quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Azares


Uma tinha o mesmo nome que eu, e dividia comigo a carteira da escola primária. Usava uma trança comprida, às vezes em carrapito, outras vezes não. Muito do meu material escolar era partilhado com ela, que vinha sem nada, na maioria dos dias. O pico, a almofadinha, os livros, enfim. O seu irmão António era lindo de morrer, e cheguei a ter-lhe paixonite, eu e mais algumas. Era alto e moreno, e tinha uns olhos verdes de cortar o ar. Às vezes tinham piolhos e lêndeas, e bem por detrás da minha casa, onde as tendas se montavam tempos demorados, a tia, uma cigana alta e bonita de nome Cidália, sentava-os no chão, depositava-lhes a cabeça no colo, e catava-lhes o que podia. Às vezes olhava-me e perguntava-me, queres que te cate? Não queria, que sempre tive sangue ruim, e a bicharada sempre me fugiu a sete pés. Diz minha mãe, que um dia, me encontrou uma lêndea morta, pobre coitada. Nada tive para lhe oferecer, que lhe justifica-se deixar por cá um piolho, pelo que se matou.
De noite, fosse verão ou inverno, acendiam uma fogueira e cantavam e dançavam na sua volta, músicas que me ficaram para sempre, como os meus olhos ficaram lá. Cantavam com uma alma profunda, sempre me pareceu, em tom sofrido e sentido, e eu, à revelia da casa, espreitava por entre as cortinas, aquelas músicas choradas e não cantadas, coisa que me atraia por demais, e me roubava o sono até altas horas. De manhã, fosse verão ou inverno, tomavam banho num largo alguidar, que enchiam com umas quartas de água azuis, que buscavam no poço da minha casa.
Com o tempo, perdi-lhes o rasto, que nos entretantos procuraram outros rumos. Mas há uns anos, encontro numa feira uns olhos verdes, que nem podia esquecer. Que logo me sorriram, grande deleite para mim, que afinal, não envelheci assim tanto. Já casado, claro, com uma Cigana de nome Susana, e já com filhos. Vendem nas feiras, levam os miúdos no braçado, hoje de carro, que os burros já não lhe chegam para o que precisam de andar, e já não é bem tempo para carroças, por demais lentas para um dia cá e outro dia lá.

Fazem parte das minhas boas memórias os ciganos que conheci. Haverão outros menos bons. Tenho outras gentes boas e outras gentes más. De todas as gentes. Mas isto sou eu, claro. Há por aí muito boa gente, 80 por cento, dizem, que tem um azar do pior, e só conhece Ciganos dos maus, e outra gente da boa.
Azares, senhores, bem sei que são azares.

2 comentários:

  1. Do que se conclui que há de tudo em todos, e em todos os lugares :)

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  2. Um post perfeito! Também tenho o previlégio de conhecer muitas pessoas boas, ciganos, negros,brancos,marroquinos... As qualidades estão dentro de cada um não se definem por raças,etnias,cores de pele,culturas...

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