quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Desalentos

Recusar o que somos, pela vontade alheia, é de uma tristeza medonha. Toca-me na campainha e abro, ainda sem ter por certo quem chama, fosse a minha mãe descobrir tal faceta, e era bem capaz de me forçar a ir de novo lá para casa, com os dias de hoje, nunca se sabe quem nos pode aguardar na beira da porta, sou uma descuidada, é o que é. Era ela, como eu esperava, a fútil Senhora que me ronda a existência por motivos de força maior, que se arruma ao extremo para agradar ao marido, um cinquentão, mulherengo inveterado, que aprecia a extravagância, nada a opor. O cabelo loiro platinado, as unhas transparentes com desenhos de palmeiras, unha sim, unha não. Já tentei, julgo que num qualquer momento de desespero profundo, aderir a esta moda pirosa, mas não consigo, continuando com as minhas unhas imaculadas e pequenas, num total démodé desesperante. As calças de ganga de cintura descaída, presas com um cinto largo, deixavam antever uma barriga proeminente, ligeiramente a descoberto, por desleixo da blusa que a cobria, cor de rosa choque, levemente enrodilhada. Por cima, um casaco cinzento muito justo, cravejadinho de corações pretos desordenados, fechado em apenas dois botões, que os volumosos peitos a mais não deixavam. Na pele, nada que se visse, limpa e pálida como sempre, com um único remate de batôm rosa choque, que lhe delineavam os finos lábios mal contornados. As botas eram de cano alto, justas e de salto fino, sobrespostas às calças, que formavam umas rugas pela perna, até ao joelho, mais coisa, menos coisa.
Segurava a franja esguia com um gancho de brilhantes preto, e abana-se enquanto me fala, numa ardiloso e construído discurso, proferido por um corpo desconfortável já de há muito, enquanto olhava discretamente para as minhas calças de algodão cinza claro, blusa preta e rabo de cavalo descuidado, preso no alto da testa com o óculo preto que uso para ajudar a minha pobre vista, já por demais fustigada aos castigos que lhe inflijo diariamente. Ela pensava por dentro, enquanto me olhava, que eu sou o descuido em pessoa, é o que dá não ter marido. Eu também pensei umas coisas, mas não digo o que foi.
Tenho pena de pessoas que se controem sob imagem de outros, e não à imagem delas. Deve ser de um desalento sem fim.

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