sexta-feira, 26 de março de 2010

Dúvidas

Namorei à janela, diz-me. Roubou-me dois beijos antes de me pedir. Esta coisa do pedir, era gira. Como se as pessoas fossem propriedades de outrem, e necessitassem de autorização para serem levadas dali. Fiz-me ao feitio dele, continua, não foi ele que se fez ao meu. Mas nunca me faltou nada. Deu-me tudo, tudo... Oiço-a com atenção, e nesta parte, assumo, uma ponta de inveja. Não sei se ele hoje me vê, mas se vir, decerto sofre com o meu sofrimento. Ando por esta vida há anos demais. Não precisava de ainda continuar cá. Os que me fizeram mal, já pagaram muito. Faltam alguns, que ainda irão pagar. Nos meus momentos de desespero, penso em qual será o meu fim. Eu, que olho para esta gente, e sinto satisfação com o mal que lhe acontece. Sinto-me feliz, com a infelicidade deles. Decerto, Deus terá guardado, um castigo para mim.

Diz ela que teve um casamento perfeito. Diz ainda que, à parte disso, teve uma vida de sofrimento. Assume prazer, na infelicidade dos que lhe fizeram mal, sem reservas, o que me causa admiração, não é para todos, convenhamos. Tem 96, e medo do fim que se avizinha. Não do fim em si, mas do modo do fim. Todos os dias, lido com eles, e os admiro. Concluo, amiúde, que viver não é fácil, é dificíl. Mas viver, aos 96, quase sozinho no mundo, e carregado de rancor, deve ser ainda mais difícil. O rancor é mau por tudo. Pode ler-se, no que atrás descrevi.

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