Apesar da chuva, ou talvez por ela, a cidade estava às compras. Num corrupio de cestos vermelhos, dezenas de pessoas enchiam a casa, que estaria provavelmente vazia de tudo, tal as quantidades de bens alimentares que punham nos cestos, que de tão cheios, seguiam de banda. As funcionárias, de bata branca e avental vermelho, corriam pelos corredores, munidas de caixas que repunham a uma velocidade tremenda, a fim de darem vencimento à sede das gentes que comprava desenfreadamente. Pode parecer fácil, mas nem deve ser, que bem lá no fundo, a supervisora olhava com ar de poucos amigos, a rapidez ou a lentidão da reposição efectuada, prestes a intervir em caso de frouxidão.
No meio da confusão avisto-a ao longe, já nem a via há muito, embora me lembre sempre dela. Ficou-me para a vida a memória, juntamente com algumas outras de imagem tão nítida, que nem são muitas, são algumas, as suficientes diria, que os ensinamentos surgem assim, disto e daquilo que nos fica cá dentro, que vamos arrumando calmamente até tudo nos fazer sentido. Ou quase tudo.
Corriam os anos noventa, e na Escola Secundária faziam-se festas. Eu tinha um aparelho nos dentes, feito em ferrinhos finos que me empurravam a dentadura superior para trás, que a malvada resolveu nascer adiantada, e ainda em cima encavalitada, terrível, arrisco dizer. A minha paixão, era um rapaz de olhos verdes, franzino e não muito alto, que pingava amor pelos corredores da escola, e que não me ligava a mínima. Tinha umas pestanas encaracoladas até ao infinito, e uma lábia própria de quem sabia muito bem levar a água ao seu moinho, hoje já desconfio, que isso nem é um predicado.
Eu era por essa altura uma pateta um tanto ou quanto sonhadora, que construía filmes dentro da minha pobre cabeça, ao som mágico das músicas da moda. Vestia umas calças de ganga, conjugadas com blusas de lacinhos e sabrinas pretas, e abanava o cabelo enquanto dançava, juntamente com outras vinte iguais a mim, mais coisa menos coisa.
Ela, a tal que agora vi e que me povoa as memórias, tinha por norma outra indumentaria, que as pernas isso pediam, os decotes generosos até lhe assentavam na perfeição, e a moçoila sabia-o bem, pelo que toca de mostrar o que Deus lhe deu, que este nem é assim tão mãos largas, sendo que o melhor, é aproveitar o que se tem e mostrar tudo bem mostrado enquanto se pode, mal ela sabia, a razão que tinha.
A dada altura, a música do momento inicia e o delírio instala-se ao som de Losing my Religion, dos REM. É exactamente aí, que a minha paixão platónica se agarra naquela moça descascada, e a beija bem defronte à minha pessoa, tão sabedor que era do meu amor por si, tamanha afronta me fez, que até lhe perdoava a indiferença, mas a provocação era de mais para mim.
Ontem avistei-a então. De cesto atafulhado, e atafulhada também ela, até ao pescoço, que a idade não perdoa, e o que com tanto orgulho mostrava, agora com vergonha esconde, é o que lhe resta, dizem por aí que é a vida.
Passo descontraidamente, e vejo que me mira de esguelha, pelo que a olho e lhe dou um sorriso. De olhar tímido retribui-me, enquanto roí uma unha e concerta os óculos grosseiros, empurrando-os mais para cima do nariz, enquanto o franze num desconforto declarado. O de olhos verdes, nos entretantos foi meu marido.
O mundo não pára, concluo. As verdades de hoje assumem-se de uma fragilidade tamanha, que num ápice se tornam em outras verdades, também elas frágeis como só elas. E assim sucessivamente.
tanta volta...
ResponderEliminar