quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Fátima

Era sempre manhã bem cedo, quando se levantava da cama. No café da aldeia esperavam-na os fregueses da ordem, que ansiavam a bica ao amanhecer, para que os olhos se abrissem, ou o bagaço amargo e forte, para matar o bicho que lhes roía o estômago. Nem era com agrado que assim começava o seu dia, mas era esta a sina que Deus lhe deu, e é da opinião que há que estimá-la, existem sinas piores do que a sua. Existem sempre sinas piores do que a nossa.
Mal despachava as gentes da manhã, dedicava-se à cozinha com um devoção como não há, sendo que das mãos dela nasciam verdadeiros pitéus, desde a cozinha à doçaria, que ambas lhe despertam os sentidos, e como tal, a elas se entregava em igual modo, não mais a uma do que a outra. Pastéis de bacalhau, pasteis de massa tenra, rissóis, pezinhos de coentrada, pipis, eram algumas das suas especialidades, que servia ao petisco na hora do lanche, de quem muito já trabalhou, e para quem a cerveja só se queria bem acompanhada. Os doces, nem tinham tanta procura, mas ainda assim, e dado o prazer que lhe dava, ver nascer de suas mãos, autenticas delícias, todos os dias fazia pelo menos uma, das quais destaca como preferida, que temos sempre uma preferência que mais nos agrada, o Molotof, que ela adornava de caramelo por dentro e por fora, cobria com um molho de ovos doce como o mel, e salpicava de amêndoas lascadas, que compunham o dito para a vista, porque ela também come, olá se não come.
Quase sempre saia, mas se tal não acontecia, a sobra era levada para casa, para os seus filhos, sempre desejosos do fracasso da venda, a fim de poderem lambuzar-se naquelas nuvens acastanhadas, leves e saborosas.

Percalços na vida muito lhe levaram, sendo que já não tem o marido, que a maltratava sem dó nem piedade, nem o seu café, que muito a massacrava, mas muito lhe dava em prazer do trabalho, que de resto, julgo nem bem conhecer quem o faça com maior afeição, julgo até poder dizer, que a dedicação que lhe atribui, hoje em outros locais, a salvam do que na envolta a ataca, é o jogo da vida, todos temos um, tira daqui, põe dali, e assim nos compensamos e seguimos caminho.
Admiro-lhe, acima de tudo, a alma que põe nas coisas que faz. Gosto de gente que faz coisas com alma. Vê-se pouco por aí.

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