sábado, 30 de outubro de 2010

Latências

A casa tem uma enorme escadaria, com um corrimão castanho e degraus de mármore. Nas paredes verdes com salpicos de vidro colorido, reflectem-se os parcos rasgos de sol, que a medo nos iluminam um dia cinzento e baço. Numa das janelas, estratégicamente encastrada do lado do sol, surge-me entre as cortinas gastas um rosto tão gasto quanto elas, isto para não dizer mais, que soaria por certo a exagero. Nem deve estar nos quarenta, embora aparente. É mãe de um filho deixado à muito em cuidados alheios. É mãe de um outro, que ainda lhe cresce na barriga, fosse possível deixa-lo ali para sempre, e o seu sossego seria por certo maior, que enquanto nem vier cá para fora, os cuidados que lhe deve, nem por isso a atentam em demasia, que é comer, beber e descansar, e com isso ela aguenta. Na nascença e daí para a frente, é que o caso se afigura sério. Quem lhe albergou um, já não lhe albergará o outro, que a velhice já se sente, e de resto, nem lhe cabe bem a responsabilidade. Pelo que o que tem agora em braços, é um filho quase crescido e quase criado por outrem que não ela, e mais um a caminho, do qual o pai fugiu, mal soube da sua existência, ainda esta nem existia concretamente, coisa que a ela, nem é permitido. A ter pensado, a ter bem consciencializado do futuro que se lhe avizinha, e teria considerado o desmancho, que a teria poupado a esta vida miserável que por ora a aguarda, desde que o pobre se tornou gente na sua barriga, e daí para sempre.
Cheguei a julgar em tempos, que há coisas que já nascem coladas a nós, como a maternidade, que parecem emergir sem esforço, como que numa fluidez latente desde sempre, que cresce e evolui naturalmente. Descubro entretanto que nem bem assim é, e que, admitindo a latência, estarão por certo mais emergentes em uns do que em outros, subjugadas, possívelmente, a um sem número de concepções. Intriga-me.

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