segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Sobras

Encontra-se amargurada na cama. Tem uma perna retorcida com dores, umas costas tortas e encurvadas, uma boca que escorre água sem ela o querer. Segura-a com uns paninhos de papel dobrados, com vista a aumentar a consistência e a ser possível absorver as sobras que deita, e que limpa cuidadosamente, pelos cantos esbranquiçados. Diz que está amarga. É caminho possível tenho a dizer, que a pobre da boca é bem capaz de se lhe ter feito ao resto do corpo, rijo, desadaptado, insatisfeito. Até porque, e através das palavras que a percorrem dias a fio, desde sempre e até agora, seria por certo impossível não se atingir tal fatalidade, consequência do trato a que foi submetida, sempre e em qualquer direcção, servindo de trajecto pelo qual se expulsavam agonias, desamores, azares e presunções, todos muito ligados uns aos outros, misturados ainda a alguns que aqui não estão. Foi senhora grande lá na terra, juntou no corpo a grandeza da posse, grandeza esta que encontro amiúde nos dias da vida, e que quando devidamente tratada, cuidada e protelada, tem tendência a reunir-se fortemente na velhice, e a deixar quem tanta coisa reuniu, envolto num vazio estranho com o qual não sabe de todo lidar. A voz já não é de comando, os haveres já não chegam para acalmar o corpo, velho, doente e cansado, o poder esvai-se devagarinho, e nasce o terrível sentimento da dependência. Dependência esta baptizada de palavras acres e avinagradas, que corroem uma envolta disponível mas humana. Não serão por certo absorvidas na totalidade por quem a cuida, estas sérias lamentações e ataques agudos, e tenho para mim que se revezam e lhe entram no corpo outra vez, transformando-se em outras grandezas físicas e palpáveis, a carecerem de sair por algum lado, como por exemplo em forma de água amarga que escorre pela boca.

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