sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Evidências

Não gostava nada de se render às evidências. As evidências são aquelas realidades que estão à vista, que todos percebem com uma clareza de meter pena, são óbvias, chatas e muito previsíveis, todo o parvo as pode esperar. Ela por isso remetia-se ao seu interior. Desdenhava o manifesto que os olhos básicos alheios encontravam para a sua vida, e compensava-se com as suas percepções organizadas no tempo, vindas de meandros diversos que mais ninguém via senão ela. Construiu assim um mundo interior onde só ela tinha entrada, era seu, pertenciam-se um ao outro, numa osmose perfeita e delicada, muito prazerosa, onde acontecia apenas o que pretendia. Nele encontrava-se uma família muito feliz. Duas filhas, uma Maria a outra Renata, que não gosta muito de rapazes. São insensíveis, duros do coração, coisa que com o tempo tem a tendência a agravar, ao contrário das meninas, bondosas, femininas, delicadas, a gostar de casa, bordados e doçaria. Pela tardinha, e imediatamente antes de o pai chegar, iam todas juntas para a cozinha, confeccionar compotas de frutas doces, cortadas com sumo de limão amargo, que se serviam posteriormente com chá príncipe, cultivado no vaso do alpendre, e seco ao sol do quintal. Pela noite dentro e após a janta, o serão era passado em frente à lareira, a costurar mantinhas de retalhos, a fazer quadros de ponto de cruz floridos, e a fabricar tapetes entrançados, vistosos e coloridos. Era o marido que ordenava a hora do sossego, na qual todos se retiravam aos aposentos. Nesses momentos seguintes, iniciava-se sempre uma doce espera. Um não saber exactamente o que se iria passar a seguir, um misto de ânsia e de vontade. Gostava muito de sentir aquele sentimento de quem espera uma coisa, que deseja e envergonha ao mesmo tempo. Talvez por isso, era exactamente esta a hora em que a história lá dentro dela, mais se perdia e prolongava. Nesses momentos, esquecia as filhas Maria e Renata, as compotas doces, os bordados prendados, o calor da lareira. Concentrava o seu interno ser na iminência, e guardava-se, encolhida e em espera, quase sem respirar. Não terminava a história sempre igual, que reservava-se no direito da imprevisibilidade, do momento, da vontade. Mas de resto, e para que saibam, esse culminar nem lhe importava muito. Preferia de longe a vagueza da espera, a sofreguidão da esperança. Em nada evidente.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Deixar um sorriso...


Seguidores