quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

saúde e lágrimas

Escuto sempre com muita atenção o que me dizem os olhos dos meus antepassados. Concentro-me em meia dúzia de almas espelhadas pelo tempo, impressas em papel velho e a preto e branco, debruado a um bordado muito irregular (como a vida). Há sempre alguns que me olham directamente como a Mona Lisa nos olha nas paredes do Louvre, apontados à nossa menina do olho, que não é mais nem menos do que tudo o que trazemos dentro e carregamos no corpo que nos acolhe a seiva. Gosto muito dos olhos de Israel, são sempre ligeiramente abertos, verdes cor de azeitona, enquadrados num perfil que se dizia ruim, mas do qual eu não conheço a ruindade. Aprecio os olhos de Albertina, a senhora dona de si, que tarde percebeu que não era dona de coisa alguma, nem do seu nariz, nem da sua vida, nem muito menos da sua morte ( ninguém é dono senão do nada). Dizia-se dela a luta, conheci-lhe bem melhor o abandono. Carmina, a mais bela de todos, a mais branca, a mais delicada, tinha uns olhos pequenos e amendoados, e essa olha-me todos os dias, sem falhar um, no papelinho em homenagem à vida que guardo desde o dia da sua morte. As festas trazem-mos sempre, muito embora já não haja Natal há mesa com todos,  nem lugar ou espaço para se falar deles, as defesas da maioria não permite que nos encontremos frente a frente. Todos apreciam mais a fuga no Bolo Rei, no frito mal amassado ( ninguém amassa como Albertina), no cabrito mal assado ( ninguém assa como Carmina), no vinho mal escolhido ( ninguém escolhe vinho como Israel). Não raras vezes encontro ainda os olhos de Rosalina, mais pretos do que o breu. Neles aprendi a cozinhar em lenha, a cozer bucho de cabra, a entrançar cabelos, a matar coelhos com um murro no lombo e a roubar ovos às galinhas, para o pão de ló. Nas festas sinto que me pertencem só a mim, num egoísmo que se fez ao hábito de guardar cá dentro o que poucos querem ouvir. Hoje, e para encabeçar a época, deparei-me com todos eles em casa próxima, sem esperar, uma espécie de encontro combinado pelo divino, sem comida, sem mesa, mas com olhos a olhar para mim. Estavam a sorrir-me, emoldurados em álbuns muito velhinhos, descolorados, e mais uma vez pude chorá-los sem que ninguém me visse chorar. Não tenho vergonha das lágrimas que verto, são um sal que me pertence e que solto sempre que me apetecer, regulam-me a alma, lavam-me o rosto, devolvem-me o chão. Mas não gosto de embaraçar o mundo, que teima em viver longe de tudo quanto dói. Como se a morte fosse um espinho que mata. 

Neste novo ano desejo-vos a serenidade de viverem com tudo o que a vida vos tem trazido. E que chorem e riam à medida do que vos for preciso. Contrariamente ao que possam julgar, podemos ser mais felizes se chorarmos mais ( Frase de autoria identificada, de uma amiga muito querida).

E saúde a todos, também.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

demónios

O mundo teima em despersonalizar os seus habitantes, e eu zango-me cada vez mais com esta insistência. Ser pessoa não tem de ser numa norma explicita e impessoal, onde a guerra com o interior se assume como um batalha que vencemos, ou então morremos por dentro. E morrer por dentro todos os dias um bocadinho deve ser uma morte dura de se morrer. Morre-se devagarinho na escola, quando precisamos de aprender devagar e nos ensinam depressa. Morre-se devagarinho nos intervalos, quando nos monitorizam os passos e nos escolhem pela roupa que vestimos, e morremos muito mais se somos feios, se temos mau gosto ou pouco dinheiro, se não mudamos de mochila muitas vezes, ou se o casaco tem um buraco no cotovelo. Morremos devagarinho quando nos obrigam a ler o que não gostamos e nos levam para longe das histórias de amor que se escondem debaixo do travesseiro, mas sob as quais as aulas não nos permitem discorrer. Morremos devagarinho quando nos impõem ideais, quando nos vendem religiões, quando nos cortam sonhos, acrescentam metas, ou limitam o coração. Morremos devagarinho quando temos de esconder muitas dores por vergonha de as chorar, quando engolimos zangas que picam na garganta e no estômago, quando somos obrigados a vender a alma a quem insiste que a vida não é só nossa, com base em alicerces estúpidos e francamente menores. Morremos devagarinho quando nos sujeitam a guerras que não são nossas, mas que nos agarram pelos colarinhos da camisa e nos apertam o pescoço, com mais força do que uma forca de corda grossa e apertada. Gritar de uma vez pode ser que assuste quem insiste nesta glória. Pode ser que esta gente morra de medo, que cale a voz, que caia para o lado e deixe o sangue dos outros escorrer por onde lhe apetecer. Esforço-me tanto para que gritem, que por vezes dou o meu grito a quem o queira. Nessas alturas fico sempre muito rouca, sobro pouco para mim. Dormir devolve-se quase sempre a voz, mas no dia seguinte acordo invariavelmente um bocadinho mais cansada do mundo. A despersonalização é o demónio do século. Começa no grito do parto e acaba no fecho do caixão.

(Despersonalize-se tudo, despersonalize-se o mar e o céu, despersonalize-se a água e o ar, despersonalize-se a justiça e a lei, despersonalize-se a nuvem que passa, despersonalize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto despersonalizar, despersonalizem-se os estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas despersonalizadas, mediante concurso nacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, despersonalize-se também a puta que os pariu a todos."

Com o maior respeito do mundo pelo grande José Saramago, que em bons tempos escreveu sobre a privatização, in Cadernos de Lanzarote, Diário III, Pág. 148)


segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

do saber de coisa nenhuma

Decidi mudar de método quando o anterior não me chegava. Fui percebendo devagarinho que as teorias que abordam o comportamento são todas elas limitativas, o que uma explica a outra esquece, o que numa se encaixa, na outra fica de parte, o que numa se trabalha, na outra nem sequer se torna alvo de consideração. Debrucei-me sobre todas, ao longo dos anos. Desde as mais comportamentais às mais construtivistas, passando pelas sistémicas, as psicanalíticas, as relacionais. Fui espreitando de perto cada uma delas, aprofundando as que me faziam mais sentido, salpicando a minha acção com o que cada uma me dava de mais produtivo, mas só mesmo quando cheguei a um modelo mais integrativo encontrei respostas satisfatórias. Porém descobri que aprender aos quarenta, não é igual a aprender aos vinte, e só depois de muito ruminar o assunto descobri o porquê. Aos vinte tudo se aloja e se entranha na voz, o cérebro desenrola à velocidade de um falcão apressado, as palavras escoam no ritmo certo, nem lento nem rápido, numa harmonia que assusta pela fluidez da perfeição. Faltavam-me anos de prática, mas a minha mestria cobria isso tudo, com muitíssima arte e uma desenvoltura impossível de conter. Hoje, possuo o que o terreno e os anos nos dão. Tenho milhares de horas de execução prática, centenas de histórias ouvidas, compêndios inteiros de vidas que me passaram pelas mãos e pelo corpo, numa interacção regular e proactiva; possuo milhões de defesas desmontadas, muitas tarefas relacionais executadas, zangas expressas em muitos murros, e tristezas choradas em toneladas de lencinhos de papel mentolados, os meus preferidos de todos os lenços. Mas na verdade sinto cada vez mais que sei muito pouco, e que começar de novo numa vocação mais global, é um objectivo demasiado para mim. Sinto-me hoje, todos os dias, francamente mediana. Sinto-me, à medida que descubro mais, cada vez mais aprendiz. Sei menos, muito menos, do que quando saí dos bancos da faculdade, profundamente capacitada e direccionada para o que a teoria sabiamente me deu. A teoria é francamente boa para nos fazer crer que sabemos. A prática, quando exercida com vontade e coração, devolve-nos a única realidade possível: não saberemos nunca rigorosamente nada. 

sábado, 10 de dezembro de 2016

anel

Há dias em que canso os passos que apresso avenida afora, a caminho do destino. Não há palavras que saiam a direito, voz que me possibilite o entendimento, gesto que favoreça o encontro, e sossego que me alimente o espírito. Penso sempre muito devagar quando isto acontece, e temo ser aqui o cerne da questão. Fosse eu de enxurrada, como Rosalinda, e não haveria decisão que me morresse nas mãos. Fosse eu conformada, como Baptista, e não haveria acontecimento que me suscitasse preocupação. Fosse eu egoísta, como Alice, e não haveria peso que me encorpasse a consciência. Assim, fraca e em cuidados, como Carmina, vou ganhando umas rugas nos cantos dos olhos, uns tremelicos nas pontas dos dedos, uma dor no estômago por fraqueza, e uma soltura por nervos acesos, regulados intensamente por pernas inquietas, fracas, demasiados fracas para me conter. Nestes dias não há mesinhas que me dêem sono à noite. Não existem cafés que me acordem ao dia, sacudidelas que me espevitem no arranque, afagos que me apaguem no descanso. À noite fico mais integrada, o escuro ajuda-me a esconder de mim os meus medos mais antigos, e nunca os tento procurar. Fecho os olhos muito tempo, enrolo-me no escuro do quarto, encaracolo-me em posição de feto e imagino-os fechadinhos a sete chaves no cofre das jóias, dentro de uma caixinha com um laço perfumado, almofadados a veludo bordeaux, quentinhos e adormecidos por muitos e muitos anos. Há dias em que na manhã seguinte, nem ouso ir buscar um anel.

(Fica ainda usualmente a faltar-me o relógio, que dorme sempre ao lado do depósito das jóias. Sem anéis, vou andando. Atrasada é que não aprecio, sendo este o maior custo da minha defesa.)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

frágil

A fragilidade é um termo um tanto ou quanto imutável. Acaba por alcançar-me sempre que pode, não espera que se faça tarde, não bate à porta antes de entrar depressa, não espera um convite para se sentar à mesa comigo enquanto degusto um prato de qualquer coisa quente. Lembro-me muito bem de lhe ter tomado a consciência. De a ter sentido a levar-me de assalto, a alojar-se com comodidades de rainha, a enraizar-se com umas raízes daquelas que não morrem com o tempo, com o vento ou com a morte. Lembro-me muito bem de nesse dia ter deixado de ser sossegada. De ter acordado para sempre, de ter ganho ganas de levar à frente tudo quanto se colocasse no meu caminho. Mas era frágil. Pedi tanto ao meu Deus que se despachasse depressa, e que fizesse crescer o meu filho com muita saúde, para que eu pudesse sentir um qualquer descanso outra vez. Uma vontade egoísta, que felizmente não pude cumprir, porque a natureza, a única dona disto tudo, acalma-se sempre na hora certa, e permitiu-me saborear o nascimento, segurar o crescimento, amparar a vida. Sempre frágil, mas sempre ali. Hoje olho para ele e vejo que cresceu um bocadinho. Dou-lhe muito abaixo do pescoço, em altura e em grandeza, mas na realidade sinto-me mais frágil do que nunca. Não há cá sentir de dever cumprido, não há o sossego precisado, não há, nem de perto nem de longe, a robustez que eu esperava do tempo. Hoje precisava que ele, o tempo, voltasse para trás um bocadinho. Precisava de embalar o meu bebé no meu colo, com ele inteiro nos meus braços. Precisava de o ver dormir com autorização moral de lhe vigiar o sono, de ver se respirava, de o cheirar muitas vezes seguidas em cada minuto do tempo. A fragilidade é um conceito estranho e controverso desde que se é mãe de um filho. Todas as escolhas são as maiores do mundo, todos os medos são os mais gigantes, todos os crescimentos são um passo enorme para a vossa vitória, e um outro para a nossa derrota. E a cada dia que passa, sinto uma fragilidade maior. 

(O que passamos mora somente na minha e na nossa memória. Aí pertences-me para sempre, mas mesmo assim não sei se me chega.)

domingo, 27 de novembro de 2016

tratem as pessoas com cuidado, porque elas são feitas de algodão...

As pessoas são construções de um mundo social. Crescem continuadamente, absorvem, procuram, desencontram, esperam, fogem, pensam, constroem, vivem e morrem ( mas por vezes a pele fica sentida). Têm uma resistência de uma rocha, sobrevivem à morte dos outros, às doenças, às desgraças e aos medos, aos infortúnios, aos desesperos, aos abandonos e às solidões (muito embora possam ficar escritas no sangue). As pessoas são um corpo que evoluí com uma mente lá dentro, que segue o caminho evolutivo do resto do mundo, mesmo quando a vontade é estancar o caminho e ficar para sempre na idade em que o colo aparece sem se pedir ( há idades onde já não sabemos o que é ter colo). São um percurso cansativo e imparável, sem espaço para intervalos de abastecimento, sem bermas para encostar e comer umas laranjas doces, sem garagem que abrigue a casca do frio e da chuva e de tudo o que pode vir. As pessoas são um corpo ao qual é permitido aprender a viver cá neste sítio, com o particular desafio de sobreviver (uma coisa sempre muito difícil de aprender). São um invólucro onde nada acontece por acaso, com uma resistência tremenda, sempre muito enganadora. É fácil acreditar que conseguimos tudo, que caminhamos sempre em frente, que nada nos mata a não ser a morte. É-nos ensinado que somos fortes, que engolimos espinhas com pão, que eliminamos as dores com comprimidos, que damos conta da velhice com a caridade. Mas acho que muitas pessoas se esquecem que somos frágeis e quebradiços. O caminho até ali é este, e nós vamos andando, é bem certo, mas a forma original pode ser engolida pela realidade. E o que esta cospe é variado, pode ir desde um formato quase original a um fio magro e comprido, praticamente inquebrável pela força da concentração, mas muito invisível pela finura do esconderijo. E quando ninguém nos vê, pode ser bom ou pode ser mau, depende; não propriamente só de nós, mas dos olhos que olham por nós (tratem as pessoas com cuidado, porque elas são feitas de algodão).

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

divindades

O perdão sério é uma das maiores artes do mundo. Em conversa científica dissertou-se o assunto, com uma devoção missiva de imperativa conclusão. Escrutinou-se o trauma, analisou-se os fundamentos, acolheu-se a dor e deu-se significado ao impacto. O impacto. O impacto é sempre um dado de análise importantíssimo de compreender, ou não fora o principal suspeito no caso do sofredor. Mas dizia eu que o perdão é uma arte. Dissemos em conjunto, a dada altura, médicos e não médicos, psicos, e psiquis. Tudo se prende com a dor que não passará. Com a tristeza que não morrerá, com o alfinete espetado no sítio onde a alma pica. É lá, nesse exacto local, que o danado mora. O perdão, sim, o perdão. Possível apenas depois do reconhecimento de que aquela dor nos pertence porque foi sentida, ficará connosco, e possivelmente nada a matará. Antes disso, antes de a vivermos até ao infinito do osso, antes de reconhecermos que é nossa, que magoa, mas que mesmo assim a queremos para a vida, não poderemos nunca falar de perdão. Poderemos eventualmente falar de tentativa de compreensão. Da boca para fora, num registo meramente cognitivo, longe, muito longe do essencial. 

(O perdão pertence a um território quase divino.) 

domingo, 13 de novembro de 2016

cão

A morte bate sempre na porta errada. Engana-se no caminho, tenho ideia, não sei se se orienta por proximidades, por ruas, por qualidades, se por um jeito de percorrer a curva mais bonita da cidade. Hoje levou um animal que não deveria morrer. Porque os animais também são escolhidos ao acaso não sei de que história, e dá vontade de perguntar o porquê de ser assim. Há muito tempo que falo com eles com a mesma devoção com que falo com humanos. Há muito que os encaro nos olhos e os escuto, com muito mais interesse do que oiço determinadas pessoas, ando cansada de palavras vazias, ao mesmo tempo que preciso muito de silêncios sinceros e genuínos. Não me lembro de há quanto tempo me rondava a porta, mas sei que me recebeu muitas vezes de braços abertos. Não sei ao certo quantas histórias lhe contei, quantas festas lhe dei, quantas vezes apanhei o meu vizinho velho a fazer-lhe a mais deliciosa das companhias. Ambos solitários, ambos donos um do outro, donos de momentos felizes, também. Os cães, tal como as pessoas, não deveriam morrer sem avisar primeiro. Sem que tivéssemos tempo de lhes dizermos tudo o que quiséssemos dizer, chorar juntos toda a falta que nos vão fazer, idealizar todo o futuro acabado pela eternidade. Não deveriam morrer enquanto nos fizessem falta, enquanto nos fosse preciso aquele olhar companheiro, infalível, infindável, sem termos mais um dia de espera com uma cauda a abanar, um sorriso conhecido apenas por quem os entende, um biscoito engolido à pressa, à espera do outro a seguir. Ando em guerra com a morte há muito, muito tempo, e assim, perdida pela força da realidade, choro o cão sem lhe ter dito o quão importante ele foi para mim, na esperança dele ter percebido que me deu mais do que muita gente, em certos dias difíceis. 

Os cães não são bem animais, são pessoas boas disfarçadas, muito inteligentes e sensíveis. Duas coisas que na espécie humana, é difícil de encontrar num só corpo.

domingo, 6 de novembro de 2016

queda em grande

Não sei ao certo o número de letras preciso para escrever a palavra, e por isso procuro indiscriminadamente. Junto a A com a B, acompanho com um C, retiro um til, acrescento um traço, leio de trás para a frente e depois na ordem certa, e não chego a lado nenhum. Afinal a função foi servida, estava lá quando foi preciso (embora não fosse o desejo maior). O desejo maior adormeceu na beira de um caminho cansado, fiel aos princípios do respeito, erro fatal. Bem vistas as coisas, já me ensinaram há muito, agarra com a garra do fel e faz-te à vida, não há forma melhor de sobreviver (venha quem vier, morra quem morrer). Não consegui aprender a tempo, e sendo assim não estive à altura da incoerência, da malvadeza, do despeito e do desrespeito, da vingança e da incorrecção. As falinhas bonitas sempre atingiram o céu, oiço dizer (as vozes discretas sucumbem). A dedicação do tempo e do amor, parecem menores (a imposição certeira, pontual e desenxabida, serve manjares). A vida é para quem sabe viver nela e para quem se empoleira no fio da navalha, à altura de um instante maior. Quem fica cá por baixo onde pouco se vê, ainda que com colo, esconde-se num novelo que se enrola ao pescoço, prende-se num pé, desenrola-se por uma linha e cai, morta no chão. Quem cair depois, cai bem (e de figura feita). Esteve à altura do acontecimento, leva o oiro, canta-se o Hino e pendura-se a medalha ao pescoço (minha Rainha). Aqui sim, venha quem vier, morra quem morrer (serás sempre tu que venceste. E serás sempre tu que falhaste.).

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

horas de lazer

Descobri há pouco tempo que há efeitos curativos idênticos aos do chocolate no filme o Sexo e a Cidade. Apanhei-o por acaso numa tarde de Domingo, nem sei se em directo se em gravação, mas a verdade é que naquele exacto momento valeu-me muito mais do que qualquer obra de arte cinematográfica digna de Óscar da academia, de actores de renome, de histórias de elevado enredo, qualidade, preceito e sabedoria, não existiria Woody Allen que o batesse no desafio. A futilidade é qualquer coisa de valor inquestionável quando acordo com o corpo cheio de espinhos. Sou pessoa para o ver e o rever, observar cada pormenor de cada acessório, de todos os relacionamentos falhados e conseguidos, de todos os cabelos encaracolados, de todos os vestidos e de todos os sapatos, malas ou laços, calças ou colares. Sou senhora para dizer para mim mesma que um dia vou gastar uma fortuna nuns Manolo, que um ano destes construo um closet no qual serei muito feliz, e que haverá um Inverno frio no qual conseguirei vestir um blazer masculino aos quadrados com uma saia lápis às flores, e umas botas de salto muito alto. Contas bem feitas, e visto até ao fim, acho que o que me encanta é a possibilidade de ver uma noiva com quarenta anos de idade e linda de morrer, com um pássaro morto na cabeça, cheinho de plumas azuis. A parte do abandono no altar não conta, salto sempre, dramas da vida real não são chamados para as horas mortas, dignas do maior lazer. 

Já arrisco qualquer coisa com os lenços. Já roubei em tempos casacos ao meu pai. Já me adornei com colares de pérolas e botas Doctor Martens, exactamente ao mesmo tempo. Nunca me casei com um Vivienne Westwood, mas quem sabe um dia encontro um na feira da ladra, trago-o para casa, ajeito-o ao meu corpo e visto-o, numa manhã de Domingo. Jamais mataria um pássaro para colocar na cabeça, mas era pessoa para arriscar um travessão antigo a segurar-me o cabelo por detrás da orelha. Não é que eu goste particularmente de me ver, mas há gestos insistentes de alguém, que merecem respeito. Talvez nasçam sempre de uma tentativa, sempre infrutífera, de me domar a rebeldia (dos caracóis). 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Lá em cima está o tiroliroliro, cá em baixo está o tiroliroló

Não acredito em castigos divinos. Não concebo caminhos dados à priori, nem emendas à posteriori, sou uma pessoa capaz de duvidar das horas marcadas, dos destinos traçados, de tudo quanto me remeta para uma premonição exagerada, soa-me a impossível, eleva-me à incredulidade, deixa-me sempre no limbo do inexplicável. Mas sou terrena o suficiente para acreditar que usualmente o mal gera o mal, e o bem gera o bem. Acredito piamente no poder da acção como criadora de outras acções. Sou totalmente subjugada ao rigor da retribuição e à força da sensatez, tanto quanto à consequência da malvadez, da supremacia e do desrespeito. Não conheço outros caminhos para além destes, pelo que considero que o que existir em paralelo serão ironias do destino, uma simples excepção a confirmar a regra. Tudo o resto é a harmonia do mundo, a cantar na direcção certa:

Lá em cima está o tiroliroliro, cá em baixo está o tiroliroló, 
Lá em cima está o tiroliroliro, cá em baixo está o tiroliroló, 
Juntaram-se os dois à esquina, a tocar a concertina, a dançar o solídó,
Juntaram-se os dois à esquina, a tocar a concertina, a dançar o solídó,

(Cantar com ritmo e acompanhado por gestos, de preferência ao espelho, e até estarem a rir de vós próprios. Reconhecer a  humildade da existência dá saúde e faz crescer, muito muito.) 

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

modas

Já morri de susto inúmeras vezes. O malvado alcança-me sempre à traição, espera-me numa curva da estrada, numa porta fechada, num caminho vazio, numa sala cheia de gente. Acontece sempre exactamente a mesma coisa. Olha para mim sem eu estar à espera, eu sustenho a respiração, viro-me devagar, encolho-me, finjo que desapareço, tremo por dentro, mais abanão, menos sacudidela, e começa sempre pelo coração, o músculo mais fraco do meu corpo. O pobre mirra sempre num segundo. Sinto-o a encolher dentro da minha carne, a mirrar como se morresse de fome, a retorcer -se devagarinho, deve ser para que o sinta desde o quilo até ao grama, peso que ostenta, grandioso, no final da morte. Ainda outro dia tentei fintar-lhe o caminho. Armei-me de Eu e respirei muito fundo, levei o ar às entranhas e fiz-lhe peito, nariz, queixo, tudo erguido em direcção aos céus, mais rija do que um pão de muitos dias. De nada me valeu, morri tal e qual, mas com a brilhante diferença de ninguém ter percebido. À medida que andava devagar senti ainda mais fortemente o rasgar da glória, o corpo a ficar, os batimentos a parar, ao mesmo tempo que eu caminhava altiva, pelo corredor. A meio do caminho encontrei alguém que não percebeu que eu tinha acabado de morrer de susto. Fiquei muito feliz, já posso morrer de susto sem que ninguém perceba que por momentos não pertenço a este mundo. Seria incómodo tanto choro a toda a hora. Um gasto de lenços, muitos olhos negros, dias de faltas por nojo, e a vida, definitivamente,  não está para modas. É muito melhor morrer sem ninguém ver. Seja de susto, de medo, de ódio ou de amor. 

domingo, 9 de outubro de 2016

figos doces

Rosalina, se fosse viva, faria hoje centro e dez anos. Não percebo muito bem porque morreu tão cedo, deveria ter uns noventa, coisa pouca, as pessoas boas deveriam viver até ao infinito. Tinha uma pele engelhada com um cheiro doce. Vestia de preto e prata, com manga e meia, fizesse chuva, fizesse sol, fizesse neve, ardesse-lhe a vida, a paciência, o ciúme da vizinha do lado, sempre a piscar o olho a Francisco, um velhote de boina erudita. Havia uma figueira no quintal que servia para ela se esconder enquanto espreitava a conquista dele. E que servia para eu subir enquanto os figos não desciam ao meu alcance, nunca tive paciência para esperar sentada. Um dia caí dela abaixo. Coloquei um pé em falso, escorreguei pelos troncos, fiquei presa numas folhas que me ampararam a queda, mas esfolei um pouco o joelho, exactamente ao mesmo tempo que Rosalina esfolou todo o coração. O coração dela era bondoso. Rezava por toda a gente, cozinhava para todos os filhos, lavava a roupa de todos os homens e mulheres da família, no rio gelado, numa pedra dura. Os corações bondosos deveriam ser poupados. Os joelhos teimosos, nem tanto. Os primeiros são o mérito da existência, os segundos a pressa do desassossego. 

(Os figos querem-se doces, os amores querem-se verdadeiros. Os maridos de boina são perigosos. As mulheres que amam vivem de amor, mesmo quando o coração sangra.)

sábado, 24 de setembro de 2016

comer

Há alguém que de momento me atenta o espaço de escrita. Mune-se de impropérios ofensivos, esquece-se da regra da sensatez e da convivência, deixa-se exceder por um ódio gigantesco e ataca, sem dó nem piedade, nem qualquer ponta de jeito, nem nenhuma réstia de elegância. Uma vergonha, quem se presta a tão minguada empreitada. Por cá, respira-se igual. Desembrulha-se e deita-se fora o que não presta, chega a sorrir-se perante a fúria desconchavada, há ratos a cuspir, baratas a rastejar, bílis a circular em lugar de sangue, chega bem a meter dor, podem acreditar no que vos digo. Meia volta volver, é que era. Mas compreendo. Há vícios que não se matam, e precisões mais fortes do que a fome. É seguir em frente. Aqui também se cospe, mas é aquilo que não se come. 

E continua-se, claro. 

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

em casa de ferreiro, espeto de pau...

Equilíbrio é um estado emocional básico do ser humano, preciso para que o corpo e a mente funcionem numa sintonia quase perfeita, mais veloz do que uma nave, mais serena do que uma folha que cai lá fora, no outono. Cada um sabe do seu, é pessoal e intransmissível, constrói-se em cada escolha, num ou noutro desafio, nas aprendizagens e nas quedas, nos caminhos que escolhemos ou precisamos de percorrer. Ninguém funciona plenamente em descompensação constante, chega a uma altura em que o corpo cede ou a mente estonteia. Ninguém consegue porém o estado pleno da grandeza, não há estruturas puras na mente, há mudança e há hábitos, há desejos e uniões, solidão e partilha, em doses distribuídas de funcionalidade e simbolismo. Gosto de dar beijos à minha gata, faz parte do meu equilíbrio, por desequilibrado que o acto vos pareça. Gosto de comer cereais enquanto vejo um filme trivial, e de me concentrar horas a fio em leituras consequentes, nenhuma delas efectivamente salutar, na verdadeira acepção da palavra. Saudável deverá ser comer saladinhas de rúcula verde e fruta, e ler coisas proveitosas que nos ensinem a caminhar sempre a direito, com regras e horas marcadas, a mais terrível de todas as existências: as construídas por alguém, para um outro alguém que nunca serei eu. É esta a magia do que faço, é isto que me encanta no trabalho que executo nos dias. Procuro sem cessar o que cada um pode querer para se equilibrar, sem comparações, sem avaliações, sem censura, sem réguas que me tentem dizer onde mora o normal e onde cabe o patológico. Quando saio à porta para fora e viro gente outra vez, fico meio zonza, um tanto ou quanto abananada, ligeiramente desequilibrada, profundamente pensativa, e sempre muito desengonçada. Em casa de ferreiro, espeto de pau. Em casa de padeiro, pão duro. Em casa de contabilista, más contas. Em casa de enfermeiro, feridas ao léu. Em casa... Em casa...

Na minha casa comem-se muitos chocolates, nos dias em que o Outono não chega, quando já se deveria ter instalado. Não aprecio atrasos exagerados, tolero uns minutos devidamente justificados, quando não se tornam repetitivos. Para a semana, antecipo, estarei que nem posso, num arriscado ponto capaz de explodir. Se o sol não se acalmar de uma vez, posso jurar-vos, atiro-lhe com a minha zanga à cara, será uma morte certa. E Santa, que não gosto cá de alaridos. 

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

solitária

Tenho pacientes que, sem saberem, me curam a alma. Olho para eles sempre de baixo para cima, eles é que se julgam precisados, estão redondamente equivocados. Miro-os de muito perto, escuto cada pestanejo, espreito por cada encanto, cresço em cada tremelico. Bem sei, sou uma profissional egoísta que se alimenta da infelicidade alheia, mas não é esse o fundamento, e na verdade esta visão não passa de um humilde reconhecimento. Ainda hoje, por exemplo, só tenho de agradecer à Dona Regina. Viúva há muito, ronda uns setenta mais inteiros que muitos quarenta. Traça-me o perfil dos filhos e dos netos com um rigor de raciocínio que me chega a espantar. Confessa-me uns pecados insignificantes, com uma censura brutal. Espreita-me por entre os óculos à procura de respostas que não tenho, e dá-mas, de bandeja, no minuto exacto da circunstância. Não costuma colocar pés em falso, raramente despe o casaco, fica sempre com a mala no colo, e chora poucas vezes. Lê compulsivamente todos os livros que pode, e nem sempre em papel. Passeia uma vez por semana para fora do retiro, por obrigação, julga que morre menos em vida, se o fizer. Apadrinha cães e gatos, fala com um vizinho que é a única fonte de ligação ao mundo, muitos dias da sua vida. Descobriu há pouco, há muito pouco, um pouco tarde demais, que se enganou, e que afinal não é tão feliz como julgava ser em tempos, quando tudo parecia engrenado numa carruagem. Hoje, e após a terrível descoberta, concluiu que não quer morrer tão cedo, e que gostava de cá andar por muitos e bons anos. A comer latinhas de atum, que cozinhar não é lá com ela, a passear umas vezes por ano, a descobrir as novas tecnologias e a percorrer livros sem fim, pelo início, pelo fim, mais rápida do que um avião, mais lenta do que uma tartaruga, mais ardilosa do que uma pulga. Pela parte que me toca, acho-a mais feliz do que o que ela julga ser, mas posso estar a exagerar. Que gosto muito de a encontrar, para partilhar as boas leituras, é um facto. Não há melhor conselheira no mundo do que uma mulher solitária que goste de ler.  

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

encontros

Que o caminho se faz caminhando todos sabemos, mas antes de lá chegarmos andamos sempre meio perdidos. Recordo-me de ser a garota que entrava para a faculdade, mais ou menos com o ar das que hoje acompanho, cheinha de sonhos maravilhosos, desarrumados e empoleirados em raminhos verdinhos que minavam a minha cabeça de folhinhas e minhoquinhas, todas idas ao engano. Nessa altura a psicologia era uma profissão limpa, onde um livrinho de notas e um lápis pequenino faziam parte do trabalho, à luz de um candeeiro de pé alto, com um peixinho num aquário mesmo ali ao lado, e com uma planta de plástico que parecia muito natural. O tapete era de pêlo fofo, o cadeirão de um conforto que só visto, a janela daria para o Tejo numa Lisboa ao entardecer, por onde entraria o som de gaivotas que dançariam a música dos Deuses. As minhas coleguinhas enfermeiras, tal como eu, também percebiam muito disto tudo. Umas batinhas brancas, uns velhinhos simpáticos e bem-falantes para curar. Uns joelhitos esfolados, umas vacinas nos bracinhos de uns bebés, na loucura uns pontos na testa de algum adolescente desgovernado. As fardas também tinham o seu quê de interessante. Branquinhas e curtinhas, limpinhas e justinhas, adornadas pelo clássico casaco azul escuro, meio aberto no decote, meio preso na calça roliça, a deixar a anca a passear. Enganos, descobri entretanto, traições, é o que demais a vida tem para nos dar. Muito depressa nos consciencializamos que não é nada disto que trata a nobreza de cada uma das profissões, e que o que têm de bonito temos de ser nós a construir, cá dentro, onde mora o coração. Não há cá cadeirões e cenários de delirar até aos anjos, há salinhas de consultório onde se espremem borbulhas do inconsciente, onde se chora a baba e o ranho, onde se cheira a merda e a morte, a dor e a pavor. Não há cá livrinhos, há empatias e olhos nos olhos, taco a taco com a purga da alma, tu cá tu lá com os medos e os horrores. As batinhas brancas das enfermeiras também não são nem limpas nem justas. São largas para permitir ao corpo acudir depressa, quando o sangue insiste em jorrar. Porque muitas vezes não há só picas e pontinhos na testa, há golpes fundos, há corpos dilacerados, mal-cheirosos, sujos, pestilentos, doentes e amarelos, na iminência de deixarem de guardar um ser vivo, porque para além do viver e do sofrer, também há o morrer. Bem vistas as coisas ninguém vai à partida preparado para isto tudo, eu pelo menos não vim. Nunca imaginei no meio da limpeza dos livros científicos, a crueza do que me comeria a seguir, mais depressa do que um gigantesco gole de café quente, que me queimou a garganta até ao estômago, passando devagarinho pelo esófago. Que o caminho se faz caminhando já todos sabemos, mas antes de lá chegarmos andamos sempre meio perdidos, a julgar que estamos encontrados. 

Mas na verdade só depois, na espuma de todos dias, nos perdemos realmente. Aí, plenamente conscientes de que certamente, nunca mais nos encontraremos. 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

cocó de gata

Não paramos muito para pensar nisso, mas a maioria do mundo gira ontem. Gira ontem pela nossa história e gira ontem pela nossa pressa. O meu mundo tem girado especialmente atrasado. Nunca estou na hora h, chego sempre muito depois do minuto exacto, o que surge para fazer já deveria estar feito há muito. Os males da alma que supostamente irei curar estão mais do que consolidados, alicerçados, escondidos e cristalizados por um tempo que insiste em apurar todos os espacinhos do medo, cada canto do rancor, todos os traços da vergonha, a maioria dos rabiscos da tristeza. Por vezes sinto uma gana indómita de mudar de profissão. Cansa-me o bafio embutido nas roupas que vejo a entrar pela porta adentro, o branco dos cabelos que caem nas testas cravejadas de rugas, os tropeços nas pernas coxas e a surdez da sabedoria, que nem sempre sabe tudo quanto quer. Nestas alturas gostava de criar bebés. Gostava de esquecer que o passado é a génese disto tudo, e empenhar-me na criação de qualquer coisa que me faça esquecer a história que já foi um dia. Nunca chego a mudar de ramo. Nunca ouso procurar outras simetrias de encaixe futurista. Acabo por nunca abandonar a figura que se abeira de mim, sem eira nem beira, nem sorte nem fado. Ainda há pouco, por exemplo, ouvi alguém em gritos surdos de meter dó. Um esbracejo insistente, um despejo inconsequente, um irónico pedido abafado, camuflado de fogo de artifício deitado aos céus em noite de festa, um desperdício, tenho a dizer. Deveria pensar assim: daqui vai nascer um dia qualquer coisa menos má do que isto. Mas na verdade só me ocorreu: deves ser mais miserável que o cocó da minha gata. 

Esse ao menos dá-se a cheirar. 

sábado, 10 de setembro de 2016

cultura

Fico sempre perdidinha quando vejo amor em quem passa. Não tem de ser entre pessoas, felizmente não somos os únicos seres que percebem do assunto, e encontro verdadeiras manifestações de afecto entre animais, ou entre estes e pessoas. Nunca me canso de olhar o que transborda dali e olho sempre demoradamente, ainda que a educação me obrigue à regra, e a não mirar muito fixamente tão nobre preparo. Normalmente recorro invariavelmente ao disfarce permitido pelas luzes do verão. Escondo-me por detrás de uns óculos bem escuros que me mostram a claridade, tapo-me por um jornal que não leio e pelo qual espreito de lado, aceno muitas vezes com a cabeça, como se estivesse a dançar, para assim poder espreitar o amor. Nestes dias mais parados fui uma privilegiada destes espectáculos, e perdi-me especialmente em duas ou três situações mais persistentes, mesmo ali ao lado. Não especifico nenhuma, gostei de todas por igual. Nelas encontrei paciência, afecto, abraços e beijos, colo e preocupações, cuidado e pessoas envolvidas, banhos de água de mar, cremes nas costas, chapéus de sol, cadeiras de praia, encontros, desencontros, festas no cabelo, caminhadas, imperfeições e beleza. Vim carregadinha de tudo, e preparadíssima para o rigor do Inverno. Por muito que me queixe do verão, preciso dele para me deparar com a verdadeira felicidade de quem se esquece do tempo, e deixa o mundo acreditar que a guerra é só uma ínfima parte disto tudo. Uma parte grotesca e seguramente enlouquecida. Bem vistas as coisas, basta pensarmos que a nossa primeira manifestação de interacção é de necessidade, mas logo depois vem o afecto e o amor. Só mais tarde, muito mais tarde, surge a zanga e irritabilidade, que muito provavelmente veio em doses enganadas. Pensar assim é um privilégio que sinto quando posso parar e olhar demoradamente o amor. O amor não se deve olhar de relance e não chega senti-lo, deve ser visto como o que realmente move o mundo. Deve ser escutado e apreciado como uma obra de arte, uma espécie de pintura para a qual temos de olhar demoradamente e beber as cores, imaginar os movimentos, contar a história e vivê-la de perto. Estou verdadeiramente enfastiada com a sensação universal da violência que mata o mundo. A violência é mais do que muita, mas a origem do que importa, é quase sempre o amor. É no amor que tudo começa, e é muitas vezes nele que tudo acaba. Olhar à volta e conseguir vê-lo, cada vez mais, é um desafio que faço a mim mesma. Mesmo que fique muito inculta por perder-me nos meandros de cada história, no lugar de ler um jornal. 

( Os jornais, de resto, não se costumam perder com amores. O amor não é notícia, é normalidade...)

sábado, 3 de setembro de 2016

recuos

Faço avanços e recuos todos os dias, vai ficando mais fácil por um lado, muito mais difícil por outro. Dois pontos de análise, só a título de exemplo; lido cada vez melhor com o fim do corpo. Posso chorá-lo, posso amargurar as entranhas, posso sofrer a morte de quem me é querido até ao último respirar de cada dia, mas aceito-o com toda a humildade que a minha existência humana me confere. Mas por outro lado tenho cada vez mais medo do sofrimento, do corpo e da alma. Dói-me até à exaustão do cansaço a dor e a doença, quer ela pouse sobre a forma de uma medição de um corpo, quer ela apareça na subjectividade de um inconsciente enfastiado. Zanga-me, mutila-me, revolta-me, tenho cada vez menos capacidade de aceitar que pode ser preciso sofrer ao limite, para poder existir. Este elástico onde me encontro magoa-me os dedos como uma atiradeira desgovernada, que vai e volta sem parar. Nunca é fácil, nunca há-de ser fácil. Nem mesmo quando julgamos que vamos a chegar a um qualquer lugar de um caminho bom, por termos eventualmente alojado uma pequenina parte da natureza.  

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

realidade

Ainda me espanta a ignorância da vida. A consciência de que a existência humana é um conceito limpo e livre com um caminho simples a percorrer, como se a carne fosse sã, o juízo impune ao tempo, e a pele macia de um fresco eterno, com sabor a jasmim e flores. Ainda há quem me procure por querer trabalhar com velhinhos, por querer acompanhar nas comprinhas, por pretender preparar o medicamento, organizar a casinha,  sentar para uma companhia de dois dedos de conversa, histórias ao adormecer e ao entardecer. O mundo vive tão longe da realidade que me mete dó e me mete medo. O fim do caminho, acreditem, não se parece com uma história de encantar esculpida no rigor de um pincel, numa tela de um pintor romântico. O fim do caminho precisa de sintonia e cuidado com tudo o que o corpo tem de pior. Não há só amenas cavaqueiras de pátio das cantigas, chega a haver mudez completa. Não se resume a passeios à beira do mar, pode não existir movimento. Não se compadece com uma casa bem arrumada e bem cheirosa, pode querer dizer desordem, sujidade, cheiro forte e agressivo, com vómito e fezes, suor e lágrimas. Não se parece com o idílico sonho da ajuda ao próximo só no que dá gosto ao ego, porque o que dá gosto a quem precisa já morreu, já perdeu a luz do mundo, já se esgotou nuns anos do antigamente. Dói-me a ignorância de quem desiste ao primeiro dia, porque pensava que o mundo não é isto. O mundo é isto e muito pior do que isto, é o choque, frente a frente, com a pequenez da humanidade. Há quem tenha medo, aceito, mas ainda assim dói-me a ignorância, que governa grande parte de um mundo com uma péssima consciência, do que somos na realidade: somos um pedaço de carne que apodrece com o tempo, povoado por uma alma; ambos merecem dignidade até ao último suspiro, logo, se não aguentam, não apareçam. 

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

camisas

Trocar de camisa é desabotoar os botões, despi-la pelas mangas, um braço de cada vez, deixá-la cair no chão e muito certamente pisá-la, se calhar em caminho aos tropeções, até que se faça luz na escuridão. Escolhe-se sempre uma nova mais bonitinha, mais inteira, mais imaculada, eventualmente de colarinho levantado e com botão de punho dourado, que nos deixe com aquele perfil impecável, saído da máquina e do ferro. Bom cheiro, bom corte, óptimo ar, et voilá, espalha-se certa magia, uns tais pozinhos de perlimpimpim. 

Manuel trocava de camisa várias vezes por dia. Guarnecia-a com gravata e boina a condizer, e saía pimpão estrada afora, sempre bem adornado. Maria, selecta, ficava a vê-lo pela fresta da porta enquanto ele viajava em velocidade de ponta, rumo à victória. Há pessoas assim, que gostam de mudar de camisa mais frequentemente do que o cheiro do suor pediria, muito mais rápido do que a nódoa do vinho que caiu na curva da barriga, mais depressa do que o vinco que se desenhou tão formosinho, nas costas do banco do café. Necessitam de mudar de camisa à mesma velocidade com que esperam respirar farra e vontade. A camisa mortiça, concluo, deve ser um peso que faz muitíssima vergonha, à vista e ao coração. 

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

para sempre

Maria apareceu-me muito casada. Muito mãe, pouco amada, muito dona de casa, suficientemente velha, pouco sonhadora, muito consciente, consideravelmente sofredora. Precisava de, aos oitenta, saber do amor da sua vida. Aquele que passava todos os dias à sua porta, na altura em que a cortina se abria, ela espreitava, a mãe saia e o gato avisava. Como se a vida proporcionasse os instantes perfeitos da existência, como se as estrelas se unissem para alumiar o caminho, como se as tempestades amainassem para deixar passar o amor, como se as estruturas da terra se alinhassem em posição exacta, para que no instante preciso tudo acontecesse como foi escrito nas linhas secretas do imaginário. O único senão foi a partida dele para muito longe, e a chegada do que viria a ser seu marido. Dá ideia que de repente o mundo conspirou ao contrário, e um qualquer desalinho se instalou na sua existência. Ele deixou de passar na sua porta, ela deixou de espreitar, o gato parou de miar. A vida esqueceu-se de lhe dar instantes perfeitos, muniu-a de desavenças, desamores e afectos menores. As estrelas apagaram-se a meio do caminho, as tempestades cresceram e criaram um dilúvio divino, morreram animais, pessoas, árvores e frutos, bons e maus, sonhos e fé. Desde aí até hoje, sessenta anos passados, não houve magia que revertesse o caminho. Sabe dele de longe a longe. Pergunta a uma e a outra, a esta e àquela, espreita numa ou noutra fresta, mas não mais o encontrou. Nunca percebeu o porque de neste mundo a conspiração ser mortífera, logo após a ter salvado. Eu, humildemente, não lhe reconheço a salvação, a não ser no imaginário. Ela aqui, ele lá, os dois lado a lado, ainda, num lugar que nunca morreu. 

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

super-heróis

No Carnaval de uma escola perto de mim, houve há um tempo uma ideia genial. Mascarar as crianças de super-heróis, e deixar o segredo até ao fim, altura em que os pequenos aparecem todos eles vestidos de bombeiros. No imaginário e na fantasia existe o maravilhoso Super-Homem, o ágil Homem-Aranha, o poderoso Hulk. À volta deles aprendemos a construir uma realidade paralela, elevamos ao exagero as competências humanas inexistentes, selamos compromisso com os sonhos, e vamos mais longe na nossa capacidade simbólica de construir e acreditar. Mas é na vida de todos os dias que aprendemos realmente onde existe a força real. É nas horas difíceis que conhecemos quem nos salva efectivamente. É no terror da desgraça que concebemos que a verdadeira força está na coragem, na bondade e na dedicação de alguns, perante os outros. Um grande bem haja a todos os verdadeiros super-heróis. Estes, entre outros, merecem que todos nós lhe façamos uma vénia, lhe retiremos o nosso chapéu, lhe estendamos o nosso tapete e nos calemos, quando ousamos criticar. 

terça-feira, 9 de agosto de 2016

MCA

Faz neste dia dois anos que um dos meus principais pilares deixou a terra. Calada, magra, doente, mais delicada do que uma flor, ensinou-me que a beleza é possível e que se pode sorrir até ao fim, que podemos amar o imperfeito, e que os velhos, mesmo os muito velhos, nos podem fazer uma falta imensa. Maria Carmina Alves. Com muita pena minha não lhe herdei o nome nem a altivez da pose, mas guardo-lhe parte das mãos no meu corpo. Um pouco menos habilidosas, ligeiramente mais inquietas, definitivamente muito longínquas, da perfeição da doce origem.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

pleno

O amor é talvez a única forma de sermos mais plenos, ao amarmos vivemos mais. Ao amarmos vivemos tudo o que o outro vive, de bom e de mau, de ganhos e de desilusões. Chegamos a antecipar o que nunca acontece e a temer o que felizmente nunca chega, por amor. Amar é existir numa outra vida para além do nosso corpo, é conseguirmos ser felizes com sonhos que não nos pertencem. É ajudar a construí-los e saborear as medalhas, como se nós próprios as tivéssemos ganho. É gritar em sintonia, na zanga da vida. E é ainda chorar, se for preciso, porque a tristeza nos engole no exacto momento em que o outro nos disse que naquele instante está mesmo muito triste. Amar pode não ser salvar, pode não ser curar, pode não ser só sorrir. Amar é viver a vida do outro e a nossa, e criar um sítio onde simbolicamente sabemos que não somos só um. Somos muito mais do que isso, somos mais plenos, somos também a vida de uma outra pessoa. E vivê-mo-la também.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

velha

Não me posso envolver demais nos problemas de quem me procura, dizem-me num jeito atamancado de conselho sábio, vindo de quem não faz a mais pequena ideia de como faço o que faço. Concordo sempre com o que considero ignorante, não por desconsideração, mas porque já perdi a paciência para explicar tudo aquilo que não querem perceber. Posso até insistir de mansinho numa ou noutra nota de lucidez. Posso aguardar dois segundos e esperar que surta efeito, mais ou menos o tempo de um abrir e fechar de olhos, de olhar para o lado e ver a paisagem, de engolir um gole de qualquer coisa que me refresque a alma deste calor infernal. Mas no segundo seguinte, e se percebo a retranca, desisto. Olho sossegadamente e aceno com a cabeça, posso murmurar uns hum hum de incentivo, chego até dizer que sim senhor, depende da intensidade da voz sabedora e do meu grau de tolerância. Hoje, por exemplo, tinha rido num cinema de criançada. Tinha comido pipocas doces e tinha comprado um livro maravilhoso que trouxe num saco fabuloso, pendurado a tiracolo no ombro cansado. Tinha ainda pedalado numa bicicleta ao por do sol, batida na cara pelo vento e pelo pó da terra do campo, ele há lá cenário melhor para me dotar da calma necessária para enfrentar o inimigo? Por conseguinte, acenei sempre com educação. Deixei aquela pessoa a pensar que eu sou uma espécie de cobra, que sacudo a pele gasta mais rápido do que um fósforo a arder na calha da escuridão, é um remédio santo para o sossego das almas, minha e dela, que sou generosa na minha bondade. - É que se não for assim fica velha num instante, profere, orgulhosa, no final. Eu sabia que o conselho era sábio. E sabia ainda que a dita senhora ficaria feliz na condecoração, estive bem, estive muitíssimo bem. De uma outra forma, teria cansado o espírito já fatigado. Teria falado para quem não me quer ouvir, teria por certo ficado irritada na contrariedade da postura excessivamente certa, tinha conotado o meu entardecer num qualquer aborrecimento digno de reflexão contraditória, não mereço esse desfecho. Assim, muito melhor, trouxe uma ideia para escrever e soltar dois dedos de escrita simbólica, uma evasão tão válida como outra qualquer que se preze. No meu caso inofensiva, apaziguadora, relaxante, extremamente eficaz na vida de quem, como eu, ficará velha num instante. Já vejo isso pelo canudo da premonição sábia de ainda há pouco, mas a bem da verdade, e mal virei costas, atirei-o para o chão e espezinhei-o delicadamente, sem ninguém ver. À senhora, que de vez em quando também apresento uns rasgos de burguesa.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

farpas

Há muitas linhas que apago, logo após as escrever. São linhas que carecem de um filtro antes da publicação, que transmitiriam mais de mim do que o caro leitor poderia querer ler. O Correio da Manhã é o jornal de todos, sem filtros, sem edição, onde a notícia acontece na hora de transmissão. É o homem que mata, é o velho que morreu ao abandono no hospital, é a burla, é a violência doméstica, é a escumalha, é a vergonha. Em rigor, é a vida. Os jornais mais cuidados são polidos e utilizam parcimónia. São dotados de palavras escolhidas a dedo, de imagens acauteladas, de criticas sábias, de crónicas eruditas, pouco vadias, muito nobres, uma leitura da realidade. Em rigor, uma tradução da vida. 

Não posso escrever a cru, fico demasiado vulgar. Porém não sou de excessos, claro, e não me encontro no âmbito selecto de nenhum semanário. Só  aprecio a brandura do verniz, liso, brilhante, sem farpas, qualquer coisa parecida com algo que poucos apreciam saber. Um jornal que fica esquecido debaixo do monte, coberto pela actualidade, a ganhar pó velho no chão do quiosque. 

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

água

A meio do dia tenho uns minutos de tempo que gasto a engolir um café. Cai-me na goela ainda fervente e eu encolho-me perante o imprevisto, que me queima as entranhas demasiado apressadas para previsões de segurança. Fico uns minutos a olhar o repuxo artificial que distrai quem espera na salinha, onde a máquina substituiu recentemente a cafetaria. Gosto da discrição da distribuição sem rosto que me permite comer chocolates de criança sem a pressão da foice alheia, perante a qual insistia em alguma explicação: o dia estava cheio e era necessário repor níveis de açúcar; a fome era negra e não apetecia pão; o calor apertava e tinha de ser um gelado, coisas destas, calar vozes, sossegar ânimos, explicar que a fraqueza da carne tem sempre uma justificação. Por ora basta-me inserir a moeda (o que me lembra terrivelmente os jogos de flippers, do tempo do insert coin), e escolher que pecado quero ter: chocolates, bolachas, bebidas doces, cafés, tudo sem explicação ou interacção, um prazer inédito para os que, como eu, não apreciam olhos excessivamente abertos na hora da degustação. Sentei-me uns minutos, muito poucos, os suficientes para apreciar o jovem que entra em cadeira de rodas, incapaz de andar, orientado pela taxista que todos os dias o leva ao destino dos tratamentos. Acenei-lhe, é da casa, tem um ar de cansaço. - E férias, pergunta-me, devo certamente acusar mais do que ele. - Vou entretanto, respondo eu, - E você, ouso perguntar. Acena-me com ar de quem não sabe o que isso é, e segue escada abaixo, numa descida demasiado contrária à vida. Volto a olhar o repuxo e para a água que insiste em não parar e quis gritar com ela. Vai de férias, apeteceu-me dizer-lhe, para com isso, que correria desorientada, sem saíres do lugar. Não disse nada, travei ainda a tempo, poderia bem ser mal interpretada. Comer chocolates sem olhos já é muito bom, gritar é outra cantiga, muito mais difícil de se lá chegar. As palavras não são iguais para toda a gente, vim a descobrir um dia destes. O significado de correria desorientada, por exemplo, pode ir do exagero de um prazer maior, a um cúmulo de um desprazer menor. Uma dança de dois passos ou várias modas onde me podem pisar. Doem-me os pés. Vou esfregá-los com creme e elevá-los num banquinho pequenino de três pernas.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

para que serve uma onda?

Olho demoradamente para o horizonte azul celeste, mas depressa me fixo nos rapazitos que apanham carreirinhas ao entardecer. A água é das que arrefece só os grandes, porque na verdade se entranha nos anos que passam, enquanto que nos mais novos escorre pela pele, tal e qual como a vida que passa e não pesa. Olho fixamente para a liberdade em movimento e penso na imperfeição da natureza. Dizem os entendidos que aprendemos com o tempo e com os livros. Dizem os livros que a experiência torna a existência mais fácil, mais eficaz, mais objectiva e significativamente mais direccionada. Diz a experiência que os velhos são donos de um lugar de sabedores, têm paciência, sabem esperar, conseguem o calo dos trambolhões dados fora de horas, quando não se estava preparado para os receber, nunca na vida queremos ir ao asfalto. Quanto a mim, não há erro maior. São os pequenos, detentores da espontaneidade e da ignorância, os mais sabedores disto tudo. São eles que não sentem o frio da água, o medo da alegria, o crivo da discórdia, e são eles que gritam genuinamente quanto vem lá mais uma, prestes a rebentar e a transportá-los até à areia, o único destino possível antes do cansaço. Eles não sabem, mas roubei-lhes energia até ao tutano dos ossos. Rapei inúmeras gargalhadas, engoli todos os gritos, usurpei a velocidade furiosa nas carreiras e juro-vos, provei o gosto do sal, à distância de muitos anos passados a olhar para aquele mar. Não há voo mais alto do que o da crista de uma onda, tenho a dizer. Pertence à criançada, dezenas delas, em fila, a correrem depressa para a areia da praia, para segundos depois começarem tudo de novo, à espera de uma onda maior. Só pode ser ali que se aprende a sonhar.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

quinta-feira, 14 de julho de 2016

verão

Costumo fartar-me do Verão com a mesma rapidez com que engulo uma cerveja gelada quando o calor aperta. Sinto pouca simpatia por dias de sol aberto e quarenta e picos, tenho muito mais predilecção pelos de Primavera que entretanto tendem a desaparecer, as tardes frescas, as brisas ligeiras, os vinte e poucos, parece que algum diabo engoliu tudo isto e nos deixou entregues ao rigor do frio e do calor. Já as noites mornas são sempre bem vindas. Há esplanadas que nos devolvem alguns anos de vida, quer seja na beira de um mar, perto de um rio, com vista para um regueiro de salmoura, ou no meio de um jardim batido pela noite. Normalmente neste altura do ano começo a penar pelo Outono. Já estou ligeiramente farta de dias longos e de gente demasiado grande, que faz vida da vida alheia, sem perceber que está a ocupar muitíssimo espaço. No Inverno, tudo isto se recata. As pessoas recolhem cedo, faz-se noite antes das seis. Escondem-se em sobretudos compridos, espreitam pela nesga do cachecol e do carapuço, bebem chás calmantes de camomila e andam depressa porque a chuva atiça os passos e não deixa margem para grandes divagações. Até porque a escuridão é inimiga das conversas de vizinhança, das que não interessam nem ao menino Jesus. A miudagem entra cedo na escola, são precisos jantares, banhos e outros trabalhos, roupas para o dia seguinte, mochilas e sacos de treino. Deitar antes das dez para que tudo durma cedo, quem sabe à quarta feira se distraia um pouco o corpo, é meio da semana, há perdão, mesmo que no dia seguinte custe ligeiramente a levantar. O excessivo ócio parece-me um verdadeiro inimigo da grande maioria do povo. Para ser salutar é preciso que primeiro o corpo se canse, caso contrário entra directo no estômago e liberta indecências, impropérios, invejas e maledicências, mal estares vários e palpitações de espírito, impossíveis de sossegar. Prefiro o Inverno, desde sempre. Vivia nele todos os dias do ano, intercalado com meia dúzia de dias amenos, lá pelo meio, só para que as línguas não morressem presas, e para poder vestir uns belos vestidos de verão. E libertar as pernas, claro, que quanto a mim é muito mais saudável do que soltar a língua sem moderação.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Ó que porra: tenham calma.

Tenho um certo patriotismo que me faz vibrar muito mais com a selecção do que com o Benfica. São-me quase indiferentes as guerras clubísticas entre o norte e o sul, entre Alvalade e Luz, e não há vez nenhuma que eu roa as minhas preciosas unhas, suba as paredes, respire com mais força ou me sente e levante cem vezes no decorrer de um jogo. Prefiro a paz do sossego no sofá, do encosto da almofada, do sono  meigo do cão. Vejo poucos jogos, de resto. Contento-me com um ou outro derby, petisco uns camarões e uns tremoços, faço pirraça com o meu filho e o meu pai, lagartos desde a ponta dos pés ao fio dos cabelos, e faço o meu afilhado saltar pelo meu clube em troca de um kinder ou de um chupa-chups, uma chantagem inofensiva que só vem adensar a grandeza da águia, mais do que reconhecida pelo público em geral. Mas depois passa tudo. Arruma-se a barraca e nunca mais me lembro daqueles onze, dos quais não sei o nome, a função, a vida ou a posição. Não faço a mais pequena ideia de quem os treina, quem preside ou quem decide, quem arbitra ou quem fiscaliza as linhas, qual o canal de programação que se dedica à transmissão dos jogos. É um ar que se lhe dá, quer ganhe, quer perca, quer empate ou quer nem chegue a jogar. Não interesso como adepta a clube algum, confesso, jamais pagaria cotas, nunca na vida teria um lugar cativo, tanto entro num estádio da Luz como num de Alvalade, no de Freixo de Espada à Cinta, ou no Vila Nova de Famalicão. Mas a selecção é outra loiça muito mais delicada. É outra praia, outra realidade, e aprecio pouco a típica defesa Portuguesa para lidar com a emoção: vamos perder, já deveríamos ter perdido, o Ronaldo não é tão bom como se julga, o treinador anda adormecido. Caneco, deixem jogar quem joga. Lidar com a expectativa faz parte da competição, e não deveria ser necessário este súbito zelo de protecção. Desporto é isto, e já estamos na final. Domingo poderemos ou não ser campeões, mas seremos grandes de qualquer maneira. Somos uma nação, pessoas, parem de dizer mal de quem nos representa até à exaustão do cansaço, dos banhos de suor, da dedicação e da pressão, quer gostem, quer não gostem, quer tenham medo ou ganas de ganhar. Ó que porra: tenham calma, respirem fundo e aproveitem o momento. Se não chegarmos lá com eles, sem eles também não chegaríamos. Orgulho, é palavra de ordem.  

terça-feira, 5 de julho de 2016

:(

O humor negro é coisa para ser utilizada com parcimónia. Fica muito interessante no meio da intelectualidade, pode surtir algum efeito em contextos específicos da trivialidade, pode parecer eloquente, inteligente, mas deve ser utilizado com muita calma no meio das massas sociais. Atingir de forma bruta pessoas, com aspectos negativos de histórias de vida diversas, é perigoso e vulgar. Passa automaticamente de humor corrosivo, negro ou pintado às bolinhas, para falta de gosto, desrespeito e violência. Gozem com a bolinha de Berlim com creme que lambuza o verão. Com as senhoras que se abanam na corridinha da praia ao entardecer, ou com os senhores que fingem ler o jornal, pela centésima vez naquele dia, enquanto elas passam. Também podem escrever sobre as gaivotas que fogem da tempestade e tropeçam nos chapéus de praia, ou sobre os grupos que zumbam ao por do sol, com a música em altos berros, enquanto a praia debanda. Mas não façam isto. Isto, não. 

sábado, 2 de julho de 2016

corram, meninos, corram

Pela vidraça da colina espreito uns garotos que correm sem rumo e galhofam muito alto. Um casal acusa-os de ruído, ao mesmo tempo que comem uns pastéis de nata e discutem a mocidade, já nada é como era, afirmam. Os jovens não têm educação, as crianças não obedecem aos pais e aos professores, o país está em vias de exaustão, qualquer dia não aguenta esta canalha e desfaz-se redondo no meio do chão. O que o segura são as pessoas mais velhas, que muito em breve morrerão. Fico a olhá-los e sinto-os muito mais ruidosos do que os miúdos que passam a correr e a saltar. Estão sentados a fazer um barulho ensurdecedor, basta que mexam os lábios, que mordam o pastel com a boca muito aberta, que olhem de cima com ar de pompa e reprovação. Faz-me doer a vista quem se sente no direito de praguejar sobre a alegria, difícil de recuperar anos mais tarde. Dá ideia que os desassossega quem ainda consegue ser só porque lhe apetece, quem corre por gosto, quem salta por nada, quem canta sem voz, mas com ganas indomáveis de vontade. Tenho para mim que o mundo seria muito mais feliz se as crianças mandassem mais. Num mundo orientado por quem grita quando quer gritar, por quem ama quando quer amar, por quem chora quando quer chorar, e por quem ri quando quer sorrir, seríamos todos muito mais satisfeitos. Assim somos uma carneirada critica de olhos em tala, que abafa a tristeza e a alegria, que normaliza a igualdade, que desaprova a individualidade, e que mata a personalidade mágica e interventiva de cada criança endiabrada. Somos quase todos mais do mesmo; pães de sal mediano, tamanho racionado, sem gosto expressivo, secos como um carapau. Os excessivos em fartura ou em falta são defeituosos, retirados da linha de produção, pelo sim, pelo não. O pacote visto de fora parece perfeito, sem côdea, já fatiado, sem custos adicionados. Sem doce, sem manteiga primor ou queijo dos Açores, sem chouriço ou salpicão. Nada disto condiz com a minha natureza, tipicamente portuguesa, de gema, alma e coração.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

vestido branco


Comprei um vestido muito branco, com uma rendinha em baixo. Costumo vesti-lo com muita cautela, não vá o meu corpo ter algum espinho que o atravesse e lhe roube a beleza, ficaria com um rasgão de alto a baixo. Quando o visto sinto-me uma espécie rara de ar muito angélico, adornada por uns caracóis teimosos que insistem em atravessar o meu caminho, por muito que os anos percorram e me desmanchem aos bocadinhos; mãos, pernas, coxas e pés, tudo se desmorona menos eles, talvez por teimosia, sabem bem que os detesto até ao fundo de mim, que os cortaria pela raiz, que os mataria de uma penada. O meu vestido branco, por sua vez, nunca me deixa ficar mal, consegue a proeza de me fazer acreditar que o imaginário é tão eterno quanto possível, por muito que o tempo se cruze, no passado, no presente, no futuro, na alegria e na tristeza, na graça e na desgraça. O simples vestido preto, não comprometeu nunca a grande Ivone. O branco imaculado comprometeu-se comigo. E eu não posso deixá-lo ficar mal. 

quarta-feira, 29 de junho de 2016

pele

Nada no mundo nos pertence a sério, descubro isso quando o cão da vizinha quase me come o dedo mindinho do meu pé direito. Ficamos todos em pânico, o animal arrancou-me a ponta do dedo e largou a correr por uma estrada estreita, no meio do matagal. Eu fiquei sentada no chão, estupefacta, a olhar para um dedo sem uma unha, um coto pequenino a escorrer sangue, privado da sua segurança. Agarrei logo num lencinho de papel e enroleio-o, antes de chegar ao hospital, precisava de conter a hemorragia. Não tinha dores lancinantes, cheguei a pensar que era feita de um qualquer material contraplacado, modificado, defeituoso, qualquer coisa onde o nervo da dor não funcionasse, e achei piada ao assunto. Imaginei-me a andar por ai, sem que nada me parasse. Poderia saltar de um paraquedas, poderia nadar num mar de monstros, poderia percorrer o mundo nuns patins, andar depressa, dobrar as esquinas, cair e partir a cabeça, levantar-me e continuar. Elá, isso é que era. Ia ainda neste delírio quando encontro a porta do centro de saúde. Lá o meu médico esperava-me, sorridente, e começa a revelar o meu dedo dilacerado, no exacto momento em que me olha para dentro do corpo, pelos meus dois olhos mortos há dias. - Ena, deve doer, vocifera bem alto, temos de tratar já disto, caso contrário poderá não estancar. Senti como que uma pontada forte na ferida, a apanhar-me a perna. Começava na parte que o cão tinha comido, e dava-me a volta pelo corpo todo, com paragens mais intensas em locais improváveis, mãos, joelhos, boca, pescoço, fígado, coração, ossos e ouvidos, quase rebentei de tanta dor. Voltei a casa no instante seguinte. Antes da partida paguei o justo preço pelo dedo que me comeram, e ao chegar à porta descubro os restos dele em cima do meu tapete florido, bonito, comprado há muito tempo numa feira da Nazaré. Olho-os como se já não fossem meus, são um bocadinho de lixo misturado com o chão, um naco de carne mastigada por um animal raivoso, sedento, esfomeado. Varri-o e deitei-o para o lixo, acondicionado dentro de um pequeno saco de congelação. Agora olho para o que sobra dele, e percebo que nada me pertence verdadeiramente. O meu corpo pode, a qualquer hora, cair aos bocadinhos pequeninos e fugir de mim na boca de uma qualquer coisa, pouco mais forte do que a minha pele.

( A minha pele é fraca e mortiça.  Um sopro forte do vento pode amassá-la, sem dó nem piedade.)

terça-feira, 28 de junho de 2016

salvamentos III

Escrevo parágrafos inteiros com os meus gestos. Sento-me e levanto-me duzentas vezes seguidas, percorro a sala de espera, entro e saio do gabinete, passo na máquina do café e resisto a um capuccino com cacau. Saio para a rua e fumo um cigarro que me dá um sabor a menta adocicado, ao mesmo tempo que engulo uns goles de chá de camomila deslavado, guardado numa garrafa da tupperware azul. Comprei-a outro dia, e entretanto avisaram-me que a água saberia sempre a plástico forte, decidi por isso guardá-la para o chá. Do sítio onde me encontro vejo quem chega, alcanço o cavalo que pasta ao lado, sinto o fresco da tarde e engulo bafos de fumo cinzento, que me turvam os olhos fixos no horizonte. Há uns dias, muito poucos, levaram-me a expressão dos dois. Primeiro foi a do direito, é o meu melhor aliado, o que não necessita de graduação, o que lê tudo em primeira instância, o que acorda mais cedo, pela manhã. O esquerdo seguiu-se numa rapidez lancinante, nem me deu tempo de o fechar, cerrou-se num instante assassino, trás, ouvi eu, e nesse preciso minuto o mundo deixou de os encontrar. Cumprem por ora somente a sua mais nobre função. Servem para que não tropece no degrau, não engula uma espinha, não entorne um copo, não ande em contra-mão. Bebo mais uns goles de chá e volto para dentro, à minha espera tenho um livro, "Levem-me para casa". Coloco os óculos, leio uma meia dúzia de palavras mal sublinhadas por mim, e transcrevo-as com vagar, sem alma e sem convicção. Por momentos, posso jurar-vos, sei de fonte segura que o livro me leu, sem a minha autorização.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

salvamentos II

Despi-me muito cedo e escutei a noite, mais nua do que o desejo. Cheirei-lhe todos os segundos, provei o sabor de todos os animais nocturnos, deitei-me à sombra de uma árvore morta e adormeci. Despertei muito cedo, antes do raiar da aurora, e fui-me embora. Fugi com medo da claridade, não fosse a maldita entrar-me pelos olhos adentro e alojar-se num sítio onde nunca mais a encontraria, seria o fim. Regressei a casa mais depressa do que a velocidade da luz, entrei de mansinho, não podia acordar ninguém, vesti-me a preceito e fui trabalhar. Não me lembro de todos os pormenores, mas sinto o peso de todos eles no meu corpo, em cada bocado de pele, que arde até ao infinito da dor. Tenho nos ombros o peso do cansaço, que me verga o nariz até ao chão, mesmo tendo fugido ao que a madrugada me ensinava, bem cedo. Largo a mala envernizada, linda de morrer, pode ser que o peso da maquilhagem e da agenda me alivie os anos, me solte o sorriso, me combata a desgraça. Tiro o casaco dos ombros, na vã esperança de que o fresco matutino me arrefeça o corpo. Descalço-me, ali que ninguém me vê, expectante de que as sandálias de salto me deixem tocar no chão que piso e me dêem sossego. Retiro os anéis dos dedos, os colares do pescoço, o relógio do pulso, e sinto-me cada vez mais pesada. Não sei o que dispa mais para aliviar o cansaço, e por isso fecho os olhos à espera que ninguém me descubra. Permaneci ali várias horas, no meio das pessoas e da correria, descalça, sozinha, sem nada que me assinalasse a vergonha. Precisava de não ser vista. Só a sensação de inexistência pode salvar uma alma aflita. Só o vazio nos pode dar sossego, na evidência da loucura. Só a solidão nos encontra, quando não sabemos de nós.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

qualquer coisa parecida com férias.


salvamentos

Hoje escutei o relato de um bombeiro de profissão, que diz levar a vida numa boa. Já fez partos sem meios, já salvou gente da morte, já cortou cordas de enforcamento, de quase enforcamento, de enforcamento feito há dias sem fim, consumado, definitivo, escolhido ou enganado. Já retirou cadáveres de poços, de lagos, de rios, de tanques, já agarrou cabeças separadas do corpo, já levou membros para o hospital, devidamente acondicionados segundo o protocolo, já encontrou gente a morar em canis. Lá mais para o fim do discurso diz-me que não escolheu ser bombeiro, foi destacado de um concurso da autarquia, havia concorrido a motorista, mas foi desviado. A vida por vezes obriga-nos a escolhas diferentes do que tínhamos planeado. Querer conduzir um camião de mercadorias e ser colocado a livrar vidas da morte e mortes da vida, é com certeza uma inclinação atroz. Deve ser quase tão difícil quanto escolher uma profissão onde pensamos que poderemos salvar o mundo, mas afinal perceber que a única tarefa possível, é tentar salvar-nos a nós. 

domingo, 19 de junho de 2016

ai, meninas

Ai, meninas, de vez em quando até perdem a graça. Seria muito mais bonito viverem do que imaginarem a vida vivida na vida dos outros. Bem sei, é um engodo que não se escolhe nem se decide, sente-se, e na hora h já estão a imaginar o que seria estar com ele na mesma cama, o minuto m em que entraria pelo vosso corpo sem pedir licença, o instante i em que as levaria da terra aos céus, num segundo s de um delírio inconsequente. Bem sei, os olhos dele chamam mais do que uma voz grossa de rouquidão sexy, penetram no vosso imaginário como quem enfia uma língua numa boca tão familiar, quase parece que miram de perto o vosso corpo, por dentro, por fora, de frente, de lado, por trás, pela frente. Sim, estou consciente de que a barba que lhe percorre a cara vos pica mesmo ao longe, basta que exista, nem que seja à distância de uma fotografia tirada à socapa, por uma máquina qualquer. O delírio de vocês nos braços dele é mentira minhas queridas, é todo ele uma grande mentira. O que vos acontece é fenómeno puro da vossa imaginação, um território perigoso e falso, nos momentos que se confundem desde a alma até ao sangue, que acaba a pulsar mais depressa do que o explodir de uma bomba atómica, numa Hiroshima ai tão perto. Aviso-vos, parem com isso, não é por mim, é por vós. Qualquer dia esvaem-se em pormenores construídos no mais puro dos desejos, impossível de concretizar nos dias da vossa existência. E deixam a juventude morrer enquanto o senhor dos olhos verdes olha de frente para uma outra mulher, e lhe faz tudo o que nem sequer povoa a mais recôndita das vossas vontades, a mais ousada das vossas práticas, a mais impossível de todas as safadezas, enquanto lhe diz ao ouvido que a ama. E ama, que é o mais tramado disto tudo. Façam-se à vida, andem, passeiem muito que a morte é certa, e a imaginação tem toda a graça quando se pode concretizar. Vão por mim, que sei o que digo: a imaginação é a melhor coisa do mundo, quando se pode concretizar.

domingo, 12 de junho de 2016

cheiro

São as raízes mortas que me seguram de pé quando estou quase a cair. São elas que me agarram com as mãos de ossos, e especialmente com o cheiro que nunca me esqueço. Lembro-me do cheiro dos meus mortos como se os tivesse acabado de cheirar agora. O do meu avô, sempre avinhado, constante e mais forte do que o vento da nortada. O da minha avó, uma mistura de laca, perfume francês e pele, e o da minha outra avó, a mais delicada de todos eles, que cheirava a creme Stendhal. Sempre fresca, sempre límpida, sempre clara e translúcida, mesmo quando minutos antes de morrer me pediu para que lhe colocasse o vestido de noiva por baixo do corpo, e um blush nas maçãs do rosto. E flores por cima, muitas flores. Nunca me esqueço destes cheiros que o meu corpo entranhou, e é sempre a eles que me socorro quando o o tempo abana, e no fundo não há chão. O abanão ganha um odor que acalma, num sítio onde só chego quando me consigo lembrar que na raiz do meu ser estão todos eles, a correr no meu sangue e em mim. O que consigo sentir em maior intensidade é o do meu avô materno, o espírito revoltado da família. Não que tivesse um lugar diferente dos outros, mas porque o cheiro do vinho é mais forte, guarda-se melhor. O da delicadeza fica mortiço com o tempo, tem tendência a perder a consistência e a desvanecer. É preciso mais força para conseguir cheirá-lo.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

(...)

Poucas são as vezes em que eu tenha perdido as palavras. Acontece-me quando a tristeza se desmancha à minha frente, se mostra e se assume, quando sei que nada poderá ser melhor do que o respeito do silêncio. Acontece-me ainda uma ou outra vez no espanto, quando o susto me engole todas as palavras que eu possa vir a dizer, fico completamente muda. Normalmente sobram-me na desgraça, na alegria e na zanga, no nascimento e na morte, nunca me faltaram na urgência da necessidade alheia, real ou simbólica, na dúvida ou na culpa de alguém que não eu. As vezes em que mais falho, concluo, é comigo própria, na concepção interna do meu ser. É lá, dentro de mim mesma, que por vezes não encontro palavras satisfatórias que me definam com um golpe de mestre o que me acontece. O que sentimos pode não caber nas palavras, digo tantas vezes a gente demais. Cabe no corpo, cabe nas mãos, cabe no sonho, cabe na esperança, mas não se define em caracteres que não dominam senão uma pequena parte do que existe realmente. Se eu pudesse inventava novas falas de expressão. Se eu tivesse o direito a isso, encaixaria no dicionário meia dúzia de palavras novas, que chegariam em meu socorro tal e qual hoje apareceram meia dúzia de transeuntes, num momento de aflição: estamos aqui, se precisar de ajuda, diriam. Essas palavras serviriam para que eu me aconchegasse nelas quando não sei o que sentir. Estamos aqui, se precisar de ajuda, repetiriam até à exaustão, até que eu olhasse para elas e as gritasse ao mundo, enorme, gigante. 

De nada nos vale o poder do grito. Não se não soubermos o que gritar.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

dia da criança

O dia era das crianças e resolvi por isso ir comer um gelado. Estavam dezenas de crianças no parque a andar de baloiço, a subir ao escorrega, a rodopiar na roda, a pedalar nos triciclos de dois ou de quatro lugares. Sentei-me numa sombra a saborear os escassos dez minutos de que dispunha para apreciar a vida ao entardecer, e fiquei estupefacta com o tempo que ainda me sobrou. Senti que dormi um sono, foi como se todo aquele tempo minúsculo, entre uma obrigação e a outra, me tivesse fornecido uma noite inteira de descanso. Atravessei a estrada e regressei muito depressa ao local de origem. Não me lembro do tempo que passei no caminho, sei só que cruzei uma criança com uma camisola alusiva ao dia, dizia: somos o melhor do mundo. Na salinha esperava-me uma outra realidade, triste, já coxa e entorpecida, que me confessou que desde o acidente não vê vida à frente, que está sem forças, acabado, envelhecido, uma tristeza que só visto. Perguntei para mim mesma o porquê de termos de ser velhos depois de podermos ter sido novos. Uma pergunta totalmente infortunada, sei disso, mas bem vistas as coisas gostaria muito de saber uma resposta que me levasse além do é a vida. E muito mais além do tudo tem um começo e um fim.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

norte

Ao fim da noite de ontem recebo uma notícia esperada, mas mortífera. Morreu o neto de uma amiga, com seis meses de vida, vitima de uma doença rara. Ligou-me em soluços, e eu, que julgo tratar estas questões por tu, pelo nome próprio dado por quem cá vive, fiquei no momento sem palavras para lhe dar. Estanquei ali estupefacta, a escutá-la, incapaz e impotente de a salvar ao sofrimento. Cada vez mais descubro que não sei nada desta vida. Nem da morte dos outros, nem da dor de quem cá fica. Houve alturas da minha existência em que não julgava nada disto, sentia-me capaz de aprender muito, enquanto a vida me deixasse. Hoje vejo tudo exactamente ao contrário, não aprendo coisa nenhuma em concreto, não há verdades puras, não há receitas infalíveis. Há pessoas, há mundo, há sorte e há azar, há bondade e há maldade, há vida e há morte. Concluo que tudo isto são grandezas que se podem explorar, tentar compreender, analisar e dissecar, mas nunca controlar. Concluo ainda, ferida, que os afectos nos turvam demais a intelectualidade. Permitem-nos o toque e a partilha, mas matam a competência real, quando quem nos é próximo perde o norte. Não há dúvida nenhuma, perdemos também. Não deve haver destino sem esta deriva.

domingo, 29 de maio de 2016

(...)

Percebo a loucura do mundo quando as mães me pedem para controlar em consultório a sintomatologia que incutem aos filhos, todos os dias. Presentemente tenho mães perdidas a quererem filhas perfeitas, outras ansiosas a desejarem meninos atentos e sossegados, pais violentos a queixarem-se da revolta do adolescente que mora lá em casa, e famílias sem tempo a estranhar o refúgio dos filhos, permanente e impossível de combater, nas redes sociais. O trabalho árduo foca as teorias sistémicas, mas na verdade recuperar questões de fundo é tremendo. A sociedade encontrou hoje em dia qualquer coisa semelhante aos dias do fim, e o que quero dizer é que poderemos piorar consideravelmente, claro, mas dificilmente conseguiremos manter a estrutura social à qual ainda estamos habituados. A vida é isto, nada é permanente, os hábitos reproduzem-se, por vezes alteram-se. Na morte dos ancestrais malignos, nascem os presentes, diferentes, eventualmente mais mortíferos. Já não há tanta negligência infantil. Temos mais cuidados de saúde, mais educação escolar, mais dinheiro e mais acesso à cultura geral. Temos na globalidade menos valores, menos tempo, mais doenças emergentes, mais solidão, menos educação de base. Ainda outro dia, num local público, um grupo de jovens competia pelo arroto mais alto. Também me lembro de na minha adolescência existir este tipo de competição. A diferença é que na época alguém ralhava, mal ouvisse o disparate. Hoje há uma indiferença misturada com uma descrença, polvilhada por muita resignação, servida com uma boa dose de desinvestimento. Ninguém cresce sem investimento real do próximo, ninguém aprende sem dedicação, ninguém ganha limites perante a isenção de quem, supostamente, deveria orientar. Qualquer dia arrotamos todos a este mundo farto de vazio, não há estômago que aguente, parece-me. É como mascar pastilha elástica permanentemente, sem engolir nada que nos sustente.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

sabonetes de lavanda

Tenho sempre uma inveja requintada da imperial e dos caracóis, principalmente em dias de jogo. São aos magotes, homens e mulheres que se encontram na esplanada ao sol morno da tarde, acendem os cigarros, discutem as faltas, os foras de jogo, os golos falhados e os apontados, alguns combinam eventualmente outro encontro glorioso, mais para a noite, polvilhado por pimenta preta ou cantigas de encantar. Passo normalmente de carro, e nunca me junto à festa. Vou sempre em alguma direcção, levo sempre outro caminho, persigo usualmente um importante objectivo, que pode ser comprar uma alface, entregar uma encomenda, pagar uma conta ou trabalhar. Passo com a sensação amena de que não aprecio nada daquilo. Sei de mim para mim mesma que não me sentaria ali, no meio da multidão, de copo na mão, tremoço no prato, sorriso na boca e no rosto. A inveja vem normalmente depois, quando respiro fundo e descubro que a felicidade fácil deveria ser obrigatória de aproveitar. O Deus das pequenas coisas anda ali, e eu nunca o vi. Ainda não foi hoje, mas um dia destes, juro-vos, contrario o corpo e vou experimentar. Se não conseguir encontrá-lo peço o livro de reclamações, escrevo o que tenho a escrever, levanto-me e vou procurá-lo num outro lugar. A loja do Sousa, por exemplo, deve ser um bom lugar para se começar. Descobri que vende uns sabonetes de lavanda lilás de subir aos céus, vou comprar umas caixinhas e colocá-las a perfumar as gavetas do meu quarto. No regresso da loja tudo terá terminado, e posso sentar-me à vontade enquanto a cidade festeja ao longe, já fora dali. Nesse momento peço uma água, respiro fundo, sinto o cheiro da lavanda a entrar pelas minhas narinas, e fico mais sossegada. Acompanhada do meu Deus, serei capaz de ali ficar.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

carpideira

Vi passar um menino pequeno pelas mãos da sua mãezinha. Levava um pirulito na boca, e tinha o ar de quem abre a goela por qualquer contrariedade da sua curta vida. Ia de olhos carrancudos, cabisbaixo, enquanto a senhora insistia que sorrisse, que saltasse, que se entregasse à idade da brincadeira, nunca mais lá voltaria. O pobre infeliz mantinha-se quieto, e perante a impetuosidade da mãe, chorou. Primeiro parou os passos. Depois esticou os lábios uns segundos alongados e cerrou os olhos com muita força, de seguida respirou fundo, e quando regressou a ele já um berro atravessava a Loja dos três balcões, dava a volta pelo Gonçalo das boinas, entrava e saía na ourivesaria e salpicava, já de longe e ao de leve, a casinha dos jornais. Apeteceu-me berrar com ele, naquele exacto momento. Invejei-o descaradamente. Quis tanto o seu grito, cobicei de tal forma o seu ar de desespero infortunado, que me apeteceu levá-lo para casa, colocá-lo no sofá da minha sala sentadinho nas almofadas, alimentá-lo a doces e contrariá-lo, sempre que eu precisasse de chorar. Na falta do meu grito ecoaria o dele, casa afora, noite dentro, a castigar a pobre da vizinhança. Na manhã seguinte ele descansava e eu ia à vida. Liberta pelo corpo esganiçado e solto de uma criança.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

os dias do abandono

Acabei de ler " Os dias do abandono", o extraordinário conto de Elena Ferrante, e percebi que o anonimato a protegeu ao ponto de ela o poder ter escrito. Nenhuma outra pessoa o teria feito, não desta forma, só alguém resguardado escreve isto:

" Não passamos de seres ocasionais. Consumamos e perdemos a vida porque um certo homem, em tempos remotos, lhe apetecia descarregar o caralho dentro de nós, se mostrou amável, nos escolheu entre as mulheres. Confundimos o banal desejo de foder com uma delicadeza que teria por objecto exclusivo a nossa própria pessoa. Gostamos da vontade de foder que ele sente, iludimo-nos e pensamos que é uma vontade de foder só connosco, connosco só. Oh, ele é tão especial e trata-nos de uma maneira tão especial. Damos outro nome, a essa vontade que o seu caralho tem, personaliza-mo-la, chamamos-lhe meu amor. Mas que diabo leve esta história toda, este engano, esta presunção infundada. Do mesmo modo que fodeu uma vez comigo, fode agora com outra, que outra coisa pudera eu julgar que acontecesse? O tempo passa, uma vai-se e chega a vez de outra. Tentei engolir uns tantos comprimidos, queria dormir deitada no mais escuro de mim própria."

A comum das mulheres pode não escrever, mas qualquer uma o pode sentir.

(Estou cansada de ler palavrões. Sou muito cuidadosa com as obscenidades, tive até um certo desconforto no estômago. Deve ser da vergonha.)

terça-feira, 17 de maio de 2016

cura

Comi uma galinha cozida que me caiu mal. Deu-me a volta nas goelas, desceu com relutância, passou pelo meu corpo e não deve ter achado piada ao que encontrou lá dentro, quis sair e eu tentei impedi-la. Engoli em seco, calquei-a com água morna, sentei-me e comecei a ficar zonza, mas a danada da bicha não estava fadada para aquilo, e acabei por ter de lhe fazer a vontade. Há remédios santos e mezinhas históricas que já não se encontram em actividade. Renderam-se aos tempos modernos, às indústrias farmacêuticas, ao capitalismo e à sociedade. Os chás de camomila já não dão sossego, as laranjas já não combatem a constipação, o leite, está mais do que sabido, já não previne a osteoporose, e a canja de galinha já não cura a gripe e a indigestão. Para além do chocolate, claro, o chocolate também já não cumpre em plenitude o que sabemos ser a sua função. Devo dizer que me assiste por tudo isto o direito à reclamação, uma pessoa precisada já não pode contar com o efeito profiláctico, terapêutico e milagroso da alimentação. Das duas uma, ou é tudo de estufa, sem boa maturação, ou os males estão mais fortes, sem cura ou recuperação. 

domingo, 15 de maio de 2016

metamorfose

Não faço a mais pequena ideia do que é transformar amor em ódio. Não consigo conceber no meu fraco corpo essa metamorfose, não por capacidade maior mas por falta de apetência, ou seja, não por qualidade, mas por puro defeito. Deve ser muito mais fácil, quando uma ligação se quebra, olhar para o outro e sentir um enorme desdém. Deve ser mais apaziguador dos sentimentos abalados ofender, atirar com toda a força as pedras que se colheram nos momentos íntimos e arremessá-las com a pujança da zanga, ao local exacto que conhecemos tão bem, ou não tenhamos sido nós a lamber as feridas, tantas vezes... Neste sentir não devem caber os momentos bons que se viveram, poderia nesse caso vingar a danada da tristeza, quem sabe. Não devem caber as alegrias, as conquistas, as descobertas a dois, morre tudo pelas mãos fortes de uma fúria cega, em completo desgoverno. Neste assassínio brusco e violento matam-se os ganhos, mata-se a possibilidade de admiração, mata-se o caminho, o progresso, a ligação, mata-se a dignidade e a alma, mata-se tudo o que poderia continuar a ser vivo. Mas deve ser tão mais fácil, mas tão mais fácil, que no fundo o que eu quero dizer é que invejo muito quem transforma amor em ódio, e que não precisa de sentir tudo o que nos pode trazer, duas pessoas que se perderam uma da outra.

Em hábito defendemos o direito ao básico, à zanga, à tristeza, à alegria e ao medo. Mas na realidade  já sabemos que muitas vezes somos nós próprios que escolhemos o que sentimos, temos uma facilidade tremenda em substituir uma emoção pela outra, eventualmente sem a noção de que essa substituição nos eleva a um caminho opcional, mas não real, alternativo, mas não natural. Ambos têm defeitos e virtudes. A tristeza é seguramente muito mais produtiva, mas a zanga é francamente mais eficaz, muito melhor quando se quer rematar depressa e bem, com um nó completamente cego.

sábado, 14 de maio de 2016

sujidade

Saí de manhã muito cedo. Sentei-me na pastelaria do costume e bebi um café forte que me queimou a língua com tanta força, que deixei cair a chávena no pires. Mena comia uma torrada ao longe e veio em meu auxílio, deu-me um copo com água, trouxe-me outro café, recomendou-me cuidado e poucas pressas dada a hora do dia, era Sábado, só eu é que parecia não estar a ver isso. Decidi ir à praça. A praça é um sítio onde me encontro com as minhas raízes, o cheiro do peixe lembra-me sempre a loja da peixeira onde eu ia em pequena, pelas mãos da minha avó. Recordo-me especialmente do processo de amanhar o carapau, abria-se ao meio, retiravam-se as tripas, deitavam-se para o chão, e logo depois chegava o gato que as comia cruas, rápida e bruscamente, ainda em sangue. Na praça de hoje em dia não há gatos. Há moscas, imensas moscas, que poisam no peixe com um sentimento de pertença que deve assustá-los, mesmo depois de mortos. Entram-lhe pelos olhos, dão a volta pelas guelras, saltam para as barbatanas, tudo debaixo dos olhos de quem os compra para o almoço, à dúzia, ao quilo, à posta, depende. Comprei uma raia para fazer uma caldeirada. Gosto de caldeirada de raia com sardinhas, forro o tacho com muito tomate, muitos pimentos, muita cebola, muitos alhos e muito azeite. Disponho as batatas por cima, coloco o peixe, e deixo cozer tudo no vapor do caldo guloso. Não me incomodam as moscas que me cheiraram o peixe que comprei. Não me incomodava o gato que comia as tripas do lixo. Não me incomodam as mãos de uma mulher que ensaca sem nove horas os queijos frescos para me vender, tal como não me incomodam os trocos que escapam da mão da outra, mesmo colados aos bolos secos. Não me incomoda nada na vida que cheire ao sujo da vida. Mas é capaz de me incomodar muito, a vida que finge cheirar a limpo. 

quinta-feira, 12 de maio de 2016

pentear

Ainda há quem julgue que é só nas telenovelas brasileiras que os homens saem para comprar cigarros sem nunca mais voltar. É mentira, completamente falso, isto passa-se na vida real. A bem da verdade não foi bem comprar cigarros, foi comprar outra coisa qualquer, mas o que interessa é que não voltou mais, não disse adeus, não deu justificação à mulher, nem aos filhos, nem às clientes de tantos anos. Confesso que me preocupo com a família. Admito que me custa horrores escutar as poucas palavras dela, imaginar a confusão da rapaziada adolescente, pressentir o desconforto nos olhos tremelicos e molhados dos três. Mas não consigo deixar de lado o meu egoísmo, e o que verdadeiramente me revolta é o desrespeito pela clientela, neste caso por mim. Há muito tempo que me penteava os cabelos com afinco. Há anos que escolhia comigo os cortes, as cores, os caracóis ou os lisos, os penteados e os tratamentos, as madeixas ou o tom sobre tom. Foi na loja dele que descobri o melhor produto para o volume, o creme de pentear mais perfeito, o secador mais indicado, o amaciador mais patenteado. Hoje, neste exacto momento, amaldiçoo a fidelidade com que há muito o presenteei. Hoje, neste exacto momento, sinto-me eternamente despenteada, descolorada, desarranjada e desolada. Digo-vos mais, não lhe perdoaria se voltasse, o universo dos cabelos femininos é um território mais do que digno de manifestações violentas, reflexos de sentires extremos. Nem mesmo se a sua pobre senhora o recebesse de braços abertos, de volta ao salão. O abraçasse com todo o amor do mundo, o voltasse a acolher na sua casa, na sua mesa, na sua cama. Isso seria com ele e com ela, e entre marido e mulher não se mete a colher. Este caso é meu e do meu cabeleireiro, e aí sim, o caso assume proporções sérias e verdadeiramente imperdoáveis. Um cabeleireiro pode até zangar-se com a sua mulher. Mas não pode, jamais, virar costas às mulheres que penteia. 

sábado, 7 de maio de 2016

perfecto

O mesmo assunto, um mesmo ramo, uma outra abordagem, duas visões totalmente distintas, e a verificação de que algumas palavras e posturas podem fazer toda a diferença. Enquanto um, e perante o meu problema, me diz com a boca cheia de nada " não percebo qual é o seu problema", a outra, com dois olhos, poucas palavras, muita sintonia e uns gestos cheios de tudo, desmonta-me a charada em menos de uma penada, ou seja, não só percebeu o meu problema, como o validou, o normalizou, o partilhou e melhor do que isso, conseguiu explicar-mo, tintim, por tintim, com as minhas próprias palavras. Cada vez mais me convenço de que a prática clínica não é uma ciência, é uma relação. Só alguém em perfeita conexão comigo conseguiria ir tão longe em tão pouco tempo, e sei que não há livro que lhe tenha ensinado isso. Os livros orientam o saber, mas só o corpo consegue ir onde nada mais pode chegar. E falou-se em espanhol, claro, na hora de la siesta, debaixo de uma trovoada interna e externa. Não se ouviu nadinha senão brandura, paz e sossego, e poucas vezes tinha estado tão acordada para mim mesma. Minha senhora, tiro-te o chapéu. Faço-te uma vénia, estendo-te um tapete, e só não me ofereço para te ouvir porque me sinto uma formiguinha na beira do tanto que tens para dar. Perfecto. Simplesmente  perfecto

( Tenho tanto para aprender que das duas uma, ou nunca mais paro, ou nunca mais me encontro.)

terça-feira, 3 de maio de 2016

vizinhança

O vizinho do segundo diz que gente como eu não faz falta. O povo precisa é de médicos e enfermeiros, para além de outros operacionais práticos que salvem pessoas, que ressuscitem gente, que curem doenças, que sarem feridas abertas, que se dediquem a limpar os despojos do corpo e a recolocar no lugar trapos limpos, lençóis enxutos, ligaduras sem sangue, pratos de comida. De que é que interessam os males da alma, pergunta-me, quando se está a sofrer com o corpo a doer, sujo, doente, fraco, moribundo? Pensei para mim mesma na razão daquelas palavras. Percorri em silêncio a brandura das minhas acções, a leveza do que digo, o desfalecimento do que faço perante a razão, a prática da vida, a solidez da existência, a magnitude do que se vê a olho nu. Está certo, totalmente certo, compreendo-o na perfeição. Para que a vida exista é preciso nascer, para que se possa existir, precisamos de um corpo, para que nos possamos mostrar é preciso que os nossos pensamentos se transformem numa coisa que se veja, e a verdade, a única verdade, é que me dedico ferozmente ao que não se pode encontrar. A vida já me deveria ter ensinado que só o que é palpável é verdadeiro, e que só o que é mensurável é real. O meu vizinho, carregado de dor até aos olhos, dispensa-me porque não sirvo para nada, mas ficou feliz, verdadeiramente sensibilizado, imensamente agradecido, quando no Natal lhe levei uma taça de arroz doce e um pote de mel. Para ele não importa que nada disso me tenha saído das mãos, que o arroz doce tenha sido feito pela minha mãe e que o mel tenha sido extraído pelo meu pai, estava ali, via-se claramente, tinha cheiro, cor, açúcar e canela. Ao contrário do tempo que lhe dedico, meu, arrancado das minhas horas, escutando-o todos os dias a falar da mulher que morreu. Somos tão iguais uns aos outros que a individualidade parece-me cada vez mais um constructo solitário, de algum ser morto há muito. Retiro o que interessa: há pessoas que pensam que sobrevivem a arroz doce, com muita canela, com virotes de enfeites retorcidos, e um paninho a cobrir. E são felizes, tão felizes assim, que chego a pensar que a felicidade é uma doce brandura, servida a quem aprecia retirar com um palito dos dentes os excessos, quando se comeu demasiada fartura. E retiro, claro, que gente como eu não faz falta nenhuma. Não interessa nem ao menino jesus. 

quarta-feira, 27 de abril de 2016

oi, moreninha

Foi num catorze de Fevereiro de um ano qualquer, teria eu uns doze anos. A escola criou uma caixa para escrever cartas de amor, e para a minha turma vieram umas sete, talvez umas oito, todas elas para raparigas: duas para a loira, as restantes para mim. Na hora não apreciei nada daquilo, senti tudo como uma estalada na cara, talvez do imprevisto, talvez dos sorrisos malandros da turma, talvez dos olhares de reprovação das outras, mas que diabo seria aquilo? A professora de português entregou-me o monte e ficou à espera, esquecendo-se apenas quando percebeu que eu não fazia ideia alguma de partilhar os versos apaixonados com tantos ouvidos, curiosos e indignados. A pouco e pouco, ao longo da aula, fui discretamente abrindo cada uma. Entre umas brincadeiras, umas seriedades, umas loucuras e outras tantas leviandades, debrucei-me sobre uma delas, que com alguma sabedoria se iniciava assim: "Oi, moreninha...". Ainda mal tinha sorvido estas palavras, e já a professora me espreitava por trás do ombro, enquanto me dizia: "descobre de quem é essa... começou tããão bem..." Não vem ao caso se descobri ou não, sequer as intenções de quem a escreveu. Vem ao caso que nesse dia, precocemente e sem querer, percebi algumas coisas de utilidade duvidosa: não há mulher nenhuma que não se encolha diante de determinadas palavras, nem mesmo as que fingem ser duras ou donas de si; os homens nem sempre preferem as loiras e as próprias sabem bem disso, muito embora tentem à exaustão do cansaço manterem-se iguais por toda uma vida, uma tremenda seca, julgo eu; todos eles sabem muito bem o que dizer quando querem ser bem recebidos, talvez porque nos conheçam muito melhor do que nós próprias, é um facto; oi, morenhinha, ficou-me como um bom começo de algo que nem chegou a começar. Mas que não deixou por isso, de ser um bom começo.   

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