que nos expliquem. O amor que sentem por nós pode ser grande e inexplicável. E dito pode até soar a pouco, mas sentido, e se real, soa a majestoso. Bem sei que vivemos submersos em definições, conclusões, denominações. Gostas ou não gostas, queres ou não queres, vamos ou não vamos. Acho que seríamos muito mais felizes se não dependêssemos tanto das palavras. E se acreditássemos no que os corpos nos dizem em movimentos, em acções, em emoções. Eles sim, no silêncio, sabem explicar-se.

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Quando me deparo com horas de avaliação psicológica para tratar, dou graças a Deus por este meu gosto em esmiuçar o que nos compõe. E em encontrar em cada uma delas os traços finos e os traços sórdidos, as linhas orientadoras, o padrão de acção. Fico sempre mais ou menos com o mesmo sentir que tenho quando pego um bom livro. Preciso do fim com urgência real.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Simples

Abrir os olhos ao mundo pode parecer um processo simples. E pode sê-lo de facto. Ou pode ser complexo, se ocorrer no instante seguinte ao momento em que deveria ter ocorrido. Um sentido de oportunidade, um estar atento, um golpe de sorte ou de azar, uma perspicácia. Tudo grandezas relativas e importantes. Que podem significar a vida daí para a frente. É simples. Ou parece simples, como quase tudo o resto que é deveras complicado.

Máscaras

No meio de uma aula importantíssima, meia dúzia de mulheres pintavam os lábios. As outras olham de revés mas também queriam, só não tinham a coragem de o fazer. Ser desligada pode não ser fácil, mas vir indexado a este orgulho supremo que entra no corpo e que afirma, eu não preciso disso para ser feliz. A beleza e a vaidade são umas capas, vestidas por quem não vale só pelo interior. Elas valem e por isso vestem uma fatiota larga, umas botas pretas de biqueira achatada, usam um elástico sem graça no cabelo. E depois correm quando as chamam, e riem-se quando se vêm diferentes num espelho que reflecte qualquer coisa mais composta do que o habitual. - Esta não sou eu. - É, é, só que um bocadinho melhorada. Sorriem envergonhadas, voltam ao lugar e pensam para dentro, se calhar devia fazer isto mais vezes.
Não, não julgo que o aspecto é tudo. Julgo até que é muito pouco. Mas vale muito. É como outras realidades que conheço, sendo que também existem as outras inversas. Mas de resto, e opiniões à parte, o aspecto composto de uma mulher e o cuidado que a si mesma dispensa, faz bem ao ego. E uma mulher com um ego simpático é também ela simpática. Pelo menos mais simpática do que as de ego frágil, mascarado de grande. Não sou apologista de máscaras, no fundo é isso. Agora a sério, perdi um seguidor. Devo andar a dizer muito disparate por aqui, e provavelmente este é mais um. Paciência. Aqui não há máscaras que entrem a compor o que quer que seja, há uma prosa sempre muito singela, digamos. Nem todos gostam, claro. O politicamente correcto soa muito melhor, eu já aprendi isso há muito.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Afectos

O meu filho só bebe o sumo da mochila do treino quando sou eu que vou levá-lo, como hoje. É a primeira coisa que lembra, mal me vê. Com as restantes pessoas, ou melhor, pessoa, pois por norma é o avô, esquece, embora o sumo esteja exactamente no local de sempre. Nós mães lembramos conforto, cuidado, protecção. Exageros bons que compõem gente. Mimos doces que só nós conhecemos.

Evidências

Não gostava nada de se render às evidências. As evidências são aquelas realidades que estão à vista, que todos percebem com uma clareza de meter pena, são óbvias, chatas e muito previsíveis, todo o parvo as pode esperar. Ela por isso remetia-se ao seu interior. Desdenhava o manifesto que os olhos básicos alheios encontravam para a sua vida, e compensava-se com as suas percepções organizadas no tempo, vindas de meandros diversos que mais ninguém via senão ela. Construiu assim um mundo interior onde só ela tinha entrada, era seu, pertenciam-se um ao outro, numa osmose perfeita e delicada, muito prazerosa, onde acontecia apenas o que pretendia. Nele encontrava-se uma família muito feliz. Duas filhas, uma Maria a outra Renata, que não gosta muito de rapazes. São insensíveis, duros do coração, coisa que com o tempo tem a tendência a agravar, ao contrário das meninas, bondosas, femininas, delicadas, a gostar de casa, bordados e doçaria. Pela tardinha, e imediatamente antes de o pai chegar, iam todas juntas para a cozinha, confeccionar compotas de frutas doces, cortadas com sumo de limão amargo, que se serviam posteriormente com chá príncipe, cultivado no vaso do alpendre, e seco ao sol do quintal. Pela noite dentro e após a janta, o serão era passado em frente à lareira, a costurar mantinhas de retalhos, a fazer quadros de ponto de cruz floridos, e a fabricar tapetes entrançados, vistosos e coloridos. Era o marido que ordenava a hora do sossego, na qual todos se retiravam aos aposentos. Nesses momentos seguintes, iniciava-se sempre uma doce espera. Um não saber exactamente o que se iria passar a seguir, um misto de ânsia e de vontade. Gostava muito de sentir aquele sentimento de quem espera uma coisa, que deseja e envergonha ao mesmo tempo. Talvez por isso, era exactamente esta a hora em que a história lá dentro dela, mais se perdia e prolongava. Nesses momentos, esquecia as filhas Maria e Renata, as compotas doces, os bordados prendados, o calor da lareira. Concentrava o seu interno ser na iminência, e guardava-se, encolhida e em espera, quase sem respirar. Não terminava a história sempre igual, que reservava-se no direito da imprevisibilidade, do momento, da vontade. Mas de resto, e para que saibam, esse culminar nem lhe importava muito. Preferia de longe a vagueza da espera, a sofreguidão da esperança. Em nada evidente.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

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Quando aqui cheguei, cruinha, pateta, julgava a blogoesfera um terreno cravejado de gente com interesse, uma que falava de política, independentemente dos ideais que apregoa, que nisto somos livres de votar Cavaco, Tino, Portas, ou até Jardim, embora aqui também pese o local onde vamos às urnas, mas enfim, soou-me bem desta forma, outra que falava de moda, ou outro assunto de interesse a determinada faixa populacional, aos que, tal como eu, vêm aqui deixar umas ideias que lhes passam pela cabeça e que têm de sair por algum lado, e então vamos deixá-las aqui no pc, que sempre é melhor do que os diários do antigamente, escritos em papel pardo a cheirar a moço, trancados a cadeado e guardados do gato e dos outros elementos da família, que organizavam buscas organizadas em busca da chave. Assim é tudo muito mais clean, limpa-se a alma, se quisermos sabem quem somos, se não quisermos não sabem, e andamos todos satisfeitos, enquanto debitamos ideias soltas, vontades recalcadas, medos, opiniões, enfim. Mas entretanto com o passar do tempo, a ingenuidade foi calcada e sobressaiu o que sempre sobressai quando se trata de coisas ligadas a gente. Seja onde for, como for, existem os que prestam mesmo, e para além dos que se situam no meio, que são médios e por isso não contam para a estatística, temos os que não prestam mesmo nada. E que resolvem povoar este mundo cibernético de coisinhas pequeninas, que vão desde críticas desenxabidas a outros colegas navegantes, a plágios que valem não sei o quê, mas decerto que não servem para destilar as amarguras do corpo, e terão por certo outros interesses, a comentários ridículos e ofensivos. Ora chegando aqui, facilmente percebermos que o efeito terapêutico ou útil dos proprietários destes estabelecimentos, não é nenhum, pelo que sou obrigada a concluir que o que pretendem é minar quem gosta de cá andar, ou então, tão grave como a primeira, ambicionam subir mas sem ser a pulso, mais à sapatada, vá. Não gosto deste tipo de gente, nem aqui, nem na China, e provavelmente na lua também não lhes acharia grande piada. Existem outras coisas para fazer sem ser emerdar quem por cá se passeia, com clareza e respeito ao próximo, e que pode ir desde mandar pão aos passarinhos que andam com fome, a apanhar as caganitas de pombo que encontramos na nossa querida Lisboa. Gosto de pássaros, é isso. Uma acção comunitária em todo proveitosa, nada mesquinha, e que ao invés de encolher, sempre engrandece qualquer coisinha. Até porque, anda por cá muito boa gente a merecer respeito. Aquela coisa, que em sociedade todos deveríamos ter.

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Dou por mim muitas vezes feliz, com esta graça que temos de não transparecer cá para fora tudo o que pensamos. É fraca a nossa mente, e consegue por isso pensar improváveis, desejar impossíveis, ambicionar coisas condenáveis. Felizmente temos uma protecção chamada corpo, que nos guarda lá dentro tudo o que de repreensível fabricamos na alma. Não fosse ele, e era encontrarmos perdidos na atmosfera que respiramos todos estes pensamentos, misturas de sentimentos, desejos impróprios, vontades caprichosas. Apontamentos de rebeldia. Não seria bonito, não.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Palavras

Têm uma abrangência estranha, de tão exacerbada, mas ao mesmo tempo reúnem uma fraqueza tremenda, que de resto agregam-se a nós, simples mortais, fracos de meter dó. Um palavra no sítio certo é detentora de um cariz forte, por vezes até determinante, capaz de fazer girar mundos, mudar vidas, escolher caminhos. Mesmo as mais fracas poderão tratar imensidades, mas as fortes, essas, ditas muitas das vezes exactamente com a mesma leviandade com que se dizem as outras, entram-nos dentro dos ouvidos com uma força bruta, que penetra no corpo e sacode a alma lá no cerne. Amores, ódios, tristezas, convites, enfim, temos muitas destas, que quando do lado bom podem fazer com que surjam entregas, se dêem corpos recheados de tudo, se fantasiem vidas repletas de imensidões e ocorrências felizes. Bem sei que por vezes os caminhos divergem. Bem sei que crescemos, evoluímos, mudamos planos, sentires, ambições. Podemos até mudar a essência do nosso ser, em conjunto com o mundo que nos rodeia, e que nos molda a existência. Não falo dessas, que se dizem na ignorância do crescimento, quando julgamos que estamos coesos o suficiente para proferir verdades eternas. Uma falha, mas perdoável. Falo das outras. Das que se dizem envoltas numa névoa sombria que parece passar despercebida a quem ouve, e que as inclui no lote da bondade, quando emergem do local exactamente inverso. Vêm inundadas em podridão, interesses, mesquinhices, e num instante desaparecem, somem-se no ar, e deixam quem as ouviu envolto em nada. Quem as profere, julgo que até já por cá disse, deveria morder a língua com força. E engolir devagarinho o veneno amargoso, que em forma de sangue escorre dela. Irrequieta-me só que talvez morresse.

Marretas

Vão voltar os Marretas. Mal posso esperar por me sentar num cinema a ver o sapo verde, magro e escanzelado, a namorar com a porca mais gira do mundo. E também gosto muito dos velhos dos quais não lembro o nome. Não sei se foram todos recuperados, mas espero que sim, pois também ficaria muito desiludida se não chegasse o Gonzo.

Afinal os desenhos animados que me embalaram a infância ainda fazem vibrar muita gente. A minha mente andante, já alarga isto a outros sentimentos de valorização pessoal. Ou seja, nem sempre muitos anos significa cair em desuso. Estou aqui para as curvas, portanto.

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Quando nos zangamos com o mundo, deveríamos poder dizer-lho, e não sufocar por dentro, enquanto tentamos apertar aquilo que já não cabe. E podemos, mas por vezes não o fazemos. E ao invés desta prontidão, deambulamos em busca da oportunidade de o fazer. Escolhemos a hora, o exacto minuto, em que o nosso bom senso testado ao limite nos permite a libertação, pós digestão e já mais calmos. Não é sensata esta espera, entra directa na hetero protecção, deixando de lado a nossa própria. Não vale tanto como as dos outros, nas personalidades que se entregam assim. Um erro crasso, vou concluindo. Nestas esperas sufocam-se almas, crescem feridas expostas, agudizam-se dores maiores. E os outros, muitas das vezes, não são merecedores de tamanho cuidado.

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