Há ciências que me fascinam, que a meu ver, e abusando no sentido da palavra, tomando-lhe posse para meu proveito, ciência pode ser um conceito alargado, a toda e qualquer arte que exija método, rigor e precisão, ainda que impossível de demonstrar de forma absoluta e concreta. Diria pois que a minha avó tem ciência em broas, a minha outra, a tinha em fritos, e há quem tenha em costura, que é do que por ora aqui falo.
Cidália costurava casacos de pele como ninguém, que longe que estava das manifestações activistas contra o uso de tal matéria prima, aí se aprumou, munindo-se das máquinas adequadas e de agulha possante, capaz de domar tal grossura. Dia e noite, talhava e cosia, calças, saias e casacos, na fábrica ou em casa, bem perto de uma frágil janela por onde lhe entrava o sol ou a lua, dependia da hora, havendo alturas até, em que uma lua sumida e tímida por lá lhe entrava, durante o dia, por incrível que parecesse, coisa que até lhe parecia estranho, de inicio, que com o tempo, a isso se habituou.
De quando em vez, encontrava-a na cidade, de ar aflito e atarracado, como se numa culpa tamanha de largar por momentos o ofício a que se dedicou, ora por própria conta, ora por conta da patroa, que dela abusava horas a fio, que em tantas noites, nem cosia o que lhe era encomendado, a fim de dar vencimento ao que a Senhora lhe trazia, mais do dobro do que devido, tendo em conta as horas de trabalho pagas. Cidália nem por isso dizia não, que ao invés de trabalhar em seu proveito, na arte, ou melhor, na ciência que sabia de cor, com o objectivo de amealhar algum para além da jorna, entregava o seu tempo, já em casa, a quem dela tanto abusou, foi feita para isso, assumia, aqui e em outras realidades, que o marido, esse, também lhe abusava da boa vontade, que bulir dentro de casa, nem era de homem, pelo que bulisse ela, que tinha dias, a pobre, que nem à cama chegava.
Passo-lhe ontem na beira. O mesmo ar sofrido, os mesmos olhos gigantes, o mesmo sorriso. Confidência-me então que foi substituída, por novas que levam menos ordenado, que os tempos são de crise, e a fábrica já nem é o que era. As horas de dedicação, perderam-se no mundo, como de resto, se perdem tantas vezes. A reforma ainda nem é para já, pelo que agora, pouco mais vê do que a sua frágil janela, onde costura o que há a costurar, seja pele ou outra matéria, e ainda assim, já pouco, que nos dias que correm, já nem se faz roupa por medida.
São artes, ou melhor ciências, que se vão perdendo, julgo até poder dizer, que com o passar dos anos, também a dedicação, ciência emergente, quanto mais não seja na vertente humana, se extinguirá também ela. Não por falta de predicados, que por enquanto os temos, mas por receio da dádiva, que tanto nos abandona, nas horas de mais aflição.
E este é (ainda) um caso em que houve substituição, embora por alguém que decerto não terá a mestria da perfeição. Porque o mais frequente, é que a crise obrigue ao selar da porta...
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