terça-feira, 30 de novembro de 2010

Dos mistérios quase perfeitos

Há muito me debruço por perceber tal fenómeno, sendo que o mesmo continua a constituir-me, um dos mistérios da nossa existência. Dona Flor, numa história verídica mas de nome fictício, sendo que conto esta, como podia contar outra, que muitas conheço desta dimensão, ocupou-se do filho largos meses, enquanto um malvado de um câncer o consumia aos poucochinhos, por dentro e por fora, quase parecendo, que se regalava com o padecimento de quem levava para si, tal o requinte malvado com que lentamente se regozijava, numa implacabilidade certeira mas calma. Um horror. Durante esse tempo, Dona Flor correu o mundo que se apresentava na envolta, não tendo corrido mais, porque os seus fracos recursos não lho permitiam, mas ainda assim, e no que estava ao seu alcance, correu a bom correr, socorrendo-se de médicos, homeopatas e curandeiros, sendo que nenhuma sabedoria ousava deixar de fora do seu encalço, poderia ser, que de onde menos se esperasse, viesse a cura para o seu bem mais precioso, que tomou tudo o que havia para tomar, desde produtos naturais, a químicos, a mezinhas, a rezas de fé. Nada lhe valeu, que a malvada da doença, por lenta que fosse, foi eficaz no seu propósito, e o seu propósito, era levar-lhe o filho, e assim aconteceu, numa tarde de Outono, em que o céu desabou em chuva, exactamente na altura, em que ele a deixou. Este desabamento do céu, nada foi quando comparado ao desabamento de Dona Flor, que no final do dia, manhã seguinte, vá, já o tempo tinha reestabelecido, as nuvens dissipado, o sol voltado. Mas Dona Flor quebrou para não mais levantar. Numa entrega desmedida a uma tristeza sem fim, quase parecendo que a força que emitiu, enquanto alguém dela precisou, se esgotou de repente no ar, e se esfumou para sempre, junto com quem não mais voltou. Talvez deixasse de ser precisa. Não deixa de me intrigar, essa durabilidade. Exactamente igual à necessidade. Uma das coisas onde roçamos a perfeição.

Ilusões

Sinto uma inusitada atracção pela clareza. E digo inusitada, porque lhe reconheço a raridade, que nos dias de hoje, muitas das vezes, gente para se julgar gente, é gente que se contrói, não é gente que é. Talvez por isso, me sinta tão encantada quando me deparo com os que se deixam guiar pela essência, sem artimanhas ou artefactos rebuscados e construídos, apenas e só com o intuito de se apresentarem como na realidade não são, ou seja uma tremenda negação do eu, que quem assim se relega em função de um constructo imaginado, mais não faz do criar uma capa interna, exactamente igual a um disfarce externo, que se despe no frio da noite, quando o dia se some e a gente se afasta, porque nem me parece provável, que quem assim se fabrica, mantenha a construção sempre, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trinta dias num mês e trezentos e sessenta e cinco dias por ano.
E assim sendo, o mais que se consegue com tamanha prosápia, é deixar-nos aquela imagem, que nem se encontra muito distante do ridículo, de um exagero descabido e despropositado, pela certeza que temos, de que mais logo, na ausência do cuidado no tom, na pose e no trato, aquela figura mais não é do que um ser normal, que se trabalha ao infinito numa fantasia sem fim, à qual se presta com o intuito de parecer um bem supremo, que a ele tanto lhe vale. Ou pelo menos, ele assim julga. A ilusão, é de facto uma coisa bonita. Ou então, às vezes, não é.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Rosinha

Ensinou-me a fazer molho branco, que segundo ela, constituía a base de qualquer culinária, seja ela de que origem for, pelo que quando me ouviu inquiri-la, sobre o processo de sua feitura, abriu-me os seus grandes olhos azuis, e vociferou-me em alto tom, próprio de quem muito já lutou pela vida, e diz a menina que é uma boa cozinheira. E dizia, e dizia mal, de facto. Pesava cerca de cem quilos, era viúva há muito, de um marido vaidoso e mulherengo, que em nada lhe faltou em dinheiro, e muito lhe ficou a dever em carinhos e companhia, que valores mais altos sempre se levantaram. E quem diz mais altos, diz de maior interesse, que se entenda. Sua excelência era douto na arte da sedução, palavras de Dona Rosinha, sendo que não havia mês, não raras vezes em modo dobrado, em que não mandasse costurar no melhor Alfaiate da cidade, Sr Gonçalo, de seu nome, um fato completo, desde a calça, passando pelo casaco e pela camisa, que rematava, invariavelmente, com uma boina a condizer. Embora nem precisasse dela, a bengala acompanhava-o sempre, num compêndio indispensável e selecto, que em muito compunha a indumentaria pretendida. Passeava de manhã até ao fim da tarde, desde novo, que cedo se entregou à reforma, bem vinda que esta era a quem apreciava, tal como ele, uma vida de galanteio e diversão. Regra geral, não faltava para além do pôr do sol, sendo que a hora da janta, era para si hora sagrada, a fim de se repastar com os manjares de Dona Rosinha, manicura de profissão, cozinheira por opção, devoção e precisão.
Limou-me as unhas inúmeras vezes, em forma amendoada, em uso na época, quase sem vista, que as cataratas, quiçá derivadas das horas de choro infinitas, nunca secaram e quase a cegaram, sendo que realizava o seu trabalho quase às cegas, mas numa perfeição de meter cobiça, a muitas de boa vista. Recordo-me ainda o seu cheiro, a água de rosas forte, como que numa combinação perfeita com o seu ser, Rosinha, que assim terminava, pela doçura sem fim.
Demoliram-lhe por ora a casa. Ela, já se foi há muito, numa noite de inverno, nem sabemos como, sabemos que na manhã, já o seu corpo não tinha vida. Ainda a imaginava por lá, já toldada pelas pernas trôpegas, numa doença malvada que lhe levou a força física para longe, bem antes da sua partida.
Fica-me a faltar aquele sítio, para além dela. É uma das que tinha, muito mais para me ensinar.

domingo, 28 de novembro de 2010

...



Um, dó, li, tá...

O amor e o amanhã

Dizes ter-me amor e eu, acredito. Acredito e fico feliz, como se o teres-me amor fosse uma coisa pura e inocente, quando todos sabemos que não. Há muito já conclui que o amor desprendido, o único verdadeiro e puro, é o dos pais para os filhos, quando muito o dos irmãos, e mesmo nesses casos específicos, nem todos serão, que tenho para mim que há gente, sem capacidade real para o sentir. Esse majestoso sentimento, surge-nos cá de dentro, desprovido de qualquer tipo de interesse ou proveito próprio, independentemente do que nos possa trazer, que podem ser alegrias e boas aventuranças, ou podem ser desgostos, preocupações, desilusões, enfim, uma panóplia de forças periclitantes, mas que apesar disso, em nada nos incomodam, ou seja, em nada nos mudam os sentimentos, que continuam iguais ao longo da vida, venha quem vier, aconteça o que acontecer, morra quem morrer, nasça quem nascer. Quanto aos outros, sinto-os frágeis, senão sempre, muitas das vezes.
Nem sequer questiono a veracidade do que dizes ao apregoar-me amor, ao evocares as saudades que me sentes, ao desejares-me a presença, tanto, quanto a do ar que respiras. Continuarás por certo assim, por tempo indeterminado, enquanto eu te iluminar o espírito, te acender o desejo, te acalentar a alma, coisa que um dia, é possível que passe, que somos assim, de natureza mutante e imperfeita, sendo que mudamos os gostos e as ambições, e somos egoístas ao ponto de as respeitar, mais do que a qualquer outra coisa. Atenção ao facto importantissimo, desta minha observação, não constituir qualquer tipo de reparo à nossa natureza, que assumo e aceito, e que disso, não haja a menor dúvida.
E se esse estado de evolução permanente, detém um carácter fenomenal, de percurso e progresso, não deixa de acartar esta dose de instabilidade, sendo que o que se ama hoje, pode deixar de se amar amanha. Ou então, quem sabe, pode amar-se para sempre.
Nem espero mais nada, acredita. A consciência de que assim é, já me chega. Bem como a felicidade de agora.

Desafios

Fui desafiada, andava a afastar-me destes trabalhos internos, pelo menos dos orientados, como se a estrutura externa fosse o pilar principal, coisa que nunca, por nunca ser, virá a ser uma verdade absoluta, no que toca ao ser humano, espécie dotada de intelecto, sentimentos, emoções. Se falarmos num animal, onde a força e a imponência se bastam por si só, poderemos aceitar a busca da satisfação básica, a valorização do que a eles importa para seguir em frente, na continuação da espécie, e que pode ser a força nos leões, a beleza nos pavões, enfim, por aí fora que cada espécie tem a sua especificidade, só nos cabendo a nós constata-la, nada mais. Pelo contrário, o Homem apresenta-se muito mais complexo, numa miscelânea de interesse interno e externo, onde muitas vezes, por desleixo, facilidade ou vontade, se centra em um, num completo detrimento do outro, como se isso fosse prudente, e nos pudéssemos dar ao luxo de nos clivarmos desta forma, aqui interessa, ali não, pelo que agora vivo só uma das vertentes e esqueço a outra, sendo que a outra pode ser a interna ou a externa. Sequencialmente, cultivamos a que mais nos convém, a que mais apreciamos, a que mais nos satisfaz, quase produzindo uma consequência inevitável, e que consta no cultivo da imagem para quem dela pode usufruir de forma satisfatória, ou o cultivo do intelecto, para quem dele se socorre, para uma valorização pessoal mais concreta. Obviamente que este estado define um extremo, nada desejável na humanidade, sendo que para bem ser, deveremos debruçar-nos de igual modo em ambas as vertentes, ou se não igual, pelo menos de forma contrabalançada, umas vezes num, outras vezes noutro, numa perfeição ambicionada por quem nos criou, como um ser intelectual, mas também social, perfeição essa, que, por isso mesmo, ser perfeição, nos deixa no aquém muitas vezes.
O desafio surgiu-me então, e ainda bem que surgiu, deixando-me com a sensação, fátua, bem sei, de que por vezes na vida, as coisas surgem quando têm de surgir, nem antes, nem depois, mas sim na hora, admitindo aqui um carácter de espiral coerente e infinito, tão frágil com fascinante. O de me trabalhar por dentro, se é que me explico, de forma orientada e sistemática, tentando retirar conclusões sérias, nada de falsos constructos, que uns dias julgo verdades, para noutros constatar mentiras.
Estou empolgada.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Faltas

Falou-se neles, nos velhos, que hoje são muitos, prevêem-se muitos mais. A população envelhecida parece ser encarada de ânimo leve, como se nem constituísse um problema, num País onde poucos nascem, e onde se morre cada vez mais tarde. Por obra da evolução, por certo que sim, principal responsável pelo alongamento da esperança de vida, que apenas não nos ensina, e agora, o que é que fazemos? Ou melhor, até talvez ensine, que a ordem natural será essa, seremos por certo nós, nem todos, mas muitos, que nem bem o tomamos, que existem coisas difíceis de aprender. Compreendo.
E como tal, os que não sabem, despejam os velhos aqui e ali, onde se possam albergar longe dos olhos, sendo que ficam assim também, longe do coração, ditado antigo, por certo já o ouviram dizer, se não neste, num outro contexto, nem importa qual, importa sim, o que significa. Corre-se, bem sei, também eu corro, como toda a gente, nem mais nem menos, que no fundo, e admitindo as devidas variações do quotidiano individual, todos corremos, todos vivemos e todos lutamos, trabalhamos e prosseguimos, é assim a vida, e quem lhe escapa ao meandro, algo lhe falta. A diferença poderá ser, que enquanto uns correm enquanto mantém de perto as origens, quanto mais não seja num perto longe, necessário quando a vida nem permite grandes proximidades, outros correm mais longe, longe o suficiente para nem sentirem quem por lá ficou, que já pesa, já exige, e já não dá. Nem por aqui me perco com percursos insanos, que possam ter dado origem a afastamentos, sendo que serão sem dúvida a minoria. Falo dos outros.
A suprema revolta surge-me, quando me dizem, numa justificação que me dão com o intuito de se apaziguarem a si mesmos, que a doença chegou, e eles, os velhos, estão ali porque ali estão, e já nem sentem a falta. Porque nestas coisas dos laços, a falta, deveria ser sempre de ambos os lados. Há muito, descobri que não.
Fiz as contas, e concluí que ficarei velha, nessa época em que seremos muitos mais.

Inverno

Saio de casa no frio da noite. A necessidade imperou, exigiu-me ao corpo um passeio na rua, por onde os ares gelados já se fazem sentir. Cheira-me a Dezembro, e cheira-me bem. Por escassos momentos, relego a vaidade e rendo-me ao frio, sendo que envergo um blusão de penas arcaico, rematado com um gorro e umas botas de pelo. Saio, e não o sinto. Inicialmente, julguei acalmia meteorológica, até perceber, que a indumentaria era a principal responsável pelo meu estado de conforto. Nem percebo o porquê de não me sentir airosa nestes propósitos. O meu Inverno seria muito menos agreste.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Encaixes e dúvidas

Gosto de noites sossegadas. Gosto de me deitar, fechar os olhos, e adormecer depressa, antes que me tomem de assalto, os pensamentos vagabundos da minha existência, que todos temos alguns, não constituindo eu, qualquer tipo excepção à regra. Não constituo em nada, porque deveria constituir aqui, sendo que em nada me destaco, assumindo a normalidade como um estado permanente, onde qualquer tipo de genialidade ou bestialidade me fogem a bom fugir, deixando-me marinada no meu Eu simples e prático, nuns dias adaptado, noutros dias não. Nas noites em que tal acontece, em que permito a entrada a tais pensamentos furtivos, uso levantar-me, num instinto de protecção inerente a mim, que a deixar-me ali, em estado de indolência perante tal invasão, mais não consigo do que uma submissão que em nada me apraz, nem aqui, nem em qualquer outro lado, pelo que lhe fujo, sempre que posso. Por esta altura, e a ser lida por algum colega de profissão atento e treinado, correrei o risco de ser apontada como fugitiva de pulsões internas, mas não se aquietem, que nem é o caso. Penso-as quando assim tem de ser, quando a necessidade impera e a minha vontade quer, e isso me basta, não me parecendo em nada prudente, a obrigatoriedade do pensamento, quando apenas a elas apetece. Olho por norma a televisão, preciosa aliada, que sempre encontro qualquer coisa que me entretenha o espírito, que pode ser a Anatomia de Grey, ou um qualquer outro programa no National Geographic, que trate de bicharada. Outra noite tratava salmões que fugiam dos ursos, estratégicamente colocados na subida do rio, exactamente nos locais onde os pobres peixes são obrigados a saltar. Esticam a pata, apanham-nos e comem-nos de uma assentada, numa supremacia e voracidade tremenda. Fez-me lembrar as leoas, que correm na savana atrás dos magros antílopes, esses, pobres de Cristo, ainda mais limitados, que uma vez sinalizados, de pouco lhes vale fugir, que dificilmente escapam com vida.
Nesta natureza que se diz perfeita, existe sempre a presa e o caçador, o superior e o inferior, o que vive e o que morre. Nessa mesma noite, quando o sossego chegou, sonhei que comia salmão assado no forno, com oregãos e sumo de limão. Tu também estavas, a atormentar-me o espírito. Quando acordei, nem bem percebi, em que ponto da cadeia me encontrava.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Sexto sentido

Existem diversos tipos de choro, sei do que falo, embora por cá, em momentos de presunção excessiva, tenha dito que nem às lágrimas me rendo, como se isso possível fosse, chego a rir-me de mim mesma, confesso. Podem ser de vários tipos, espécies, enfim, não se chora sempre igual, da mesma maneira, com a mesma intensidade, como de resto, em qualquer manifestação de sentimento, que pode ser sempre mais ou menos intenso, de maior ou menor magnitude, é assim, apenas e só porque assim é.
Os choros fáceis, de quem a eles se entrega a toda a hora, têm diversas origens, sendo que podem ser de carácter apelativo, o que não é bom, ou, pior ainda, podem ser sinais de uma tristeza crónica e incontrolável, grave por demais para se poderem descurar, estes, entre outros significados, que podem existir. Dos que surgem pontualmente, também desconfio sempre, porque me revelam um mau estar de alguém que por norma os evita, e que por obra de algo concreto e penoso, dele não conseguiu escapar, foi o caso de hoje, vindo de uns olhos velhos e cansados, e pior ainda, sozinhos. Fica aqui um aparte que considero oportuno, e que constitui o facto, de eu não gostar de olhos sozinhos, não deixando porém de ressalvar, que olhos sozinhos são sozinhos de todo, sendo que existem aqueles que se acompanham um ao outro, nem necessitando de muito mais companhia, julgo que me faço entender. Não é o caso, o que também de resto, julgo nem encontrar muito na velhice, olhos desses, que se acompanham por si só, dado que a idade precisa, de mais olhos que a olhem de perto.
Ela casou cedo, e teve tudo a que tinha direito, disso se gaba, julgo que sem ter a real consciência, da dimensão atingida, pela raridade que constitui, essa realidade naqueles tempos. É bom que se ressalve tal facto, dado que outrora, todos sabemos, mulher era para servir e homem para ser servido, ponto final. Nada disso lhe aconteceu, que seu legítimo esposo tinha-lhe um amor como nem existe, nunca lhe faltou com sustento, calor e vaidade, que era senhora cuidada, a esse luxo se dava, que seu querido marido, disso fazia questão.
A única divergência sentida, embora daí nem surgisse guerra declarada, era a descendência, muito desejada por ele, nada desejada por ela, vá lá saber-se o porquê, que família sem filhos, era uma família vazia e depreciada. Nada disso porém a inquietava, pelo que muito mais a afligia, a possibilidade de conceber um ser à sua completa revelia, isso, isso sim, seria um desastre, sendo que o seu sexto sentido, sempre a mandava travar.
Assim sendo, e sempre que seu esposo resolvia dar cumprimento às suas funções conjugais, logo após o términus, a primeira coisa que fazia, sem lugar a abraços ou afagos pós coitais, era correr à retrete, a fim de executar todo o processo de irrigação vaginal, com vista a pôr cobro a qualquer resquício de substância procriadora, que por lá pudesse ficar. Seu esposo, chegou a tentar aquieta-la, mantê-la no calor do leito, sob o pretexto de a afagar, mas ela, sabida que era dos meandros da concepção, depressa lhe fugia dos braços, voltando apenas e só, depois de devidamente lavada e acautelada.
Valeram ao marido umas férias em casa da sogra, num local que nem era seu, onde nem lhe era bem possível o escape imediato, a fim de dar uso ao seu instrumento, precioso aliado, que lhe acudiu durante tanto tempo, pelo que engravidou, seis anos após o matrimónio, tendo entrado numa experiência indesejada, à qual, confessa, chegou a ganhar simpatia. Ainda assim, e mesmo após experimentar a maternidade, e dela ter chegado a gostar, esta não lhe aguçou a vontade da repetição, teve aquela e aquela só, e tal como previa, anos mais tarde, concluiu que nem aquela deveria ter tido, que ao abandono foi sujeita, sem dó nem piedade.
Fala-me de novo em sexto sentido. Fala-me do perdão que concedeu ao marido, por ter permitido que tal coisa lhe acontecesse, ele, que sabia de sua vontade em manter-se ela e ele, apenas e só. Diz-me ainda que o perdoou há muito, mais precisamente, logo após a sua morte. Foi nesse momento, em que ele lhe faltou, que por ela aguardou. Ela não veio. Mas o perdão já tinha sido dado, e por cá ficou.
Completou hoje 97 anos.

Da greve

Diz-me em soluço, que o serviço de oncologia que acompanha o pai, se encontra inactivo ou quase, por motivos de greve geral. O Sr Tomé, encontra-se por ora na urgência do Hospital, aguardando alguém que lhe possa acudir às dores, no meio de uma sala de espera pejada de gente, no meio de um serviço mínimo garantido. Nem me proponho a dissertar sobre a greve, que cada um age de acordo com o que considera por bem agir, sendo que a mim, nada me choca quem resolve fazer ou quem resolve não fazer, é um direito, cada um usa como bem entende. Ponto.
Quanto ao serviço de saúde em questão, reservo-me no direito de deixar umas linhas, para que pensem comigo, se assim o entenderem, obviamente. O serviço, residente num estabelecimento distrital de saúde, fechou na passada semana um tempo considerável, por um problema inesperado, que precisou de alguns dias de resolução, sendo que os doentes necessitaram de adiar os tratamentos de quimioterapia, por falta de recursos medicamentosos disponíveis. Hoje, passados uns poucos dias, o serviço não funciona devidamente, porque os profissionais deram uso ao seu direito à greve. Quem do serviço necessita, o tal, que deveria funcionar sempre, nem que fosse em serviços mínimos ( que poderemos aqui questionar o que são, que a existirem efectivamente, não permitiriam um serviço inactivo, ou sem resposta suficiente), por esta hora, possivelmente, e tal como fez na passada semana, solicita ao seu próprio corpo uma greve de dor. Que venha mais logo, amanha, se puder ser, ou que ao menos, acalme, até algum enfermeiro do serviço de urgência, atafulhado em trabalho até ao tutano, disponha de uns minutinhos para dele se ocupar. Com sorte, o corpo cede.
Volto a frisar que não me choca a greve. Volto a frisar que a mesma constitui um direito, a usar por quem bem entende fazê-lo, quando respeita, obviamente, as necessidades efectivas de uma Sociedade em movimento. Julgo porém, que num País de fracas soluções e inúmeras carências, talvez seja bom pensar a fundo, o uso que se dá aos direitos que temos. Nos prós e nos contras, por assim dizer. E se efectivamente, existe a possibilidade das reivindicações pretendidas, ou se, o resultado da mesma, não será apenas e só, um conjunto de consequências nefastas para quem dos serviços necessita, sem possibilidades de resolução concreta do que quer que seja.
Eu, não fiz greve.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Vidas

Temos uma necessidade inerente, das vidas dos outros. É nosso, é humano, não podemos negar nem esconder, que nos afronta com uma potência tal, que mesmo que lhe tentemos escapar, de imediato meteremos um pé em falso, uma perna, quiçá todo o corpo. Julgo até podermos concluir, numa análise concreta e sucinta da nossa natureza, que das vidas dos outros dependemos, nelas aprendemos, nelas crescemos, enfim, uma panóplia de ligações intimas e exacerbadas que fazem com que a convivência social e a aprendizagem do que nos é alheio a nós, e pertença de outrem, nos constitua um motor de evolução forte e absolutamente necessário, não nos sendo permitido fugir, apenas e só porque o possamos querer. Somos sociais, nada a fazer. Julgo-me porém numa era em que algo me soa estranho, não me encaixa bem, por assim dizer, despoleta-me uma antipatia excessiva, a mim, ser de fácil adaptação, razoável entendimento, algum conhecimento dos meandros do crescimento, não por algum predicado que aqui mereça realce, mas porque a ele me dedico com afinco e determinação, pelo que só posso conhecê-lo, a isso me devo. Assim sendo, e prosseguindo no raciocínio, nem me parece necessário a desregrada sofreguidão que detecto em viver vidas alheias, que de todo não nos pertencem, como se delas nos alimentássemos, deixando aqui de ter cabimento qualquer teoria de evolução, para se entrar num outro fenómeno, que nem bem identifico, mas que julgo poder vir a catalogar devidamente, se procurar com afinco um nome que lhe encaixe em excelência, embora, confesso, o nome, nem bem me importe. Importa-me o sentimento da necessidade forte e cabal, de alimentar o ego próprio à luz dos egos dos outros, como se dentro de nós, no nosso ser, na nossa intimidade e nas nossas acções, não encontrássemos potencial suficiente para nos desenvolvermos, e fossem efectivamente precisas as histórias de vida de quem nos circunda, nas quais opinamos, criticamos, enfim vivenciamos, para que o nosso ser prossiga.
Nem tenho de me preocupar, dirão por certo vocês, que cada um sabe de si, e cada um vive do que muito bem entender, não me cabendo a mim julgar se fulano ou sicrano se alimenta só disto ou daquilo. Não vos tiro razão, acreditem. Ainda assim, considero um desperdício.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Dias não...

Os dias não são uns dias um tanto ou quanto estranhos, surgem normalmente do nada, que os que surgem motivados por algo concreto, que nos tira do sério e nos leva a paciência para um local longínquo e inacessível, são outro tipo de dias. Dias em que nos encontramos aborrecidos devido a isto ou aquilo, que vai desde a noite em que não se dormiu, à pessoa que não se viu, ao muito que se trabalhou, ao pouco que se descansou, à dor que nos atormenta o corpo ou o espírito, enfim, o que quer que seja que nos faça a disposição descer a níveis limite, cabe-nos a nós, com a nossa sapiência, resiliência, paciência ou qualquer outro termo que aqui se possa encaixar, resolver, em prol do nosso bem estar. O não, apenas e só porque não, surge a capricho, sem motivo aparente ou no mínimo identificável, sendo que nos deixa num estado de prostração importante, porque nem bem sabemos onde intervir.
Ora então basta pensarmos, e no seguimento dos aborrecimentos atrás mencionados, que no sono poderemos dormir, na pessoa que a nós nos falta, poderemos procurar, no cansaço, descansar, na dor que nos consome, atenuar. Ou poderemos pelo menos tentar, cada uma destas coisas perfeitamente identificadas, que a tentativa, por si só, poderá chegar para nos abrandar o espírito, levitar-nos a alma, aquecer-nos o corpo, que assim somos, é de nossa natureza, pelo que muitas das vezes precisamos apenas e só de caminhar na direcção de algo, independentemente de lá podermos ou não chegar . No não, não se encontra caminho. Desassossega-se. As forças, que já nem são muitas, não apanham direcção precisa e deambulam perdidas, cada vez mais fracas e inertes, por falta de um destino. A ausência de destino é sempre uma ausência severa, seja ela onde for. O medo surge quando o dia, passa a dias.

...

Fiz qualquer coisa semelhante a isto. Sosseguei-a, bem arrumada, no fundo do frigorífico. Usei um truque antigo, de pôr alface na frente, ambicionando secretamente, que o sossego da dita me atingisse em cheio.
A noite acordou-me cedo, mas ainda tentei nega-la, em esforço, confesso. As pulsões são uma coisa tramada.

domingo, 21 de novembro de 2010

E a tua, vale quanto?

"Morreu aquele que vivia ali isolado, naquela barraca no meio do mato. Sabe, aquele que andava para aí aos caídos. Paciência, também não andava cá a fazer nada."

Causa-me sempre fastio, para utilizar palavra antiga, proferida por minha querida avó, a fim de denominar algo que a perturbava. Não encontro sempre, mas ainda assim, encontro muito, para além do desejável, sendo que o desejável era vez nenhuma, isso sim, seria nobreza humana. A vida que vale muito, a vida que vale mais ou menos, e a vida que não vale nada ou quase nada, juízos normalmente vinculados ao que se tem, ao que se vale, digamos assim, como se as vidas não valessem todas a mesma coisa, podendo nós chorar mais umas do que outras. Individualmente, no que nos circunda, que pode ser gente próxima ou menos próxima, com a qual temos mais ou menos afeição, que admiramos ou não, faz toda a diferença, sendo que mais choramos a quem queremos bem.
Perde-me todo o sentido quando transportada ao resto da humanidade, como se uns merecessem a morte mais do que outros, como se uns tivessem a perder e outros não, como se nos coubesse a nós julgar quem morre bem ou quem morre mal. Concebo a indignação por quem morre cedo, a indignação por quem morre em sofrimento, por quem morre em desgraça, por alguém grande que morre, enfim, por tudo o que circunda a morte em si, que é coisa imponente o suficiente para nos causar um desconforto sem fim, pela impossibilidade em controlá-la, pela implacabilidade da conduta. Só não concebo o dó do rico que tinha muito a perder em detrimento do dó do pobre, que já não tinha nada, e portanto menos mal. Como se o valor de quem por cá passa, assim se pudesse medir, em notas ou outros valores, reduzindo a grandeza humana a uma materialidade hedionda.
Quem morre, morre para sempre, e é sempre mal morrido, por pouco que perca. Perde a vida. Já me parece perca que chegue.

Cafés e bicas ( Nascidas ali na Brasileira)


Nem sou assídua frequentadora, pelo menos dos da era moderna, onde o misticismo de outrora se perdeu para sempre, dando lugar a uma banalidade sem graça e sem alma, exceptuando as devidas excepções, obviamente. Foi pois com agrado que devorei um artigo encontrado num jornal de fim de semana, onde se entra e se passa a pente fino, os grandes cafés de Lisboa e Porto. Os do Porto não me povoam memórias, que de resto, só o conheço de passagem, uma falha, que necessito colmatar em breve. Já de Lisboa, não digo o mesmo, e dos que se trataram ali, conheço todos ou quase. Casas centenárias, entre outras, que o artigo não refere, que ainda hoje me fazem delícias, pelo envolvência e história que acartam no regaço.
Destaco, a Brasileira, nem propriamente pela preferência em detrimento de outras tão grandes quanto ela, mas pela frequência assídua em tempos.
É linda. É no Chiado. Ali, na minha querida Lisboa.

sábado, 20 de novembro de 2010

Escolhas

Casou cedo, que de resto, que mais fazer, quando se habita uma casa que nem é nossa, numa família que nem nos pertence, numa terra estranha e sombria. A paixão nem era por ai além, mas chegava para despoletar um friozinho de bem estar que nem sequer conhecia, melhor do que qualquer outra sensação que habitualmente sentia. Ela era loura e de pele branquinha, dedicada a ele, e dizia amá-lo. Nem foi preciso pensar muito, que o que tinha a perder era pouco, quase nada, para não dizer nada de todo, e o que eventualmente poderia ganhar, caso o casório lhe corresse de feição, poderia compensar os magros anos a que tinha sido sujeito por imposição da vida, esta malfadada coisa da qual as pessoas se queixam amiúde, incluindo ele próprio, quando algo corre menos bem. "É a vida. É a vida".
Não correu. Hoje, afirma a pés juntos, que caso volta-se para trás, não teria cometido esta insensata escolha, que a idade já lhe trouxe conhecimentos mais do que suficientes para perceber que o casamento para ser proveitoso, necessita de mais do que de uma empatia momentânea e morna, aliada ao escape a algo do qual se foge por não se querer. A sustentabilidade destas ligações, construídas à força da necessidade e não do amor, é débil e frágil, e mais não fazem do que uma existência sem sabor, subjugada ao dever da obrigação de dar o sustento a quem já se pôs cá neste mundo, e também de resto, partir agora para onde, como e em busca de quê.
Pelo que o que por ora detém já conhece, embora confesse, já tinha esquecido a essência, até porque agora existem algumas nuances, os filhos, para que se entenda, a atenuar o estado indolente, que ainda assim se impõe, à sua completa revelia.
Casou cedo, é um facto. Hoje, porém, tem uma casa que nem sente dele, uma família que nem é bem sua, numa terra estranha e sombria. Nem diz que escolheu mal, embora o consciencialize, que estando escolhido, escolhido está e a lamentação, nem é bem arte das suas. Chamou-lhe então desabafo, numa preocupação que detecto com frequência, em atribuir nomes apaziguadores, a sentimentos importantes.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Cabeça no ar, ou de como as mães também falham


No meio de caóticas manhãs, em que banhos, lanches, mochilas e afins, me invadem o espírito até ao infinito, sucumbi. Nem é hábito meu, que me organizo ao pormenor, tentando a todo o custo que nada falhe esta cabeça encharcada em coisas que se devem fazer, naquela hora, naquele minuto, exactamente antes da porta bater, da chave trancar, do dia correr.
Ontem, não se deu uma dessas coisas imprescindíveis, sendo que por casa ficou o Magalhães, que para quem não sabe, faz parte do arsenal de qualquer criança de primeiro ciclo, de há um tempo a esta parte, constituindo parte integrante do material escolar, tratando-se de um pequeno computador, munido de uma programação bastante razoável, que ensina à pequenada o b-á da informática. Estão portanto apresentados, embora eu julgue, que tais apresentações nem fossem por demais necessárias, que o pobre, sem qualquer culpa, se viu atacado em diversas frentes logo após o nascimento, sem hipótese de escape, facto que por si só chega, para que todos ou quase o conheçam.
Pois que se ficou por casa, no recato da sala, fielmente depositado no seu saco de transporte azul, ao invés de seguir connosco, rumo à escola e à confusão da sala de aula. Só no fim do dia percebi o erro, quando o pequeno me aborda sobre tamanha falta por mim cometida, eu mãe esquecida e sem qualquer perdão, que num ápice desenhou em sua mente, todos os meninos afincadamente trabalhando no seu bichinho, enquanto o meu, pobre de Cristo, olhava para uma ficha substituta, fornecida pela Professora, que para dentro deve ter pensado um ror de atrocidades, respeitantes à minha negligente pessoa.
Pois que fiquei com a tremenda sensação, de mãe que corre e se esquece de coisas, terrível sentimento este, suficiente por si só, para a génese de uma crise de consciência, na minha fraca pessoa. Valeu-me o pequeno, que me disse ao ouvido, perante o meu desespero, deixa mãe, eu também me esqueci. E não faz mal, fiz com o Gui.

Obrigado meu querido. Nem sabes o peso que me tiras-te.

( História ligeiramente dramática e empolgada. Mas ainda assim, não muito. A minha mãe, no seu tempo, não teve direito a esta animação.)

Chuva



Aqui chove. Em tempos, fui detentora de umas verdes, com olhos de sapo. Um horror, portanto.

Já destas não digo o mesmo.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Barbearia

Gosto especialmente das antigas, por cá ainda existem algumas, uma delas, julgo até poder considerá-la, uma autêntica relíquia, começando pelo dono, passando por todo o material que lá está dentro. Fica num rés do chão, como qualquer boa barbearia que se preze, na zona velha da cidade, e o barbeiro apresenta um ar forte e determinado, quase parecendo, que o pescoço de quem a ele sujeita a barba todas as manhãs, corre sério risco de sair dali sem vida, tamanha injustiça, que o que mestre faz, faz com jeito e precisão, sendo que apenas e só olhos destreinados de Mulher, que nada entende do ofício, poderão julgar tal barbaridade.
A cadeira é de um verde água muito clarinho e reclina-se para trás com uma manivela, que os tempos da sua feitura, ainda não eram de grandes automatismos. Ainda assim, tem um almofadado confortável, que permite a quem nela se senta, o repouso devido, disso, não haja dúvida. Também de resto ali, na barbearia do Sr Chico, nem há lugar a modernices, que o de antigamente era de um outro calibre, pelo que o espólio que guarda, já de tempos de herança, nem sei se de pai se de avô, fazem as vezes necessárias, com a qualidade exigida, a quem diariamente o procura, com fidelidade e carinho. Para que caso não saibam, embora eu julgue até que já possam ter imaginado, fiquem sabendo que tem clientela de anos, de sempre, desde que são homens de barba rija, uma família, dizia-me em tempos.
Todas as manhãs, leva o Correio da Manhã para a sua loja, cuidadosamente dobrado debaixo do braço, devidamente protegido da chuva ou do vento, se for caso disso, que o cliente merece um jornal estimado. Ele nem sequer aprecia lê-lo amachucado, pelo que por si se referencia, que se em algum lado procurar serviço, seja ele de que ordem for, se há coisa a que dá apreço, é à ordem atribuída ao jornal, que deve estar sempre impecável e legível, a fim de bem entreter, quem se encontra a esperar vez. Embora nem se espere muito no seu estabelecimento, diga-se a bem da verdade, outro motivo de orgulho, que se organiza ao milímetro com toda a sua freguesia, que comparece religiosamente na hora marcada, já lhe conhecem a pontualidade, a fim de se poder dar o seguimento devido, ao trabalho do dia.
A rádio, é outro dos adereços que compõem o cenário, Renascença, que é o que se ouve de sempre, e irá continuar a ouvir-se, que já nem existem rádios como esta, de cariz sério e Português, onde se fala do que importa, e não cá de ninharias que não interessam nem ao menino jesus. O som vem directo de um aparelho creme, também ele de outros tempos, com um botão redondo que liga e controla o volume, e outro onde se encontra a banda desejada, sempre no sossego, pelo motivo que atrás já expliquei.

Temo-lhe a extinção. Nem sequer a frequento, por razões por demais óbvias, para que necessite especifica-las. Ainda assim faz parte da cidade. Nunca mais vai ser a mesma, sem a barbearia do Sr Chico.

Memórias

Amontoam-se aqui ao meu lado, como se macacos fossem, nem bem sei quantos são. Julgo que uns dez, no mínimo, pelo barulho que fazem. Todos os dias de manha, iniciam o abandono da habitação por fases, um ou dois de cada vez, envergando o tradicional penico na cabeça e o avental com um porco cor de rosa. Desde a chegada, em meados de Outubro, até Dezembro, ou até talvez Janeiro, que nem bem me lembro, palmilham a cidade neste propósito, faça chuva ou sol, seja dia de semana, feriado ou santo. Julgo que o regime implantado seja pior do que o militar, ou pelo menos assim parece, que só isso justifica tamanha aderência por parte da população estudantil, que se vê sujeita a uma doutrina cabal.
Nem me incomodam em demasia, para além de algum barulho, vindo directamente da porta ao lado. Melhor, alegram-me o espírito, pelas doces memórias. Sou uma boa vizinha, chamemos-lhe assim.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Fátima

Era sempre manhã bem cedo, quando se levantava da cama. No café da aldeia esperavam-na os fregueses da ordem, que ansiavam a bica ao amanhecer, para que os olhos se abrissem, ou o bagaço amargo e forte, para matar o bicho que lhes roía o estômago. Nem era com agrado que assim começava o seu dia, mas era esta a sina que Deus lhe deu, e é da opinião que há que estimá-la, existem sinas piores do que a sua. Existem sempre sinas piores do que a nossa.
Mal despachava as gentes da manhã, dedicava-se à cozinha com um devoção como não há, sendo que das mãos dela nasciam verdadeiros pitéus, desde a cozinha à doçaria, que ambas lhe despertam os sentidos, e como tal, a elas se entregava em igual modo, não mais a uma do que a outra. Pastéis de bacalhau, pasteis de massa tenra, rissóis, pezinhos de coentrada, pipis, eram algumas das suas especialidades, que servia ao petisco na hora do lanche, de quem muito já trabalhou, e para quem a cerveja só se queria bem acompanhada. Os doces, nem tinham tanta procura, mas ainda assim, e dado o prazer que lhe dava, ver nascer de suas mãos, autenticas delícias, todos os dias fazia pelo menos uma, das quais destaca como preferida, que temos sempre uma preferência que mais nos agrada, o Molotof, que ela adornava de caramelo por dentro e por fora, cobria com um molho de ovos doce como o mel, e salpicava de amêndoas lascadas, que compunham o dito para a vista, porque ela também come, olá se não come.
Quase sempre saia, mas se tal não acontecia, a sobra era levada para casa, para os seus filhos, sempre desejosos do fracasso da venda, a fim de poderem lambuzar-se naquelas nuvens acastanhadas, leves e saborosas.

Percalços na vida muito lhe levaram, sendo que já não tem o marido, que a maltratava sem dó nem piedade, nem o seu café, que muito a massacrava, mas muito lhe dava em prazer do trabalho, que de resto, julgo nem bem conhecer quem o faça com maior afeição, julgo até poder dizer, que a dedicação que lhe atribui, hoje em outros locais, a salvam do que na envolta a ataca, é o jogo da vida, todos temos um, tira daqui, põe dali, e assim nos compensamos e seguimos caminho.
Admiro-lhe, acima de tudo, a alma que põe nas coisas que faz. Gosto de gente que faz coisas com alma. Vê-se pouco por aí.

Hoje por lá

Diz que hoje cometo um delito. A convite, atenção, nada de mea culpa.

http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/2350110.html

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Sr João

João veste uma camisola de lã vermelha, calças de fazenda castanha e boina, sempre gostei de ver Homens de boina, embora neste caso concreto, faça apenas e só parte da descrição, sem se me apresentar com qualquer efeito estético particular. Tem um bigode, mesclado a branco e cinza, exageradamente farfalhudo, que coça a todo o instante, ora com uma mão, ora com a outra, dando até impressão a quem olha, que o dito deva estar minado de pequenos bichinhos invisíveis aos olhos, mas perceptíveis ao portador, dado a instabilidade que reina, naquela bigodaça tamanha.
Georgette é a sua Senhora, uma mulher gorda e airosa que lhe vigia os passos desde o amanhecer até ao sol se pôr no horizonte, hora a que por norma o mestre regressa a casa, do dia de trabalho. Tem fama de boa esposa, que lhe prepara a janta, lhe zela a roupa, lhe corta as unhas dos pés e lhe lava a bacia de fazer a barba, que João já lá perde de fronte tempo considerável no aparo do bigode, sendo que de muito lhe vale a disponibilidade de sua Senhora, que a esse serviço se dispõe, como se de uma obrigação conjugal precisa se tratasse, quando ele tem perfeita consciência, que em nada assim é, e que as obrigações maritais passam por outros préstimos, não tão levados ao exagero no que toca aos cuidados, foi um abençoado por Deus, diz.
O controlo, desconfiado e afincado de Dona Georgette, que lhe ronda a lavoura, o persegue nos biscates diários, e o espreita quando joga dominó ao Domingo no café da Dona Zéza, nem o incomodam por demais, sendo que tudo isto lhe aceita com calma e tranquilidade. Prefere-a assim, mulher desconfiada e dedicada, do que a soltura, e o consequente desleixo.
É um felizardo o Sr. João.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Lost

Francelina tem oitenta e muitos e uma vida cheia. De filhos, de netos, de alegrias e desventuras, enfim, uma vida. Quis o destino que se perdesse por dentro, de si mesma, se é que me explico, a idade, traz estas coisas. Dirão os entendidos, que é a morte das células, das ligações entre si, que uma vez mortas, mortas estão, que não mais se restabelecem, deixando quem nela sucumbe, num mundo vazio, por cheio que tenha sido em tempos.
Julgo poder falar aqui em injustiça, se é que me é permitido tal abuso, de ousar baptizar os desígnios de Deus ou outro que por cá mande, com nomes fabricados por nós, humanos, para denominar actos deploráveis. Ainda assim, permitido ou não que me seja, existem matérias nas quais me concedo ao abuso, e esta será por certo uma delas. A recta final da vida é por si só difícil de ultrapassar. A solidão, a doença física e a incapacidade que muitas vezes se instala, já me parece a mim dose suficiente para que mais nada surja, mas assim não acontece, para infelicidade de muitos. A cada dia, mais surgem síndromes demenciais, um pesadelo que conheço de perto e que me deixa em mãos, pessoas que não se conhecem.
Na sequência lógica das coisas, se é que o termo lógico tem aqui cabimento, não se conhecem a si, para no seguimento não conhecerem os filhos, os netos, não saberem de quem as circunda, que um dia pode ser bom, no outro pode ser mau, num dia assume-se como protector, no outro como um perfeito desconhecido. Nos olhos destas gentes, encontro um vazio difícil de explicar, e quase impossível de imaginar, na sua real dimensão. Um não sei onde pertenço, que me assusta a mim, mais do que uma doença física, pela dor da perca. Nem deverá existir nenhuma maior, do que a de nós mesmos.

A Dona Francelina acabou de sair. Eu acabei de explicar-lhe quem sou, onde está e porquê. Saiu em paz. Amanha, provavelmente, volta para nova explicação.

Partes de nós

Ainda me assustam os números apresentados no que refere à doença mental, com especial incidência nas perturbações da ansiedade e da depressão. Nem propriamente pelo facto do número em si, relevante, é um facto. Mas pela falta de acompanhamento adequado, como se a doença mental nem fosse digna do nome, quando esta se assume, nas devidas proporções, completamente incapacitante. A resposta do sistema de saúde a problemas físicos, concretos e inolvidáveis, pode ser fraca, morosa, mas existe. Na doença mental o processo é mais delicado. No encaminhamento deste tipo de doentes para o Serviço Nacional de Saúde, deparamos-nos com um conjunto de dificuldades sérias, que começam na burocracia do processo até ao tempo que demora uma primeira consulta, parecendo ninguém perceber, que a procura efectiva de um técnico por parte do doente, já surge, pela especificidade da situação, tarde. A posterior espera por um acompanhamento mais efectivo, pode levar meses, o que se traduz num período demasiado longo, para quem já está no limite.
No seguimento, consegue-se um acompanhamento esporádico, nada sequencial, e muitas das vezes, com uma terapêutica centrada única e exclusivamente em fármacos, umas vezes úteis, outras vezes dispensáveis ou insuficientes.
E assim se simulam curas, se mascaram problemas, e se fecham os olhos ao ser humano enquanto todo, erro crasso a que ainda assistimos hoje, no decorrer do séc XXI, como se determinadas partes de nós, não fossem realmente nossas, e fossem pertença estranha, despreocupada por parte de quem de direito. Falo na mente, que a ela me dedico, mas temos outras. Para o nosso Sistema Nacional de Saúde, também não temos dentes, por exemplo.
Parece-me bem.

domingo, 14 de novembro de 2010

Vidas



Nem sendo hábito, a vida dos outros entrou cá em casa. Obrigada minha querida. E que a tua corra de feição. A começar já hoje.

Desconfortos

Chovia na cidade.
Na esplanada das bombas de gasolina, diversos Homens encontram-se sentados em amena cavaqueira, debaixo de um toldo encardido e frágil, mas forte o suficiente para guarda-los da chuva. É o que chega.
No centro, correm de bar em bar adolescentes aos gritos miudinhos, como se a cada pingo de chuva, alguma pequena dor se lhes cravejasse no corpo. Nem ligam e prosseguem, alternando os gritinhos com um riso patetico, próprio da idade.
Chego a casa. A chuva grossa e teimosa, encharca-me o cabelo e pinga-me os óculos de massa preta, o que me deixa a visão turva e embaciada. Apesar disso, consigo vê-los. Aninhados debaixo de uma varanda, com um carapuço na cabeça, estão sentados dois jovens, muito encostados um no outro, enquanto se beijavam efusivamente, no frio da noite, tal e qual se encontrassem no calor de um sofá.
As condições adversas são isso mesmo, adversas. Até ao ponto em que alguém as desafia, e se acomoda a elas por vontade, já que elas não dão de si. Também eu já fui assim. Hoje, com pena minha, já não sou.

sábado, 13 de novembro de 2010

O certo pelo incerto

Existem trocas tramadas. Umas que se efectivam, ou seja, trocas na verdadeira acepção da palavra, outras que se pensam, se avaliam e se analisam, mas que nunca chegam a ter verdadeiro cabimento dentro do termo, porque nunca se lá chega. Esse aquém, pode dever-se a inúmeros factores, que poderá ir de uma escolha motivada por afectos entre as opções, ou ainda por um deixar andar o certo, pelo receio do incerto, facto que por si só, não permite mudança nenhuma.
Debruço-me sobre este tema, especialmente no que toca à minha profissão, pelo que já por diversas vezes me senti tentada a um avanço incerto, carregado de dúvidas e incertezas, em detrimento do certo que até hoje construí, que me satisfaz, é certo, mas que não me chega.
Chego a irritar-me, por oportunidades que me escapam porque tenho esta, a certa, que me impede de a largar em tempos magros, para me lançar em algo que pode correr bem ou pode correr mal. No seguimento, chego em momentos extremos, a invejar quem nada tem a perder, e que se vale desses novos caminhos frágeis, que podem vir a ser nada como podem vir a ser tudo.
Ainda não sei, se o que tenho a perder, me vai segurar para sempre. Sei que a cada dia, mais julgo que não.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

...

E eis que ele chegou perto de mim.

Utopias

Tenho para mim que deveria estar preparada para tudo, numa pretensão que me inunda especialmente, quando me sinto aquém. Não julguem que pretendia deter toda a sapiência do mundo, tamanha impossibilidade seria, como de resto, impossível é também qualquer plenitude de saber, nem que seja apenas e só, numa precisa área específica e concreta, onde se pode ser douto, mas nunca perfeito.
Ainda assim ambicionava, como ambiciono também outras realidades irrealizáveis, antagónica perfeição esta. A isso me permito, ou melhor, a isso tenho direito, que neste mundo onde me encontro, se há excelência que detecto é a nossa mente, pela permissão que nos dá, de construir realidades imagináveis, impossíveis ou não nem importa, importa que cá dentro, podemos viver delas quase tanto como das outras, das efectivas, se é que me explico.
Neste contexto, e na impotência que por vezes me alcança, clandestina mas certeira, como só ela sabe ser, julgo que tudo seria mais fácil se quem exerce o que exerce, o fizesse em cheio, de forma plena e inteira. Poderia aqui entrar a vocação, que me parece condição sine qua non para que a sapiência surgisse efectiva, e para que o erudito emanasse, na verdadeira acepção da palavra. E assim sendo o médico tudo curava, o padre tudo perdoava, o professor tudo ensinava e o curandeiro tudo benzia. Poderíamos continuar no raciocínio, numa enumeração infinita de todos os ofícios e mais um, mas julgo que tal nem seja preciso, que todos já devem ter entendido, onde pretendia chegar. No rol das ditas, das profissões exercidas, das tarefas cumpridas, surgiria obviamente a minha, que poderia até situar-se no fim da lista, que nem queria prioridades desmedidas. Queria apenas a possibilidade de tudo entender e tudo resolver, nem para a mim me valorizar, mas para nos outros atenuar.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Incompreensões tamanhas

Gertrudes não gosta do banho. Desde sempre que se lavava todos os dias com um paninho molhado, embebido em cheirinho doce, retirado do frasquinho especialmente escolhido para o efeito. Passava por onde considerava necessário, dando privilégio às mãos, à cara, com forte incidência na boca, aos sovacos e às partes intimas. Isso chegava-lhe, sendo que o banho surgia apenas e só uma vez por semana, aos Domingos, dia da missa, altura em que enchia o regador dependurado na casinha exterior à habitação, de água morna, e metia a touca na cabeça, para que fosse possível passar-se naquela água corrente, aparada num alguidar de plástico cor de rosa, que posteriormente despejava nos vasos das flores, sardinheiras, maioritariamente.
A cabeça era lavada no salão da Dona Rosa, uma vez por mês, e era seca com rolinhos pequenos, que a deixavam com uns caracóis miúdos e tesos, que ela enchia de uma laca suficientemente poderosa para lhe manter o penteado intacto ou quase até à próxima ida. Durante a noite, segurava-o com uma rede que atava na nuca, que protegia o cabelo da almofada.
Não sabe cá o que são comichões ou outras aflições que agora lhe apregoam poder ganhar. Nem bem percebe o motivo pelo qual no fim de velha, necessita de alterar os seus hábitos higiénicos, mantidos desde sempre, tendo sido até considerada por todos, Mulher zelada e extremamente cuidada. Não lhe agrada de todo o banho diário, debaixo de um chuveiro que corre, quando o seu paninho muito bem lhe chegava, ainda para mais agora, no Inverno, sujeita até a apanhar mal respiratório, vindo de alguma ponta de ar mais atrevida. Não entende sequer, o que faz toda a gente querer lavar-lhe o cabelo amiúde, muito para além da vez mensal a que ainda se permite na cabeleireira, por ora uma outra, que se desloca ao Lar onde habita, também ela profissional capaz e competente.
Modernices.

Quentes e boas e batatas doces


Talvez tenham corrido já uns 25 anos. Na casa de primeiro andar da minha avó, Dona Maria Carmina, o terraço estendia-se muito além da habitação, pelo que eu passava tempos consideráveis a brincar em cima de mantas, enquanto cozinhava papas de massa derretida em água, que depois dava ao gato, que nunca comia, vá lá saber-se porquê. Neste dia, especificamente neste dia, embora também em muitos outros de data incerta, passava o Homem da castanha e da batata doce, ouvido por mim, sempre em primeiro plano, dado encontrar-me invariavelmente no terraço.
Ambas eram transportadas em dois cestos de verga compridos, presos numa Macal Minarelli, que calcorreava vagarosa as estradas esburacadas, tal o peso da carga, distribuída entre castanha, batata, assador, e condutor, espaçoso, por sinal. A buzina vinha encastrada no veículo, e consistia numa bola de borracha vermelha, que ele apertava com força, fazendo sair da corneta anexa, um som estridente, que avisava da sua chegada. Num ápice, no largo junto ao Café Central, juntavam-se as velhas e as novas, de avental florido ou bata de botões, munidas de um saco de pano bordado com atilhos por cima, a fim de transportarem o pitéu. Minha avó comprava invariavelmente um cartuxo de castanhas assadas na hora, e um kilo de batatas doces, enquanto eu pulava na sua volta, aguardando que logo ali me fosse dada uma batata docinha como o mel.

Hoje, a castanha sabe-me igual ou quase, especialmente as que compro na rua. A batata, confesso, muitas vezes não me satisfaz. Apanho-a por norma mirrada e estreita nas bancas do supermercado. Valem-me as incursões da minha mãe pela praça, e pela banca da Dona Luciana, recheada de batatas gordas e grandes, que cortamos à fatia, e comemos acompanhadas de agua pé doce. Prefiro-as à castanha. Desde sempre.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Entendimentos

Por vezes chocam-me capas de revistas.
Não suporto o sensacionalismo, principalmente quando anexado ao sofrimento.
Não entendo quem faz, nem entendo quem lê. Paciência, urge-me aceitar que não posso entender tudo.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Dos tempos internos, e de como o cansaço pode chegar tarde...

Ele cansou-se da guerra. Enquanto tal nem aconteceu, dividiu o seu tempo entre cá, a Bósnia e outras missões, onde esteve como voluntário, a fim de conseguir amealhar frutos para o sustento da família, com a maior preocupação centrada no filho, um pequeno ser com uma deficiência motora considerável, que necessita de apoios diversos, alguns de despesa avultada. Nem bem se lembra de alguma noite se deitar, sem ensopar de lágrimas o travesseiro, numas lágrimas teimosas e grossas, que lhe saiam dos olhos contra a sua vontade, enquanto na garganta se apertava um nó tamanho, que só desaparecia já no sono. Noites havia, em que o tal nem chegava, que nem bem bastava as distâncias que a vida lhe dava, para também agora o sono se lhe fugir a contragosto, que ao menos enquanto dormia, esquecia, ou melhor ainda, sonhava, que se encontrava cá, no seu Pais, em sua casa, com a sua mulher e o seu menino. Nesses dias, em que o sono teimava, o nó não saía. Cansou-se, tal como disse. Cansou-se porque nem queria a distância, nem queria a saudade, coisa que nem sabe bem como definir. Cansou-se das lágrimas na almofada que lhe secavam no rosto enquanto o nó se sumia, cansou-se do medo, que nem era bem da guerra, que de resto, nem perigo sério correu, mas de que o seu menino nem estivesse bem. Cansou-se e julgou prudente o regresso, ainda que com as consequências esperadas de uma maior contenção, para que nada faltasse. Voltou.
Nem bem correu como o desejado, que a sorte, é qualquer coisa que a vida nem lhe reservou, vá lá saber-se porquê, anda mal distribuída a maldita, que a uns bafeja a todo o instante, a outros, dá-lhe um sopro magro e somítico de longe a longe, tão fraco e insignificante, que mal se vê.
Ela já se tinha cansado antes, de um cansaço denso e sem fim. Nem mais lhe apeteceu partilhar aquela guerra por ele escolhida e vivida de perto, e por ela aceite e vivida ao longe.
Hoje vê o seu menino com frequência, dá-lhe o apoio da presença. As lágrimas e o nó continuam cá, as noites em claro idem.
Num mundo perfeito, o cansaço teria surgido a par e passo.

Delícias



Ali, na foto, mora um diospiro com mel, noz e canela. Na minha barriga mora um igual.

Naturezas, poderes e injustiças terrenas...

Eles passeiam de mão dada, nem por isso revelam grande aparato, sendo que o ar é sereno, os sorrisos calmos, as passadas certas. Ele diz dela, que chegou tarde, mas que felizmente chegou. Até ela, trilhou demasiados caminhos, arrastou-se em desilusões desmedidas, que sempre foi sedento de companhia, e nem bem lhe aprazia a solidão eterna, amontoada noites e noites a fio, dias e dias, minutos, enfim, todos os tempos do mundo. Não deixa de me rematar, que caminharia tudo outra vez, só para dela se abeirar de novo, com a tamanha certeza, de que era ela e nenhuma outra, que nestes caminhos da vida, a dúvida e a ignorância eterna, conseguem ser motivos mais do que suficientes para se ir escolhendo mal, como se nos pudéssemos dar ao luxo do constante engano. Julgo ser prudente aqui admitirmos, que o auto conhecimento é uma obrigação que nos devemos, a nós mesmo, que tanto esquecemos.
A duração ou não no tempo, de tudo o que os une, nem me parece preocupa-los, que já muito viveram por cá, para se prenderem com tal pormenor. Ainda assim, julgo acreditarem nela com uma força tremenda.

Ela sorri enquanto o ouve e eu sorrio também, numa partilha com alguém que já nem via há muito, e que agora encontro em estado de deleite, pelo que o cenário, resume-se a duas mulheres embevecidas, uma com motivo, a outra nem tanto, e um único homem, que nos consegue instalar tal estado de espírito.
À parte da história de amor, nem sei se me compraz dissertar sobre isto. Pelo que por ora fiquemos assim.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Maternidade, ou de como por vezes, eles também são pais...

Já nem a via há muito, tendo inclusive até, esquecido a sua existência, que me acontecem amiúde estas situações, de esquecer gentes durante tempos infinitos, até que por obra do acaso, ou de qualquer uma outra circunstância, de novo as encontro e relembro tudo outra vez. Julgo que esta capacidade se encontra extremamente ligada com a nossa memória selectiva, sendo que esquecemos com frequência o que nem é importante para nós, também de resto, nem nos seria possível guardar na memória activa toda a gente e mais alguém, coisa que mais não nos faria, do que colapsar-nos com excesso de informação, muita dela totalmente desnecessária, pelo que muito louvo esta nossa capacidade de arrumo, de carácter totalmente indispensável.
O ar é o mesmo de há uns sete anos, mais coisa menos coisa, altura em que com ela privei pela última vez, que tínhamos engravidado na mesma altura, parido na mesma altura, ela um pouco antes, e divorciado na mesma altura, tanta coincidência que até parece mentira, mas não é.
A filha dela nasceu antes do tempo, resultante de uma queda em gravidez que lhe desencadeou o parto prematuramente, o que fez com que a pobre criança nascesse pequena de meter dó. As complicações decorrentes, fizeram com que o seu desenvolvimento fosse muito lento, sendo que quando a vi pela primeira vez, assemelhava-se a um qualquer ser estranho, já com feições definidas mas muito pequena, mais pequena do que qualquer outro bebé que por cá vi neste mundo, e que já foram muitos.
No decorrer da separação, a pequena boneca fica com o pai, e a mãe segue caminho, com outro alguém que a fez mais feliz, e que a levou para longe. Um longe que nem muito durou, tendo no entanto sido suficiente para que outra criança lhe nascesse, esta de termo, segundo hoje me confidenciou, que num ápice fez questão de me colocar ao corrente de todos os episódios significativos de sua vida, como se deles eu necessitasse. Valeu-me em muito o despacho da analista, que me tirou da sala de espera com alguma rapidez, e me poupou ao infortúnio de um discurso que dispensava totalmente, e do qual ainda ouvi um bom terço.
Nenhuma delas a acompanha, que de resto, a competência enquanto mãe, nem é qualidade que a assista, palavras dela, e para além disso, sabes como é, diz-me, tenho de trabalhar, e o tempo escasseia. Eles também são pais.

Sorrio-lhe. Nem sequer a condeno, que de resto, nem me cabe fazê-lo. Também não a invejo.

Sossegos

Olha-me nos olhos e abre-me os dele até ao infinito, é assim o meu filho. Aconchego-lhe a roupa da cama, dou-lhe um beijo de boa noite, faço-lhe uma festa na cabeça desgrenhada.
Sabes mãe, amanhã não vou ter medo, porque tu estas lá comigo.
Ele não sabe, mas eu estou sempre com ele. Ele também ainda não sabe, mas não consigo livra-lo de tudo. Eu, já sei que não existe ninguém no mundo que nos poupe a isto ou aquilo, que a nós pertença, mas nem me apetece que ele descubra isso já. Fica para um dia.
Tenho tantas saudades do sossego sentido nos braços da minha mãe. Ela ainda mos dá. Eu, é que já não sossego.

domingo, 7 de novembro de 2010

Cuidados paliativos


Os cuidados paliativos, abordados por quem deles percebe, é sempre uma leitura agradável. Hoje tive esse privilégio.

Já por cá trouxe a morte diversas vezes, que de resto, de nada nos vale fugir-lhe, que nunca a venceremos, embora por vezes, julgo ser possivel esquecermos esse facto. Juntarmos-nos a ela, poderá também nem ser caminho prudente, que nos acarta sentimentos de tristeza, amargura, ou outros de carácter nefasto, em que a nossa debilidade se assume em pleno, pelo que o que nos apraz, é o escape da ignorância, que nos vale em tanto e aqui também.
Ainda assim, e quando a proximidade da dita se impõe, de nada nos serve a recusa, pelo que seria importante, e falando aqui especificamente de casos de doença prolongada, uma séria mudança de mentalidades, procedimentos e atitudes, porque é um facto, que nos dias de hoje, muitos doentes morrem mal.
Já vi muito ligado a ela, e talvez por conhece-la de perto, me choquem os panoramas actuais, que surgem amargos, débeis, como se nos resquícios da vida, nos perdêssemos enquanto pessoas, e por motivo de doença, deixássemos de merecer o respeito que nos é devido sempre, até ao final, terrível involução humana, que nem precisamos de recuar muito, para chegarmos ao tempo em que a morte surgia em casa, na grande maioria das vezes, num aconchego misto de dor e calor, pela ausência de meios que atenuassem o sofrimento. Hoje temos os meios, falta-nos o calor, grosseiramente falando, que muito embora o discurso possa até surgir tendencioso, bem sei que outrora, nos encontrávamos longe do desejável, e que o único realce positivo, é o que atrás refiro. Ainda assim, parece-me uma referência importante, dado ser uma perca considerável.
Morrer num hospital uma morte já esperada, num ambiente muitas das vezes vazio de calor humano, no meio de duas cortinas brancas, ainda que sem dor, está longe do razoável.

O avanço dos cuidados paliativos, e da formação de profissionais certificados e vocacionados para darem a mão e a ciência a quem deles necessita, é um caminho que peca apenas por tardio. O objectivo, é dotar o sistema de capacidades efectivas para a emergência de cuidadores técnicos credenciados, que orientem o cuidador directo, familiar, na maioria das vezes, a fim de possibilitar uma existência digna e isenta de dor a quem parte, diminuindo as hospitalizações consideravelmente.
Aguardo-o com expectativa, que julgo seriamente, ser uma das grandes lacunas da nossa saúde actual.

Fraquezas

E das grandes...

sábado, 6 de novembro de 2010

Dos extremos

Olho sua Santidade e repugnam-me os luxos circundantes, pela total discrepância com os ditos que pregam todos os dias. Gostaria de sentir-me mais branda, de tais exageros nem me perturbarem, que assim sendo, poderia alienar o espírito sem reservas, enquanto escutava os valores transmitidos, alusivos à peregrinação, à cultura e à família.
Quer queiramos, quer não queiramos, quer acreditemos num ou noutro credo, é quase universal a necessidade humana da crença, do apego, a uma ou outra Doutrina que nos reja, que nos suporte, que nos segure, senão sempre, pelo menos em horas de maior aflição, que assim somos em tudo, não constituindo a religião uma excepção, pelo que poderemos aqui utilizar muito a propósito, o célebre provérbio, Só te lembras de Santa Bárbara, quando faz trovões.
Há muito que me debruço sobre a capacidade que têm de monopolizar massas, de criar fanatismos, de levar a um estado limite e inumano gerações inteiras de gente alienada, que por nem encontrar na terra orientação e caminho, busca na religião o sal dos dias, a força impelente, as metas pelas quais se luta. Julgo por vezes, que o arroubamento de espírito é de tal ordem, que as próprias incoerências cometidas, por Papas, Presbíteros, Sacerdotes ou outros Pontífices, lhes escapam, tal e qual escapam amiúde, os defeitos de um amor a quem muito o ama, terrível fraqueza nos assola, seja num caso, seja no outro.
Num ápice concluo, que muitas das vezes, a religião mais não faz do que centrar-nos o espírito em questões estouvadas, que vão desde a pregação da pobreza por quem se circunda do luxo, ao desleixo da protecção na sexualidade, às guerras e destruição em massa, subjugadas à determinação religiosa.
Ainda assim, e como curiosa de mentes, admito-lhe a utilidade, e ainda as virtudes, que de resto, e a ser dispensável, há muito se teria sumido, dando lugar a qualquer outra crença globalizada, que nos permitisse a existência, sem nos transportar aos terrenos perigosos, do extremismo e da ilusão.

Amor

Por vezes falo nele, que a palavra por si só já é tão linda, e muito embora possa nem parecer, a ela me rendo, que mais fazer, perante tamanha singularidade?
Nem bem me permito pensá-la a fundo, numa completa contradição à minha natureza, que a fazê-lo, ficarei por certo tomada de assalto, que a dita, já me tratou bem como já me tratou mal, como se fosse merecedora de tal trato, eu, que quando lhe chego, a ela, à palavra divina, nem deixo lugar a crivos, que sou clara como água. Julgo até por vezes, ser esta clareza desmedida a causadora de desconforto, que a ser em excesso, poderá acarretar estas vicissitudes, que talvez assuste um mundo gerido e vivido em constructos fictícios ou não, nem bem se sabe ao certo, onde um começa, onde outro termina.
Nem me irei aqui permitir a excessos de devaneio, ousando dizer, por exemplo, que é palavra plausível de acartar crise ou outro sinónimo denominador do risco, que na Humanidade, ainda que necessitando de caos, sempre descobrimos a ordem, e nem por isso seria sensato, julgar em perigo tamanho sentimento.
Julgo-nos porém numa era, em que se encontra em estado subtil, se assim lhe pudermos chamar, um estado embrenhado numa série de interesses que não os reais, subjugado a grandezas que não as devidas, inundado em riscos, se não de fim, impossível, bem sei, pelo menos de ausência de plenitude. Se não sempre, que a terminar assim, de tão grosseira maneira, poderei até despoletar sentimentos de revolta a quem dele vive a bom viver, pelo menos muito. Ou pelo menos, muito em mim.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Promessas

Ora que ainda tentei a sapatilha, a fim de responder favoravelmente a uma adorável sugestão. Não me foi possível, dado ter encontrado esta maravilha, que cairia que nem uma luva num número considerável de Outfits.

Volatilidade

E diz-me então que se procura, embora em tempos, tenha julgado encontrar-se para todo o sempre, erro crasso, que tal nem se afigura uma possibilidade credível.
Isto das procuras do Eu, nem sempre é fácil, que procurar outros, é tarefa muito menos delicada, sendo que se busca isto aqui, aquilo ali, e no cômputo geral, conseguimos que quem nos circunda seja o reflexo de nós, embora distribuído por bocadinhos, aos quais recorremos de acordo com a situação. Cá dentro, no nosso Eu, afiguram-se outras dificuldades, que deveremos reunir dentro de nós mesmos, um conjunto satisfatório, sob pena de nos desorganizarmos para além do desejável.
De resto, e começo por aí mesmo, os encontros nem são estáticos, efectivos e eternos, que evoluímos, ou não fôramos gente. O que somos hoje, por certo não seremos amanhã, que a sermos, encontrar-nos-íamos emergidos numa estagnação desmedida, que mais não faria do que pôr em questão todos os princípios que nos regem, que nos encontramos subjugados à evolução, em todos os sentidos entenda-se, seja enquanto pessoas, seja enquanto espécie.
Daí existirem tarefas inacabadas, ou seja, que são nossas para sempre, que muito embora vamos concluindo devagarinho, quase chegando a julgar termos atingido o limite, quando a felicidade se instala, logo descobrimos, passadas umas horas, uns dias, quiçá uns anos, que a realidade de há pouco já se encontra em mudança, sendo que algo de novo emerge, despoletado por tudo ou por nada em concreto, apenas e só porque é essa a nossa natureza.
Compreendo o carácter volátil dos sentimentos que se experimentam nestas mudanças ferozes a que nos sujeitamos em prol do nosso crescimento. O ponto de partida deverá ser a aceitação desse estado mutante, que ao invés de nos assustar, deverá dar-nos alento, que a pararmos um pouco e a pensarmos de forma coerente, iremos perceber que, a sermos estáticos, entraríamos num buraco sem fundo, numa espiral continua e inalterável, que nada nos daria enquanto gente.

O problema seguinte que me abordam, e no qual por ora me debruço, é a aceitação de novas realidades, por vezes díspares dos caminhos percorridos até então, ocorrência que pode exigir de nós, mais do que o que nos é possível dar.
Falemos nisso depois.

A propósito, ando maçadora. Secante, ou assim. Prometo ainda hoje um post de sapatos.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Penas

Nem por isso gosto de injustiças, que a senti-las na pele, constituem motivo mais do que suficiente para me acender sentimentos menos bons, nem propriamente de vingança ou algo do género, mas de tristeza ou desilusão. Nesses momentos de tristeza, desilusão, o que forem, que o baptismo, nem bem importa para a real compreensão da essência das coisas, chego a desejar internamente, que algo de força divina, a vida, o futuro, mais uma vez, pouco importa o nome, tratem de ensinar e encaminhar quem age em dissonância com o respeito e a deferência que devemos ao outro, que se há dividas eternas das quais nunca damos cabo, essa, é talvez a maior delas.
Em determinadas situações porém, numa amálgama surgida vá lá saber-se por ordem de quem, deparo-me com lições de carga efectiva por demais pesada, mesmo para quem muito errou, mesmo para quem muito falhou. Nem me cabe a mim analisar consequências de actos, julgar castigos, distribuir destinos, que felizmente, essa incumbência está-nos ausente, em concordância com as nossas reais capacidades, que cabendo a Humanos tão nobre tarefa, encontrar-nos-íamos possivelmente, emergidos num caos incontrolável, de vontades e ambições desmedidas, subjugadas a pulsões internas implacáveis, por demais perigosas para vigorarem assim, sem limite.
Não consigo porém deixar de sentir que determinadas fatalidades, ainda que podendo assumi-las como lições da vida a quem tanto dela abusou, são de um carácter por demais cominador, por demais penoso, por demais nefasto.
E pergunto, numa pergunta para a qual nem espero resposta, que julgo nem bem haver quem ma saiba dar, será preciso tanto?

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Vozes de comando

Cláudia era uma Mulher forte e decidida, numa fortaleza que estendia, sem querer, é bem que se diga, ao seu exterior, sendo que apresentava um aspecto possante e rude, com raro sorriso, que a surgir, vinha em tom amarelado. Cheguei a julgar, que lhe fugia a medo, à sua completa revelia, que mal aparecia, e ainda a graça ou algo poderoso que lho tivesse arrancado, estava em evidência , e já o pobre se esvaia, mais depressa do que o que tinha surgido, dando lugar ao ar carrancudo e sério de sempre. Usava óculos pretos em massa, que lhe carregavam o ar pesado, juntamente com as camisolas de lã grossa que teimava em envergar parte considerável do ano, quer fosse Outono, Inverno ou Primavera, deixando-as apenas no Verão, por completa impossibilidade de ligação.
Na sua volta encontrei alguns tipos de pessoas, tipos distintos, vários, muitos mais do que julguei existirem no inicio.
O respeito exacerbado surgia por parte de alguns, sendo que nestes, o receio da sua voz de comando era tal, que nunca ousavam abrir boca contra alguma ordem dada por sua Excelência, e se o faziam, que o considero possível, tal a ferocidade das ordens que dava, umas vezes acertadas, outras vezes não, mas nas quais não recuava nunca, que de resto, nem se permitia a si própria tal contradição, faziam-no no devido recado, onde ninguém os ouvisse, nem que fosse uma pobre mosca que passasse, podia a dita ganhar voz, e fazer chegar a tão temível figura, as manifestações de revolta, coisa que jamais poderia acontecer, sob pena de represálias severas.
Existiam os que a respeitavam mas refilavam baixinho nas suas costas, coisa que nem nunca descobri se tinha consciência ou não, que a tê-la, fingia que a não tinha, acto típico de quem muito manda sem precisão nas ordens que dá, que a enfrentar o corajoso refilão, necessitaria de sustentar o que mandou, coisa que nem sempre lhe seria fácil, sendo que o mais prudente, era a ignorância, fosse ela real ou não.
Surgiam ainda os que a confrontavam, poucos, muito poucos assim se diga, que a fazerem-no, necessitavam de sustento interno forte, que sua Excelência, tinha o apoio patronal, pelo que quem a afrontava, mais cedo ou mais tarde, corria sérios riscos de ser dispensado.
E por último, entre mais umas ou outras pequenas variações nas vertentes que atrás defino, surgiam os que por norma não contestavam, tinham algum, ou muito medo, obedeciam no que podiam, numa vã tentativa de agradar, mas que acima de tudo, lhe ambicionavam os traços de carácter, coisa que se tornava visível, mal lhes era permitido pisar em alguém, de nível inferior. Nem bem sei se o que ambicionavam, era a posição de confiança atingida, coisa que nem bem me parece, se a vontade de sentirem a sensação que idealizavam dentro de si próprios, e que Dona Cláudia deveria sentir amiúde, ou seja, a autoridade poderosa, causadora de medo, por onde passava.
Não gosto de autoridades, mas julgo gostar ainda menos, dos fracos que a ambicionam.
Embora no fundo, no fundo, fracos sejam ambos.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Capacidades

Nem sou Mulher de puxar cabelos e gritar desalmadamente, leva-me contigo.
Mas sou capaz de cantar até que a voz me doa.

Presenças


Há determinadas presenças que me intrigam, que quando passam na rua me fazem desviar o olhar, numa manifestação de profunda admiração. Nem ligo tal facto à beleza, ou a outra qualquer característica de fácil apreensão, e de carácter unicamente externo, que a pessoa possa apresentar. Prende-se, por norma, com ares de tranquilidade e calma, numa perseguição continua que lhes faço, pelo que as capto à distância, que sempre me chamam, quer eu passe perto, quer eu passe longe, chegando a haver vezes, em que julgo pressenti-las, imediatamente antes de as ver realmente, tal o agrado que me fazem sentir.
Uma das minhas vizinhas, por exemplo, mulher de um Médico falecido há muito, detém a serenidade estampada, num rosto simples e limpo. Desde sempre veste cores claras, quer seja Inverno, quer seja Verão, que variam entre o beije e os cinzas discretos, conjugados perfeitamente com o seu tom de cabelo e de pele. O sorriso, surge sereno e tranquilo, sempre assim o apresenta, numa aceitação ao que a vida lhe trouxe, que de tanto se ver por fora, duvido que não exista por dentro. Neste contexto, poderá quem me lê dizer, e muito bem, que nas coisas do interior e do exterior, as conclusões são delicadas, que o ar que se transmite para fora, poderá nem estar em consonância com o que vai lá dentro, facto com o qual não posso deixar de concordar, que em muitos casos a concordância será mesmo nenhuma, sendo que eu mesma, chego a ser a prova provada disso. Mas friso de novo, que nem me parece tratar-se aqui de tal situação, dado a carga de energia positiva que de si emana, desde sempre, na sua desgraça, e ainda hoje, após a perca, o arrumo e o renascimento.
Admiro também o sapateiro, já na casa dos oitenta, de boina ao avesso e bengala na mão, que ainda remenda sapatos todos os dias da semana, assim haja função, exceptuando aos Domingos, dia de descanso, e que contrasta em tudo com o velho que se encontra sentado mesmo a seu lado na paragem do autocarro, que lhes serve de albergue aos Santos Domingos, da chuva, do sol e do frio.
O tal, o do lado, só me transmite em seus olhos, revolta e amargura com o que a vida lhe trouxe. Coisa que até, é bem que se diga, a vida trouxe em muito pior ao sapateiro, que trilhou negros caminhos, ao lado de um filho que já o deixou há muito, que enveredou em tramas de uma figa, daquelas onde quem entra, dificilmente já sai, julgo explicar-me. Ainda assim, o sorriso nem por isso o abandona, e consegue ainda, no meio da sua velhice, recheada de nefastos percalços, afagar o outro, de vida mais fácil, mas de alma revolta, nem é caso único, todos sabemos disso.

Dois meros exemplos, dos muitos que encontro, de gente que na minha envolta, me causa uma admiração e cobiça, pecado mortal que assumo aqui sem qualquer reserva ou pudor, até porque, e costumo dizê-lo amiúde, a cobiça que lhes sinto, nem me faria roubar-lhes o que quer que seja, despoleta-me sim, uma vontade gigantesca de lhes aprender a ginástica interna, que de tão hábil, os faz emanar uma paz de espírito invejável.

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