terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Possidónia

Chamava-se Possidónia, um nome que poderia ser de bicho, mas não era de gente. E era de gente de ambos os sexos, coisa que convenhamos nem é muito habitual de encontrar, tirando os Marias, os Joões e os Josés, e eventualmente mais algum, que com um certo jeito se prestam a servir ambas as necessidades, e muito bem. O meu filho, por exemplo, só não foi João Maria por teimosia paterna, não fosse o menino ficar perturbado com o facto de ter Maria no nome, e devido a isso pudesse ser assaltado por alguma dúvida existencial. Um disparate, mas adiante. Foi Possidónia em homenagem a um tio materno que se havia atirado para dentro de um poço ainda novo, mais ou menos na altura do seu nascimento. Turvaram-se as ideias, que isto de gente que se mata, ainda para mais desta forma, escolhendo um buraco fundo à beira da porta, não é fácil de destilar e de libertar de dentro do corpo, e quando a pobre criança viu a luz do mundo, logo uma voz se levantou, e orientou a mudança do "o" pelo "a". E assim se emergiu Possidónio, acabadinho de enfiar debaixo dos torrões de terra, sete palmos abaixo do chão, e que veio de novo aterrar na vida, num corpo terno recém nascido. A garota foi vivendo e respondia pela graça que lhe deram, não conhecia outra, habituou-se aquilo, mas quando cresceu a coisa começou a ficar feia. Até porque para além do nome, e como que detentora de toda a essência do morto, já enterrado, já esquecido, e muito provavelmente já comido pela bicharada da terra que lhe há-de ter penetrado o caixão em número suficiente para lhe ter reduzido o corpo a nada, herdou a sua feiura em modos dobrados, desde a estatura curta e encurvada, passando pelo peso considerável, e pela cor macilenta, quase cinzenta, fazendo crer na envolta que Possidónio ainda vivia ali, embalado pela tristeza que lhe levara o corpo para dentro do poço fundo. Tinha-se esquecido cá da alma.
Porém num certo dia, e num rasgo de alegria, Possidónia apaixonou-se. Escolheu um dia especial, abençoado por um Santo, para efectur o pedido de namoro, embora soube-se que essas coisas são de homem para mulher e não de mulher para homem, mas ainda assim resolveu insinuar-se devagarinho, no lusco fusco da tarde, por detrás de uma oliveira florida. O moço, jeitoso e assustado, não se queria crer em tal situação, e fugiu de Possinónia mal lhe olhou de perto para os cabelos encrespados, as orelhas penduradas, o nariz arrebitado e o corpo retorcido.
Possidónia ficou triste novamente nesse dia. Fugiu para longe e nunca mais se ouviu nada dela. Quem sabe até se esmoreceu no tempo, podendo ter sido absorvida pela terra que possui um corpo já comido, de um nome igualzinho ao seu, e que sedenta de um outro assim a engoliu.

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