terça-feira, 31 de janeiro de 2012

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A morte continua a fazer das suas. Semblantes carregados, esperando que algum me transmita a notícia, da qual todos fogem mas que, invariavelmente, todos sentem, significa quase sempre a mesma coisa. De repente um deles, cheio, intumescido, rebenta e diz-me o que eu já sabia. Não gosto dos momentos que precedem uma notícia triste, e isto na generalidade das situações da vida. Sinto-os com uma antevisão perturbadora, quase uma ânsia de confirmação. Das inevitabilidades que não queremos, por vezes puro egoísmo.

100 escudos

Lembro-me perfeitamente das notas de cem escudos. Azuis, e com o poeta desenhado. Não tenho nenhuma, que não sou desse tipo de armazenamentos. Faz-me falta todo o espaço que reúno em casa, é isso, e papeis a mais são sempre papeis a mais, em lugares nos quais o vazio fica muito melhor. Dizem que há muitas espalhadas por aí, qualquer coisa semelhante a quatro milhões de euros, ouvi dizer, embora me soe a exagero. Um desperdício sério em tempos de crise, guardado em nome da recordação.

Idolatrar

É fácil nos tempos que correm percebermos, e isto por diversas situações, que as pessoas nem sempre são o que parecem ser. Temos uma facilidade exacerbada na crença, ainda que muitas das vezes levemos com um conto do vigário muito mal contado, mas que vá lá saber-se o porquê, soube-nos a verdadeiro. E não trata isto uma dificuldade de discernimento, como por vezes podemos pensar, pelo menos em grande número dos casos ocorridos. Trata uma necessidade humana, quase como que uma vinculação que permanentemente procuramos, e que faz com que nos tornemos passíveis de incorrer em situações de desconforto, quando percebemos que as pessoas muitas das vezes não são o que parecem ser. E encontram-se estes fenómenos não só em relações próximas, mas até a um nível de carácter mais abrangente, com identificações ou venerações distantes, potenciadas normalmente pelos média, e que fazem com que ganhemos uma especial afeição por determinada figura, da qual nada sabemos, ou melhor, sabemos apenas o que ela nos quer transmitir, realidade essa que se encontra encerrada num ciclo restrito de comportamentos que se sabem esperados, normalmente agradáveis, minimamente coerentes, ou até o oposto, dependente da imagem que se quer fazer chegar. Mas por muito trabalhada e até consistente que essa imagem possa parecer, esconde por detrás da sama o ser que verdadeiramente se encerra ali, e que poderá nem ter nada a ver com o que vimos, escutamos, julgamos. O efeito seguinte, quando se desmantela o cenário e os ídolos viram gente, com podres hediondos e mal cheirosos e atitudes pequenas ou até imorais, é a desilusão, o espanto, ou a incredulidade, o que em casos extremos pode levar a negar factos, de tão longe que se estava deles. Esta realidade é um sinal mais do que óbvio, da fraqueza que nos governa a existência.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Dias

Existem dias em que por muito que interiorizemos que a vida tem um percurso, saibamos qual é, e não possamos esperar reviravoltas impossíveis, queríamo-las muito. Querer impossíveis é humano, faz parte de nós. Trata desejos, amores, ou outros sentimentos que nos saltam do peito e dos olhos, e ainda de outras partes do corpo, visíveis apenas aos mais atentos. Não que eles sejam escondidos, omitidos, disfarçados, estão lá para quem os quiser ver, a olho nu, por entre os cabelos, nas curvas dos braços, nos pés, quem sabe até por todo o corpo. Mas confundem-se, aninham-se, fundem-se, e talvez por isso deixem de ser vistos logo à partida. Lembro Adelaide, que todos os dias quer o marido de volta. Dentro de uma loucura que nunca percebi bem ser real, ou apenas protectora. Faz-lhe a cama com um preceito irrepreensível, e espera. A única coisa que esta loucura tem de defeito, ou melhor, não será a única, mas será por certo a mais pungente, é o momento da consciencialização de que afinal ele não volta. Mas restam-lhe sempre os momentos antecedentes, a espera, ainda que infundada, do que já nunca vem. A espera ensina-nos coisas, torna-nos pacientes, faz-nos crescer, ou então enlouquecer, o que neste sentido também poderá ser considerado um ensinamento, uma aprendizagem, uma adaptação. Real ou fingida, é esta a vida dela, num misto de sonhos e desejos, vontades e impossibilidades.
Julgo que mais para o final da vida, uma das principais loucuras que encontro trata isto mesmo. Até hoje, e após debruce intenso sobre diversas teorias sobre o assunto, ainda não houve quem me conseguisse convencer, de que determinadas atitudes consideradas como excessivas, não são mais do que um embalar propositado, um querer que se seja sem se ser, uma réstia de esperança de que venha o que já não pode vir. Ele hoje não veio ver-me, disse ainda há pouco. Hesitei, mas acabei por proferir um, amanhã talvez possa vir. Ela sorriu.

Amoras e azedas

Ela subia, eu descia. Encontramo-nos a meio da escada, grosso modo falando, e ficamos por um bocado. Recordamos umas quantas coisas que descobrimos juntas, incluindo o caminho de regresso do meio de um matagal, onde uma vez nos perdemos. Ouvíamos gente ao longe, sinos de cabras, carros que passavam, e só encontrávamos arvoredo denso e escuro. Passado um bom bocado, já quase noite, chegamos a terreno conhecido e juramos que nunca mais nos aventurávamos numa daquelas. Mas aventuramos, uma série de outras vezes, e talvez seja por isso que ainda hoje conheço os muros da serra, como as palmas da minha mão. Seguidinhos, feitos em pedras disformes, que encaixam umas nas outras de forma tosca e grosseira. Guardam as terras que pertencem às gentes, e as vacas e ovelhas que pastam no feno. No meio existem lagoas, uma delas do meu avô. Umas vezes tem água, outras vezes não, mas sapos grandes e verdes tem quase sempre. Só deixou de ter com o tempo, meninas perdidas. Hoje as meninas não brincam no mato, nem sequer as da aldeia. O mato com o tempo também se tornou um lugar perigoso. Por causa disso, não vão poder comer amoras doces e azedas branquinhas. E nem sequer fazem a mínima ideia do que perdem.

Criticas

Recebi uma crítica estranha. Sou boa a receber críticas, aceito-as, não são mais do que meras opiniões diferentes da minha, a coisa mais natural do mundo portanto. Mas esta fez-me pensar. E dizia ela que o meu filho tem demasiado cuidado com os canteiros de flores do vizinho, quando joga à bola. Ora para jogar à bola existem campos, descampados, diversos sítios de erva daninha, e existem os outros, onde muito embora se possa jogar, é necessário ter algum cuidado. Não sei, digo eu. Os outros meninos não se preocupam tanto, são mais livres, diziam-me. O meu filho está prestes a fazer nove e joga bola há muito tempo. Simplesmente tem enfiado no corpo o respeito pelo próximo. E sim, o meu filho é muito livre, embora isso não o liberte da consciência que já construiu e que é um dos meus maiores orgulhos. Estes conceitos de liberdade parecem-me um bocado confusos. Ou são confusas as cabeças de onde brotam em debandada.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Dancing With Myself

Embora não seja propriamente apreciadora do estilo musical, sempre gostei da voz de Adelaide Ferreira. Hoje escuto-a em Alta Definição, e gosto de ouvi-la falar. Não são todas as mulheres da sua idade que conseguem falar de masturbação em público, de uma forma natural e tranquila, quase aprazível. E não é fácil dada a estrutura desagradável da palavra, é feia, normalmente não soa bem.

Sabedorias

Por vezes faz falta às pessoas retirarem-se de dentro de si. Não é fácil, sei disso, implica um desligamento significativo, o entrar em zonas de desconforto a fim de que possamos sentir um ligeiro cheiro da realidade alheia. Não quero com isto dizer que a vida dos outros nos deve interessar, não enquanto interesse desprovido de sentido, pura curiosidade, ou outra do género. Mas enquanto mecanismo potenciador do desenvolvimento humano, penso que deve sim. Quanto mais oiço falar de histórias diversas, que são tantas todos os dias, mais me convenço de que a consciência social é coisa para não interessar nem ao menino jesus. Bem sei que as cargas individuais são coisa para nos tirar o sossego, que os problemas são mais do que muitos e que a nossa vida por si só nos basta para que pensemos sobre ela e esqueçamos o resto. Mas tem um reverso esta individualização. Somos seres sociais desde que nascemos até morrermos e não podemos perder a consciência disso. Se assim não fossemos, ficaríamos condenados a uma evolução sem sentido, centrada no básico que nos sustentaria e nada mais, sem acesso a percursos, ambições, relações. Um vazio impossível de ser, se levado ao extremo o raciocínio. Mas ainda assim parece que cada vez mais se perde parte significativa desta consciência, e se entra em terrenos que me parecem não nos vir trazer nada de bom. Encontra-se nos dias de hoje uma necessidade totalmente subjugada aos interesses individuais, sendo que não paramos um minuto para pensar que se todos fossemos iguais e somente individuais, já teríamos entrado num colapso social, com fim à vista. Mas ainda que não sejamos todos, somos infelizmente muitos. Vivemos centrados nos nossos problemas e esquecemos que ao lado pode morrer gente com falta de auxílio. Vivemos açambarcados pelo dinheiro que falta para o carro quando ao lado alguém tem fome. Passamos os dias a chorar faltas supérfluas quando tão perto de nós falta saúde. Mas que gente é esta em que nos transformamos? Mas que raio de caminho é este para onde tantos caminhamos, com uma pressa exacerbada de chegar, sem sabermos sequer para onde vamos? Mas porque nos será tão difícil encaixarmos-nos no mundo onde crescemos e ao qual pertencemos, e insistimos tanto em usá-lo sob nosso belo prazer, totalmente inconscientes de que um dia, e a seguir a naturalidade da evolução, vamos precisar de quem cá fica, mais novo e mais capaz, mas criado num mundo sem sentido de auxilio ao próximo, sem regras de cidadania, sem adequada convivência social? O que esperaremos desse mundo que por ora criamos? O que julgamos que nos irá fazer, quando dele carecermos? Se calhar há muitos que não sabem, mas eu julgo que sei. Porque no fundo, e sem pensarmos nisso, acabamos muitas vezes por agir em coerência.

Sol

Há muitos anos, a minha vizinha Russa deitava-se na varanda de trás a apanhar o primeiro sol de Primavera. Não era este claro, que é de Inverno, era outro ainda mais quente. Vestia um biquíni florido às rosas muito grandes, estendia uma manta no chão, e deitava-se horas, enquanto a sua pele engelhada e leitosa estrugia ao calor. Este sol de hoje despertou-me umas sensações fortes, julgo que até memórias, talvez porque tenho tempo de olha-lo, de senti-lo. É engraçado como tenho muitas memórias arrumadas em espaço incerto. Que me surgem apenas em determinadas situação, para depois deixarem de existir, até novo apelo. A nossa memória é uma coisa extraordinária e ao mesmo tempo assustadora. Permite-nos a salubridade da aprendizagem, do crescimento, da vida, pelo que armazena e tão prontamente recupera. Prende-nos por vezes os passos, se não conseguirmos arrumá-la devidamente, e expulsar-lhe de dentro ocorrências malditas. Todos as temos.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Mocho




As coisas não significam sempre exactamente a mesma coisa, em todas as horas, em todos os lugares, da forma como aparecem. Lembro com frequência um episódio que passei em criança e que tratou um enorme mocho que entrou pela janela no quarto da minha avó. Deve lá ter passado toda a noite, sem que ninguém desse por ele. Pela manhã, sou eu que o descubro apoiado na porta, imponente, com uns olhos redondos e gigantes a olharem-me fixamente. Não teria tido qualquer receio dele se o visse na rua, mesmo de noite, dependurado numa árvore, como tantas vezes ocorreu. Na porta, fora de sítio, assumiu-se como assustador, não pertencia ali, metia medo. Existem mais coisas assim, em diversas dimensões. Que no local e no tempo exacto são inofensivas, ou no mínimo toleráveis, mas quando em desencontro podem ser perturbadoras. E com isto tudo não quero dizer que somos intransigentes, rígidos, severos. Quero apenas dizer que temos hábitos, construímos esperanças, criamos zonas de conforto. E depois existem alterações, adaptações pacíficas, cedências do corpo ao mundo. E outras que nos causam um desconforto de morte, com as quais lidamos com um sentir esquivo. Não era ali, era em outro lugar.

Amélia, esperando muitas felizes

Não me quero querer que o nome que nos deram à nascensa possa significar os azares da nossa vida. Mas não quero querer apenas porque me parece absurdo tal ajuntamento, uma vez que poderíamos ter, e por obra de alguma alteração de humor circunstancial de um dos nossos progenitores, vindo com um outro nome, que nada tivesse a ver com o que de facto temos. Eu por cá já vos falei do meu problema sério com uma Nazaré Cristina, que ia sendo eu, um horror no qual já não vou debruçar-me mais por cá, sob pena de um dia o nome pegar, assim género alcunha, pseudónimo forçado, o que for. Mas de qualquer forma e a ter sido essa a minha graça, ou desgraça, não sei bem, não me parece que por isso, e apenas e só por isso, fosse detentora de uma outra sorte diferente da que tenho. Digo eu, sem forma alguma de vir a provar tal afirmação, claro está. Mas tudo isto para dizer que conheço muitas Amélias com azar na vida. Poderá ser uma mera casualidade, um facto sem qualquer ligação, mas não deixa de me soar a estranho a carga de Amélias que eu conheço abandonadas, adoentadas, azaradas, amarguradas. Abandonadas por um marido, adoentadas fora do tempo, azaradas nas escolhas, amarguradas por consequência. E a verdade é que nem conheço tão poucas Amélias quanto isso, são algumas, várias até. A última que me chegou às mãos perdeu a fala. Chega-me muita gente que perdeu a fala, que vive dentro do corpo que apenas se esvai em lágrimas e silêncios. De vez em quando esboça um sorriso tímido, de imediato apagado por um semblante carregado, sempre igual. Assusta-me esta prisão do silêncio. O querer pedir sem conseguir, o querer dizer sem que nada saia. Seria provável que se outro nome lhe tivessem chamado, tal ocorrência também se tivesse dado, isto seguindo o raciocínio que atrás refiro. Mas por obra do acaso é Amélia, e engrossa-me o rol das Amélias sem sorte na vida.
Hoje sorriu-me, por entre um rosto rosado pelo calor dos afagos de quem lhe está perto. Disse-lhe bom dia Dona Amélia. E aquele nome soou-me tão mal.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Da espontaneidade

Só a propósito do poste abaixo, venho deixar uns pensamentos meus. Se há exercícios que faço com gosto é imaginar impossibilidades. Coisas que nos poderiam ocorrer, mas que à luz da realidade tal e qual a conhecemos, seriam completamente impossíveis, não teriam execução. E estas imaginações podem ser de carácter diverso, sendo que podem entrar na existência de homenzinhos verdes a povoar a terra, só porque isso seria engraçado em termos de distracção, quando o espírito anda pesado, e a alma pede sorrisos, até a algumas simples variâncias que poderíamos introduzir na educação, no crescimento, na vivência dos dias. Não posso deixar de me inquirir como seria o mundo sem censura, e inundado de espontaneidades e genuinidades. Sem aquela coisa chata e castradora do não posso fazer isto porque parece mal, do não posso dizer aquilo porque posso ferir susceptibilidades, ou do não posso gostar de fado porque o meu grupo de amigos não gosta. E diz que é chato, logo o melhor é eu dizer que é chato também, ainda que a melodia do mesmo me embale pelas ruas de calçada Lisboeta. E então ouço-o escondidinho no meu quarto, no calor da noite, ou quando muito no sossego da tarde, de estores fechados até abaixo não vá o som escapulir e invadir as ruas, coisa terrível seria, com todos os outros a chacotear o som que me entra nos ouvidos, estranhos e obsoletos.
Bem sei que se ela existe, a censura, é porque provavelmente é coisa para ser mesmo necessária, porque nos barra os exageros, nos molda os actos, nos segura as entranhas, que a agirem livres poderiam até deixar-nos à mercê de algum sarilho, que o ser humano é bem capaz de se envolver neles, têm até uma especial graça, um jeito muito próprio, de nos espreitarem da soleira da porta exactamente onde iremos passar. Mas ainda assim, ainda que a sabê-la precisa, até talvez organizadora, para balizar uma mente gigantesca onde tudo pode caber, não consigo deixar de imaginá-la ausente, ou ainda pouco trabalhada, especialmente quando encontro olhos ingénuos, crentes, sinceros. São normalmente tão felizes.

Assuntos dignos de estudo

Estranho o olhar muito grave, completamente espalmado de encontro ao jogo, ainda com uma lupa no meio.

- Que se passa filho?
- Estou a estudar. Espera...
- A estudar? Na Nintendo???
- Estou a estudar a textura da Nintendo. Deixa. Tu não percebes!!!

Percebo, claro. Para quê estudar texturas chatas, como folhas ou outras, se podemos estudar as da Nintendo.

( Fiquei ofendida. Claro que eu percebo. Eu percebo os crescimentos. Acho-lhes graça, pela genuinidade. Nada é mais genuíno do que o crescimento infantil.)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Poucas falas

As poucas falas podem assustar. Não sai o que vai lá dentro, a reserva impõe-se, sentimos desconforto. Depois, e à medida das horas, dos dias, do tempo, sentimos que as poucas falas podem ser confortáveis, sinceras, quase que doces. Nem sempre, claro, mas podem. Acabam por ser muitas vezes apenas uma reserva. Ou então, ainda mais simples, uma forma de se estar e de mostrar ao mundo que as palavras em demasia nem sempre significam transparência, valor e dedicação.

Solidão

A solidão extrema pode ser isto. Duas irmãs que vivem sozinhas. Uma morre aos pés da cama e a outra, talvez até sentindo tudo, por dependência, morre de fome. Não tenho medo de muitas coisas. Tenho muito medo da solidão.

Sabores

Comi agora um pudim de coco. O coco é daquelas coisas da vida, poucas, que nunca me traíram. Vem sempre em sabor adocicado, nunca me enjoa, e apresenta aquela textura própria, granulada e agradável. Independentemente da confecção, do ponto do açúcar, do envolvimento. Sabe-me sempre bem, e ocupa um pódio especial ao lado do bacalhau, do sumo de laranja e das chiclets que acabaram não sei porquê.

Das circunstâncias

Haviam coisas que lhe aconteciam fora do tempo. Por vezes também fora do lugar, que caso não saibam o nosso corpo é sujeito à circunstância, somos nós e é ela, sempre, desde que nascemos, enquanto crescemos, quando morremos. Nem sequer nos debruçamos muito sobre isso, entregamos a nossa ocupada mente a outras preocupações, de resto muito mais proveitosas, que essa circunstância escapa-nos quase sempre dos dedos, nada podemos contra ela, pelo menos quando se mistura com acasos, sortes, azares. Quando sentia essas ocorrências inoportunas, tentava por norma fugir, adiá-las um bocadinho, vivê-las mais logo, quem sabe assim bateriam no lugar exacto em que deveriam acontecer, e não totalmente despropositadas, sem qualquer proveito para a sua evolução. Sabia porém que corria o risco da perca. A circunstância também tem destas coisas, que quando não aproveitada na hora exacta em que se dá, pode até vir a esvair-se para sempre na vagueza do mundo, salvando aqui algumas misteriosas que parecem suster-se no ar, meio adormecidas, que quase nos dão a sensação de terem sido feitas exactamente para a nossa pessoa, tal a calma com que nos aguardam a levitar, mesmo em frente ao nosso corpo.

Dores

Com muita pena minha, e sob o brio profissional pelo qual me rejo, não posso dizer às pessoas tudo aquilo que elas querem ouvir. Não raras vezes, e pós avaliação séria sobre a problemática apresentada, descubro sentires julgados descabidos, verdades ocultas que podem fazer doer. Não é rara a verdade doer, é até muito frequente. No dia a dia é muito mais fácil encontrar justificações que até já fazem parte de nós, para explicar o que de menos bom nos acontece. Uma tristeza que provém do stress, uma moinha no corpo que emerge de uma noite mal dormida, um desconforto na alma que veio apenas porque o dia de trabalho apertou. Quando se descobre que a causa é outra, vinda muitas das vezes de onde menos se espera, rejeita-se. Julga-se exagero, não apraz ouvir. Era muito mais fácil receber uma confirmação do que já se sabia, sendo que com uma boa noite de sono ou com um fim de semana fora, tudo passaria. Tenho muita pena de não poder dizer isso com mais frequência, seria mais fácil também para mim. Mas a realidade muitas das vezes não é essa. E dói. A realidade às vezes dói.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Amores públicos

Às vezes encontro declarações de amor via blogue ou de um blogue para outro, muito profundas e a soar a ridículo, tal e qual como quase todas as declarações de amor, que soam bem apenas ao destinatário. E penso para mim que pensará esta gente da minha vida, que não publico se me amam, se me presenteiam com flores ou não, que só falo de mentes chatas e assuntos ainda mais chatos, ao invés de postar os agrados, os presentes, os amores e os desamores. Há vidas com graça e vidas sem pontinha por onde se lhe pegue, e eu de facto devo fazer parte daquela lista de pessoas que tem uma vida sem qualquer interesse, juntamente com outras desgraçadas que por cá andam, uma vez que não apresento dedicatórias lamechas, não troco intimidades públicas com ninguém da blogoesfera, e nem sequer costumo postar aqui todos os presentes que me dão, todo o amor que me juram à luz das velas, todas as ginásticas, pinos e mortais empranchados que fazem para ter a minha companhia, só porque me amam daqui até à lua. Se calhar nem tenho nada disso, que sou uma infeliz sem aconchego, que só se agarra ao gato e ao saco da água quente ( ou então, nem tenho gato). Fica no critério de cada cabeça , à qual tal assunto importante possa interessar, adivinhar nas entrelinhas se sou uma mulher realizada ou frustrada, amada ou odiada, se durmo sozinha ou acompanhada. Mas gosto, gosto muito de deixar uns lamirés inconsequentes, a fim de gerar pensamentos alheios, que por vezes devem andar perdidos, sem saber em que direcção hão-de voltar. Oriundos de determinadas cabeças, claro, que tenho por certo nem serem a maioria das que por cá passam. De qualquer forma, e se por ventura alguma por cá se perder, só assim para ver por onde me mexo, se ando bem ou nas ruas da amargura, atentem só a uma coisinha. Há coisas, meninas, que se dizem no calor de um abraço, no aconchego de um pescoço, no intervalo de um beijo. Ou então, escrevem-se num bilhete escondido e destinado a uma única pessoa e não ao mundo. Porque o amor entre duas pessoas, e a ser a sério, íntimo, profundo e apaixonado, a sair para fora sai em forma de graça, de carinho, por vezes envergonhado. Agora estes engrandecidos pelos olhos da envolta são suspeitos, vazios de conteúdo, possivelmente sem direcção segura. A existir essa, a verdadeira, dispensavam esta com toda a certeza.

( Às vezes dão-me estes ataques típicos e muito poucochinhos de espicaçar outras condutas femininas. Não estranhem. Tenho muitas alturas da minha vida em que sou uma mulher acabada em zinha)

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Ela ia do lado direito da estrada com um casaco preto muito comprido que segurava com força à volta do pescoço. Tinha muita idade, dava para perceber, pelo cabelo, pelo andar lento, pelo enrugado do rosto. Caminhava porém erguida, numa pose já pouco vulgar na idade. O corpo tem por hábito encurvar, enrijecer, encolher. Lembrou-me a Júlia, exactamente o oposto. Com os anos regressou devagarinho à posição que a viu nascer, enroladinha, com o nariz quase a tocar nos joelhos. Poderá até ser que essa regressão, ainda que física, nos venha pela necessidade de afecto que a mente desenvolve, à medida que a deixam desamparada. A pose aristocrática é bela, mas impõe respeito e distância. Nada é mais apelativo que um corpo enrolado, mirrado, aninhado, quase adormecido.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Perdições

Fui à padaria da Dona Antónia. Comprei duas broas de batata doce, meia dúzia de bolos de milho, umas línguas de veado. Há muito que aquela mulher anafada se dedicou à confecção de bolos e pão, numa terra situada no meio de uma ribeira que dizem que é branca, mas eu não acredito. Não existem ribeiras brancas, existem ribeiras verdes, castanhas, pretas e sujas, mas branca nunca vi nenhuma. Tem dois sobrinhos que não lhe ligam, muito diferentes um do outro. Um manda o outro deixa-se mandar, uma espécie de compatibilidade levada ao extremo, uma complementaridade pouco vista nos dias da terra, eu ainda sonho em encontrar uma assim. Não fosse este e outros exemplos de diferente carácter que vou encontrando na minha vida, e já teria desistido de tal procura, improvável, quase impossível, a bem da verdade. Mas assim, e tendo modelos destes e de outros ainda mais concretos, sem implicarem laços de consanguinidade, se é que me explico, encontro-me com a minha pobre alma em profundo devaneio, numa busca incessante de uma perfeição sonhada, ambicionada, por certo inexistente. Adiante dirão vocês, que não perco uma onde possa deixar um dedo de mim, um cabelo enxovalhado, uma míngua de pele ressequida, mas a verdade verdadinha é que ando aqui por todo o lado.
O que manda manda muito mal. Manda-lhe um corpo que fala muito mais alto do que a mente, uma mente fraca e definhada, que mal o sangue escorre mais forte, persegue-o, corre-lhe atrás, não lhe deixando um minuto de sossego que seja, o malvado enraivecido. O outro, mandado por este, faz pouco que jeito tenha. Deambula nas horas dos dias, come bolos da padaria da tia, e acode ao serviço do irmão, que às vezes já não tem corpo que chegue para o que a vida lhe pede. Dizem que a vida pede muito, e nisso eu acredito mesmo a sério. Antónia acode sempre que pode, à distância, mas já pode pouco. Faz línguas de veado, broas de batata doce e outros bolos secos, que vende depositados dentro de um saco de papel pardo exactamente igual ao da padaria mesmo ao lado de minha casa. Já comi uns poucos, são doces, muito açucarados. Dona Antónia confecciona-os dia a fora e noite dentro, enquanto lhe batem na porta e lhe trazem desgraças fortes. Antónia, não quer acreditar nelas. Fecha então os olhos com muita força, enquanto envolve as mãos grossas na massa leveda. Tende bolaria perfeita que polvilha com açúcar em pó, e lambe os dedos lentamente, enquanto vive ali, alimentando um corpo que lhe pertence para todo o sempre, e que nunca a abandonou.

Hoje

Cada vez mais bebo o modelo relacional com o qual trabalho. É um privilégio, uma primazia. Não me imaginava de forma alguma a fazer todos os dias da minha vida, qualquer coisa da qual eu não gostasse. Não podia gastar as parcas horas do meu tempo a contabilizar números que os outros construíram, a governar dinheiros que outros ganharam, a projectar casas para outros morarem, a aplicar leis que governam o povo. Respeito muito quem o faz, louvo as aptidões de precisão e competência necessárias para que o trabalho saia na perfeição e no rigor exigido, mas não me prestava para isso. Preciso muito de gente para ser feliz, e aqui, tenho de considerar, emerge provavelmente toda a minha veia recalcada da dependência, do reconhecimento, da retribuição. Não sei, digo eu sem querer aqui levantar qualquer falso testemunho no que confere à idoneidade da minha pessoa. Ainda assim, e mesmo encarando muito a sério esta possibilidade, a verdade é que o meu trabalho me realiza cada vez mais. Não poderia também, e apenas para esclarecer algum eventual entendido na matéria, que por algum azar de percurso por cá passe, trabalhar subordinada a alguma linha concreta, sob regência dos modelos cognitivo comportamentais, por exemplo, muito eficientes, sim senhor, mas com os quais não simpatizo mesmo nada. Preciso mesmo é disto que me acontece todos os dias sem excepção. Eu estou lá para me dar, para ouvir e para retribuir, para representar um cuidado muitas das vezes ausente, para permitir que se tranquilizem à minha custa. E pronto, vá, se me responderem com um sorriso, tanto melhor. Não me traz esta minha mania muito mais para além de um ganha pão minguado (não tanto como o do nosso senhor presidente, mas enfim, minguado), que dá para o dia a dia, e pouco mais. Sou da classe das profissões sociais, uma chatice, sem graça e prestígio algum. Mas existem dias, como o de hoje por exemplo, em que por motivos de força maior tive de me rodear de papéis, homens que fazem contas gigantescas e que raciocinam muito alto, e mapas de estatística que mais me parecem chinês, em que volto a reiterar que gente, por complicada e pequenina que até possa ser, é sempre muito mais interessante do que números, raciocínios lógicos e resmas de papel reciclado, áspero e mal cheiroso.
Nunca fui muito dada a matemáticas, no fundo é isso. Aquela exactidão infalível dá-me cabo do sistema, faz-me nervoso miudinho.

...

Havia dias em que se cansava das ausências. Outros havia em que se inquiria dos sonhos, dos objectivos, à cerca da solidão da distância. Devaneios, completos e infundados. Concluía isso vezes sem conta, sem grandes pensamentos e esforços internos. Corpos que se pertencem, peles que se conhecem como se da própria se tratasse, bocas que se unem mesmo em fuga, olhos que entram para dentro do corpo e o desvendam, devagarinho, junto ao toque dos dedos, não são a perfeição, mas está lá muito perto. A ter o resto que falta era mesmo perfeito. E a perfeição é coisa para nunca existir.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Arrumações

Às vezes sinto que me olham com um olhar estranho como se eu fosse estranha. Estranha porque não me vergo perante circunstâncias formatadas, que muitas mulheres vivem, em estado de anulação permanente, transmitindo para fora um modelo de exactidão, uma conduta a seguir, um estereótipo cumprido, porque as regras mandam assim, enquanto lá dentro as percorrem infelicidades, muitas das vezes cedências descabidas, tristezas recalcadas. Estou muito bem, obrigado, e tenho resolvidas, ou estou a resolver, todas as minhas questões de fundo, as importantes, as que me fazem prosseguir nos caminhos que julgo prudentes, acautelando sempre os interesses daquele que considero merecer reflexão e cuidado supremo, o meu filho. Salvaguardando isso, mantendo a segurança do seu futuro, dentro dos limites do que me é possível manter, deambulo e construo a minha vida como me apetece. E o que me apetece varia, tem dias. Mas vai sempre de acordo com as minhas ambições e projecções, dentro dos fronteiras que atrás refiro. E nunca por nunca ser, irá de acordo com as regras de uma sociedade ainda inundada de estereotipia e rigidez, ou das ideias de pessoas que se julgam capacitadas para opinar sobre os caminhos que escolho, que são meus e de mais ninguém. Pode até não saltar para fora, que também não faço questão de publicitar estados de espírito, mas garanto-vos que a concordância entre o que se quer, se pode e se faz, nos dá uma tranquilidade boa, apaziguadora, imune aos ditamos sapientes. Por certo muito mais prazerosa do que aquelas projecções apreciadas em sociedade, da coerência externa, da mão na mão e do lado a lado, ao Domingo na missa ou às compras no Shopping center, minadinhas de desarrumação interna. Mas eu percebo o desconforto de algumas gentes. Irrita-me porque me invade, mas percebo.

domingo, 22 de janeiro de 2012

...

Houve um pai que castigou a filha, e a deixou durante nove anos fechada numa casa de banho. Este é um bocadinho, por ínfimo que seja, do mundo onde eu vivo.

Tempo

Quando leio algo e chego ao fim sem me lembrar do que li, é sinal que não valeu a pena ter lido. Não me custa nada deixar essas leituras a meio. Dantes custava-me, obrigava-me a terminar tudo quanto começava, numa teimosia séria que não me levava a lado nenhum. Uma rigidez que me acompanhou em determinada fase da minha vida. Hoje passou, sou mais flexível, adaptável. Em tudo. O que me vale a pena, vale, e o que não vale, não vale. O tempo de que disponho é um luxo a dosear com muito cuidado.

Costura

Quando penso no que poderia ter sido, concluo logo que poderia ter sido muitas coisas. Não nascemos fadados a algo dado à partida, muito embora eu respeite o fado, o destino, como um qualquer terreno poderoso onde por vezes somos obrigados a entrar. Nem tudo está nas nossa mãos, talvez seja isto o que quero dizer. Poderia ter dançado, que a música entra-me no corpo e toma conta de mim, embala-me, sossega-me, desconserta-me, depende da música, da situação. Mas leva-me sempre, nunca lhe fico indiferente. Poderia ter cozinhado, que os cheiros da comida é qualquer coisa de sublime, quase superior ao sabor. O cheiro entra-me pelas narinas enquanto cozinho, percorre-me o corpo por dentro, e deixa-me adivinhar paladares, desde a pimenta ao sal, que podem estar na medida exacta, ou a carecer de rectificação, tendo ainda em conta o gosto particular da situação. Mas costura, talvez seja costura a minha real paixão. Tecidos coloridos, dedais, linhas e máquinas que calcorreiam o pano com jeitinho, e o deixam transformado em algo que nos enfeita, nos aquece, nos envolve. A minha vizinha de baixo costura muito noite dentro, e eu fico a ouvi-la com gosto, agora pára, agora arranca, enquanto imagino dentro de mim as peças que lhe saem dos dedos velhos e encarquilhados. Há quem me diga que ela não costura nada e que o que oiço é a costureira de tempos passados, condenada para todo o sempre a um labor sem fim, por tê-lo feito em dia santo sem dever. Não acredito nessas lendas. Ou melhor, não me apraz acreditar que gosto de imaginar o que dali nasce, feito a preceito, quiçá vestidos esvoaçantes, quiçá camisas floridas, que sairão directas de sua casa para corpos leves e felizes. Se eu fosse costureira faria especialmente casacos. Todos os que me conhecem sabem esta minha perdição. Com botões, com atilhos, de cinto ou a cair, compridos ou muito curtinhos, gosto de todos sem excepção. Aquecem-me, envolvem-me, compõem-me, enfeitam-me. Uma noite destas meti-me à escuta. Peguei num copo de vidro, ouço dizer que traz melhor som, e encostei-me ao soalho do chão, a fim de tentar perceber se aquele chilrar certo e ritmado era real, ou fruto da minha imaginação. Ouvi tudo muito certinho, desde o rasgar do pano, ao corte da linha, ao deslizar do pedal. No dia seguinte ao descer, encontro-a cá fora, coisa rara, envolta num lenço florido lindíssimo, que lhe compunha a velhice. Estive quase a pedir-lhe um. Não fosse naquele dia estar calçada à tempo considerável, teria ousado a tentação.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Imaginação

Na casa da tia Augusta ardia sempre um tronco de árvore grosso, que se consumia devagarinho na lareira alentejana, ali para os lados do Ribatejo. Moravam lá uma série de irmãos, uns homens outros mulheres, que partilhavam um sofá grande e esburacado situado defronte à lareira. Aquela lareira tinha um som diferente das outras lareiras que conheço, e fazia uns estalidos secos, muito seguidinhos, que permitiam que a envolta acordasse dos sonhos que ali sonhava, uns a dormir outros acordados. Ela sonhava acordada com uma intensidade muito grande, tal e qual fosse mesmo verdade tudo o que lhe vazava da mente. Havia momentos, em que se inquiria a ela própria se a história da noite anterior teria sido apenas dela, vivida por dentro do corpo, à mercê da imaginação, ou se por ventura teria sido real, tal era a exactidão dos pormenores que recordava, como o cheiro a pão, ou o calor da mão. Bastavam-lhe então uns minutos de concentração, um olhar em redor, um sentir mais apurado, para de imediato perceber que tudo aquilo não passavam de imaginações construídas, vindas directamente do querer, a maior das nossas alienações. E digo a maior das nossas alienações, não sem ter consciência do importante papel que tem nos nossos caminhos, nas nossas escolhas, nas nossas vivências. Digo-o apenas, porque não obstante toda esta vertente altruísta que nos deposita no corpo, acaba também por vezes por nos frustrar a existência, quando se assume exigente, exacerbado, infundado, ilimitado. A linha ténue que divide o mundo possível do impossível deixa-nos por vezes confusos, tal e qual a deixava a ela, igual a todos nós. Desenvolveu-lhe com o tempo uma relação muito especial. Sentada em frente à lareira sonhava todos os seus quereres devagarinho. Construía histórias com princípio, meio e fim, locais de execução do querer, companhia, solidão. Com o tempo deixou de destrinçar realidades de imaginação. Eram apenas as suas vontades, que sentia intensamente, quer vividas, quer sonhadas, quer apenas imaginadas.

O poder do agora

Precisava agora de ir de férias. Enfiar uns calmantes no estômago para me conseguir sentar num avião e deixar-me lá ir dentro durante umas boas horas, sem vontade de saltar pelas janelas pequenas de onde só vejo nuvens, e aterrar, sei lá, em Nova York. Entrar nas lojas que me apetecesse, comprar o que eu quisesse, esquecer-me por um bocadinho que fosse de que a minha vida é cheia de responsabilidades inadiáveis, correrias intermináveis, pessoas que me levam o tempo, a disposição, o corpo e a alma. Quando voltasse, poderia estar aqui tudo outra vez, que a vida é assim mesmo. Dentro da mala Chanel que traria ao ombro, e do alto dos Manolos que traria nos pés, nada me atingiria, pelo menos durante uns quinze dias. Depois logo se via, que o que me interessa é o hoje. Ontem comprei um livro que me deixou assim. O Poder do Agora de Eckhart Tolle. Diz ele que os deprimidos vivem lá atrás, os ansiosos vivem lá à frente, e os que vivem agora são os que são realmente felizes. E eu agora seria muito feliz em Nova York.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Lanzarote

Investi cinco euros e qualquer coisa no primeiro Caderno de Lanzarote. Provavelmente continuarei a investir nos seguintes, ainda que o tempo que dedique às minhas leituras seja por ora minguado, quase inexistente. Ainda ontem, e após horas de teclas infindáveis que insistiam em correr-me pelos dedos, tentei pegar-lhe. O mesmo estilo que tanto aprecio, a mesma linguagem, o mesmo homem. Gosto de escritores consistentes, que escrevem sempre da mesma forma, por monótono que isso possa vir a ser. Não foi da monotonia, tenho por certo. Mas findas poucas páginas, as suficientes para amar o que li, fechei os olhos e adormeci. Hoje de manhã acordei lá, em Lanzarote. Ao meu lado estava uma pessoa. Dei-lhe a mão, sorri, e andamos muito tempo a pé na areia. Nunca nos podemos olhar.

Louros

Parece que anda ai um qualquer desconforto entre a Teresa e a Júlia. Um problema digno de real reflexão, tenho a dizer-vos, pelo que continuemos para isso mesmo. Uma é que foi convidada, a outra é que fez, o programa foi um sucesso, e agora puxam-se os louros de esguelha, que a bem ser seriam da Júlia, assim foram da Teresa, porque a primeiríssima escolha não aceitou. Isto na vida, e caso não saibam, funciona assim. As rejeições por vezes ficam-nos dependuradas no corpo para todo o sempre, e existem dias, ou talvez até seja melhor dizer noites, em que a insónia se instala e a alma faz doer, em que procuramos por dentro o porquê da renúncia que nos teria trazido muito, e que assim levou para outras mãos tanta riqueza e projecção. Por norma nem se descobre tamanha verdade, terá sido por certo um acaso, ou uma simples má avaliação. Provavelmente e na época da decisão, parecia até significar coisa pouca, equivalente a uma qualquer outra escolha do quotidiano, um vamos para aqui ou vamos para ali, um ficar em casa ou ir de fim de semana. Nunca pensamos bem a sério nisso, que por vezes, e até mesmo nestas pequenas opções dos dias, escolhemos caminhos de uma vida, totalmente impossíveis de terem sido seguidos se a preferência tivesse sido outra. De resto, e a bem da sanidade, não vale a pena debruçarmos-nos sabre tal problema, que a assim ser entraríamos por certo num colapso interno de dimensão avassaladora, tal a impossibilidade de analisarmos tudo o que deixamos para trás das nossas selecções ocasionais. Nunca mais esqueço o choro interno e destroçado do meu avô, que recusou uma oferta próspera de trabalho na Holanda, aceite por um mísero sucateiro da aldeia, que foi o suficiente para que este enriquecesse em tempos de fome, e construísse uma vida digna e abastada, enquanto o meu avô continuou eternamente a curtir peles mal cheirosas, nas fábricas geladas de Vila Moreira.
Quanto às senhoras, tenho a dizer-vos que de facto qualquer uma delas é uma excelente escolha para o género de programa em questão. Ambas são deveras embirrantes, vestem-se horrivelmente mal e soltam gritinhos histéricos em momentos chave. Aguardo, em estado de verdadeira ânsia, mais do género em questão.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

...

- E a minha querida, o que é que acha?
- Acho que se o meu companheiro diz, deverá, com toda a certeza, estar coberto de razão.
- Ai mas que simpatia a sua, minha cara amiga.

O que vale é que há gente querida que está sempre coberta de alguma coisa decente. Razões, simpatias, enfim. Eu, por aquelas alturas do diálogo, estava completamente coberta de vontades promiscuas, obscenas, lascivas e indecentes. Era a única forma discreta de me distrair sozinha, me abster da pequenez, e de não vomitar para cima daquela doçura mais do que fingida.

Nazaré Cristina

Existem ocorrências que me escapam à catalogação. Dou voltas dentro de mim, vasculho os compartimentos e hesito entre arrumá-las no medo, na revolta, na compreensão, ou ainda entre laminá-las de forma miúda, e enfiar em cada um deles um bocadinho, a fim de destilar o sentimento. Chegou. Maria do Rosário, entre outras do mesmo nome. Deitou-se, acolheu-se, apenas até eu perceber, por mero acaso, não ser aquela a que eu esperava. Tinha vindo por engano, numa maca trasportada por uma ambulância desconhecida. Vestia um pijama polar dois tamanhos acima do dela, e tinha quatro filhos e vários netos, foi o que consegui apurar antes de me dar conta do engano. Coube-me a mim dizer-lhe que afinal não pertencia ali. Que tinha de ir para um outro sítio que nem eu nem ela sabíamos qual era. Era um outro qualquer, com todas as inerências que as incertezas acartam, sabíamos isso. Olhou-me com uns olhos um tanto ou quanto assustados. Perguntou-me que confusão era aquela, onde estavam os seus. Os dela, eu não sabia quem eram e muito menos sabia onde estavam. Estavam algures perto de uma terra distante, dizia-me. Que incoerência. Um engano, um simples engano. Um sobrenome esquecido, um caminho enganado, que entretanto se remendou. Ficou-me porém um desconforto interno. Trocou-se gente, não é exactamente igual a trocarem-se outras coisas, como pertences pessoais. Eu própria já troquei uma mala. Até aceito com relativa facilidade as trocas feitas em gente consciente, e por gente consciente. De uma por outra, de esta por aquela, do daqui para ali. Mas estas trocas de gente que depende de outros e que vai para onde os levam, é no mínimo perturbadora. Num ápice, e sem conseguir fugir, construí uma história idêntica de um futuro para mim. Esperarem-me num lado, levarem-me a outro. Encontrar gente que me recebe mas que não é minha, e posto isso tenho de ir embora. Ainda para mais tenho um nome do mais vulgar que pode haver. Nasceram naquela época toneladas de mulheres com o mesmo nome que o meu, motivo mais do que suficiente para que a minha preocupação se eleve até ao limite do desconforto, pela extrema possibilidade que existe de um dia ser trocada por outra. Afinal, a triste ideia tida por minha mãe de me chamar Nazaré Cristina, um nome repugnante mas nada vulgar, de imediato renegado pelo meu querido pai, poderia até nem ter sido completamente má.

Quedas

Acho de uma presunção sem tamanho frases como, nada nem ninguém me vai derrubar. Não sabemos estas antevidências e para além disso somos donos de um corpo e de uma mente fracos e entregues à sociedade, facto mais do que suficiente para que a queda possa acontecer. Até acharia bonito, numa constatação de uma auto estima e projecção futura salutar, uma tentativa de que isso aconteça. Um vou tentar que nunca me derrubem, nem eu mesma, que sou muito bem capaz disso. Arrepiam-me afirmações de carácter forte quando atribuídas a comportamentos humanos. Poderemos utilizá-las, claro, mas com o devido respeito que a nossa mutabilidade merece. Não somos estanques, crescemos ou diminuímos. Não somos sozinhos, somos sociais. Não somos sólidos, somos adaptáveis. E corremos a vida toda o risco de cair. A constatação desse facto dar-nos-à a hipótese da prevenção e do crescimento, mantendo ainda assim o risco da queda. A negação vai incluir-nos no terreno ocupado por aqueles que não acreditam que habitamos numa sociedade maldita, invejosa, egoísta e castradora. Ou no dos que acreditam que são imunes a tudo isso. Ou ainda no dos que se julgam muito melhores e capazes de suportar tudo e todos. Todas ilusões, das maiores que podemos ter. Até porque, e a admitir alguma consistência que até nos possa proteger, essa não nos nasce só porque a mandamos em forma palavras fáceis, da boca para fora.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Saltos

A minha vizinha de baixo voltou a esperar-me. Quer que eu ande em pézinhos de lã, que me descalce mal chego, e que me calce só quando voltar a sair de casa. Está na reforma a minha vizinha, e como passa o dia em ócio, é frequente esperar-me envolta num robe cor de rosa bebé, muito peludo, que me parece extremamente fofinho. Se não fosse a carga de trabalhos que me acarta calçar-me apenas quando saio à porta, fazia-lhe a vontade. Mas de facto atrapalha-me, não me dá jeito. Só depois dos saltos nos pés consigo acabar de fazer tudo. Vestir o casaco, terminar o lanche da escola do meu filho, escolher os brincos que me compõem. Ela não sabe, mas tem em mim um aliado. O meu costado, malvado, que de vez em quando se queixa aqui do alto do meu metro e sessenta e cinco, nú, escalavrado, torto e encovado. Uns ossos entorpecidos sem qualquer réstia de graça, ao pé do robe felpudo da minha vizinha, e da sua presença possante. Pobres que são. Por muito que me agonizem o corpo, nunca questionei os saltos por causa deles.

Sabedoria

A supremacia é algo hediondo. Toda a gente é boa em alguma coisa, menos boa em outra, somos assim. O julgar que nos eleva sermos donos da verdade, sabedores supremos de muito e de tudo, é o primeiro sinal da verdadeira ignorância. E aí sim, somos muito diferentes uns dos outros. Ou seja, uns mais ignorantes, outros menos, e nas mais diversas vertentes que a mesma pode ter. Normalmente os sabedores, ou seja, os mais ignorantes, são os que menos aceitam esta dura verdade. Julgam-na mesmo ofensiva, indigna deles, puros conhecedores, quiçá até em demasia. Uma vez encontrei um destes. Ou melhor, já encontrei vários, mas é que este sabia mesmo muito. E é engraçado que nunca deixou de saber. Sabe, há anos consideráveis, exactamente a mesma coisa.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Dias

Já me tinha esquecido o que é enfiar-me dentro de um comboio em hora de ponta, em que as misturas de gentes se fazem valer, e onde entra o executivo munido do seu computador portátil, o soldado que vai de fim de semana, que não foi o caso que hoje é terça, a cigana que vende na feira de sabe-se lá onde e leva a carga numa trouxa de pano encardido, e os estudantes que se arrumam aos magotes, enquanto ouvem música no iPhone e mascam pastilha elástica em forma de ruído. Entre outros. Enquanto as estações passam faço sempre aquele exercício engraçado de olhar pela janela e ver quem fica, e que provavelmente nunca mais vou voltar a ver. E se voltar, o mais certo é nem dar por isso, que os rostos são coisas que se somem no tempo, esquecemos os traços, os contornos, as definições. Os olhos são um sentido fraco, há muito que já o concluí. Tenho alturas em que inclino um bocadinho a cabeça para ver melhor quem fica, e que por qualquer pormenor me fixou a atenção, e fico a olhar enquanto posso, pessoas que não são minhas, vidas que correm, gente alheia que naquela hora me pertence. Pertencer, pertencer, até talvez nem seja bem o caso, que cada um, e na sua essência e vontade, pertence a si próprio e a mais ninguém, mas pertence aos meus olhos, à minha imaginação, ou seja, naquele exacto momento é minha e é dela, pelo menos enquanto eu assim o entender. Cá dentro de mim imagino e sinto o que eu quiser, construo as histórias que bem me aprouver, divago onde me apetecer. Um direito meu, igual à liberdade de toda a gente que me rodeia. A imaginação não é um sentido, mas se fosse era um daqueles muito fortes, quase semelhante ao cheiro, arrisco dizê-lo.
O tamanho das coisas continua a ser relativo para mim. É uma conclusão um pouco estranha para o texto, mas quem me lê sabe que por vezes tenho destas coisas assim. Os dias. Sim, os dias, caso não saibam, não têm todos o mesmo tamanho.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Privações

Há muito que sigo um caminho estranho a alguns. Temos regra geral o estranho hábito de apelidar de nomes pomposos sentires fortes e perturbadores, e o inverso também, ou seja atenuamos sentimentos grandiosos, com nomes frágeis e pouco encorpados. Não me faz qualquer sentido desde que trabalho com emoções. Morte é morte, dor é dor, nojo é nojo, amor é amor. A repulsa com que por vezes me olham quando os uso, fazem-me sentir o quão estanhas são estas grandes verdades que vivemos todos os dias dentro, e que temos tanto medo de mandar cá para fora. Um terrível equívoco que nos priva de tanto.

Previsibilidade

Existem livros que não consigo decifrar. Mentes que não consigo ler, factos que não consigo compreender. Curiosamente, e em todas as vertentes, são estas as coisas que não me apetece largar nunca. A facilidade, a previsibilidade, a clareza dada à partida são tão prováveis, que perdem por completo o encanto.
Talvez seja por isso que nós mulheres, somos sempre tão fascinantes.

Casa

Não sabia muito bem por onde começar. Não encontrava a ponta, vasculhou, vasculhou e continuou confusa. Nisto despiu-se. Devagarinho, não fosse alguma peça ficar a meio do processo, e continuar a embrulhá-la com força e exactidão. Teve especial cuidado com o casaco que a tapara desde sempre do frio. Um agasalho quente e cuidadoso, merecedor de um trato adequado. Iniciou depois o processo inverso, não antes de se lavar cuidadosamente com óleos perfumados, a fim de se inundar de um cheiro doce que entrava pelo nariz delicado, e se aninhava dentro dos recantos da sua alma, mesmo dos mais recônditos, os que nem sabia que existiam. Tantos que eram. Olhou-se no espelho e quis fazer mais qualquer coisa. Não chegava o que tinha feito, precisava de mais. Iniciou então um processo mais sério de decomposição, primeiro as cores do cabelo, depois a moldura do rosto, depois os ganchos redondos que lhe seguravam as melenas birrentas. A pouco e pouco foi mudando tudo o que a circundava e que lhe estava ao alcance das mãos, desde a disposição das coisas às fotografias expostas, às flores que vivam nos vasos há anos sem fim. Dava-lhe fastio tudo aquilo. Uma realidade sempre igual que se mostrava por ora incómoda, traiçoeira, como se dela já nem fosse. Por vezes temos destas coisas assim. Pertences de sempre, amores de uma vida, que de repente parece que nos fugiram do corpo, e que se assumem como que um fardo tamanho que nos pesa nas costas, nas palavras que dizemos, nas mãos que ficam fracas. Sente tudo aquilo como um processo estranho, um sentimento de ingratidão para com toda a envolta, que sempre a acolheu com dedicação e carinho, e que de repente emana um cheiro pestilento, entre o mofo e o apodrecido, que por mais que esfregue continua sempre a entrar. Por isso avança e quase sem perceber, num embalo impelido pela vontade ensandecida, liberta-se de tudo o que lhe faz doer, esquecendo o dó e a piedade. O fardo mais pesado deixo-o para o fim. Pensou repensou e deixo-o ir, perfumar outras almas, outras vidas. No final de sua saída, findo o sentimento de vazio experimentado perante a ausência do que sempre foi seu, olhou em redor e estranhou tudo. Teve medo. Num desconforto excessivo e incompreendido, foi buscar as roupas velhas e colocou-as de novo no corpo com uma pressa tamanha, quase como se as pobres fugissem, mesmo mortas, inanimadas, se ela demorasse um segundo que fosse. Tingiu o cabelo ao de sempre, pegou nos ganchos velhos e arrumou-o todo igual outra vez. O malvado não cresce rápido e por ele esperou. Em cada dia passado, e esperando que o corte lhe voltasse a chegar aos ombros magros, foi recuperando o sossego e o conforto do que era seu. Afinal, cheirava tudo tão bem, era ali a casa dela. Nisto ordenou os retratos e as flores outra vez.

Lagarta

Arrumei os paus com alguma destreza. A necessidade aguça o engenho, sempre ouvi, e afinal parece que é mesmo verdade. Tempos houve em que a habilidades escasseava. Os troncos eram mal erguidos, as pinhas colocadas fora de sítio. Uma miséria prontamente acudida, dai tê-lo sido tanto tempo. Hoje nada assim é. Um atrás a fazer suporte, outros na frente, tocando um no outro, e no meio as pinhas e uma pequena acendalha que me ajuda no processo. A minhoca saiu não sei de onde. Tentei soprá-la, não me estava a agradar assá-la ali, e dar cabo do lume também não me aprazia muito. Fico a olhá-la a subir os tijolos laranja, devagarinho, e penso, safou-se. De repente, não sei que ideia lhe acudiu ao corpo, deu meia volta e voltou para trás, indo enfiar-se mesmo atrás do tronco já em chamas. Das duas uma, ou está farta disto, o que eu compreendo perfeitamente, que a vida de minhoca em tronco de lenha não deve ser fácil, ou então é burra e eu estou muito desiludida com ela. Tenho uma dificuldade tremenda em compreender burrices. Mesmo em lagartas.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Estratégias

Por vezes existem coisas que não vemos. Mas quando permitimos que entrem, quando deixamos de lhe negar existência, ganham uma força bruta, quase avassaladora. Acompanhada de um sentir de que sempre existiram exactamente como existem agora, ou seja, existiram sempre muito, e por isso não percebemos como nunca as tinhamos conseguido ver claramente. Essa ausência pode ter o nome de negação, e é uma estratégia de defesa que nos ataca sem dó nem piedade.

Da zanga

A agressividade faz parte da vida, disse. Os olhos reviraram, como se uma aberração eu dissesse. Trata a alma mais ou menos como a dor trata o corpo. Com as diferenças óbvias, claro que sim. A da dor, quando me foi dita pela primeira vez, também me escapou. Os pressupostos de acção não são exactamente iguais, embora deixem ambas expelir qualquer coisa. A dor avisa-os de um corpo doente. A zanga, a ira, a agressividade dirigida, ainda que com o comedimento necessário para não passar a agressão, libertam-nos a alma. Nada nos deixa em pior estado do que uma zanga contida e guardada num corpo pequeno demais para que lá caiba. Nesse seguimento, quanto maior a revolta, maior a necessidade que temos de deixá-la sair. Se ao invés a contermos, se resolvermos manter-nos correctos e calmos quando a vontade é explodir, mais não conseguimos do que uns recalcamentos nefastos, que posteriormente iremos somatizar, sobre as mais diversas formas. É um risco inútil, mas existem mil e uma questões que nos fazem agir desta forma. Desde a sociedade que resolve guardar o que quer que seja de menos bom ou de pior aparência, dentro dos limites da pele, ao receio que temos de magoar alguém. Obviamente que carecemos de limitar as nossas acções dentro do que será razoável, sendo que não é prudente uma ira ilimitada, que poderá já sinalizar algum desequilíbrio interno, para além da situação do momento. Não é dessas que falo. Falo do que se engole sem razão de o ser, desde as injustiças do mundo às vivências dolorosas, que escondemos como se fossem vergonha. Uma das formas de terapia que mais carecemos de utilizar, é ajudar a libertar esse sentimento. E a principal limitação encontrada é a censura interna, que se julga capaz de arrumar tudo, mesmo que dessa arrumação resulte uma desarrumação de carácter maior.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Mãe

Fico sempre com uma sensação estranha quando oiço dizer, tal como ainda há pouco, barbaridades como tudo se cria, ou outros ditos do género. Tudo ou quase se cria, claro, no sentido de criar mesmo, como quem cria um qualquer animal, até os meninos do Gana, do Cambodja, do Afeganistão. Esses também se criam, com fome, doenças, ausência de cuidados básicos de todo e qualquer carácter, mas criam-se. Não levando obviamente todas as situações a estes limites, não consigo porém deixar de achar leviana a forma como ainda se deposita gente no mundo para criar, no sentido de alimentar, aquecer, e pouco mais. Tratam quase sempre casos de uma ignorância tremenda, de quem se encontra com uma barriga a crescer, e que julga que um filho é um simples apêndice do corpo, e que vai sempre sempre assim. Um filho não é um apêndice, vai-se tornar cada vez mais pessoa, e para além disso depende de nós. E não, não vai querer apenas colo e leite materno. Vai querer atenção, aprendizagens. Vai querer afecto e dedicação, vai querer cuidados médicos e tratamentos quando os mesmos são necessários. E para tudo isto faz falta uma mãe, mas também um pai capaz e empenhado. E a ausência de um deles faz-se notar e muito. E quando essa ausência não tem remédio, que cresçamos e aguentemos, mas de propósito bani-los do processo como se não fossem necessários, é que não me parece nada bem. Porque por vezes os filhos choram de noite e fazem febre e é necessário metê-los na banheira para que a mesma desça. Ou até ir para o Hospital, se for caso disso. E não nos deixam dormir e sonham sonhos ruins. E têm medo do escuro e berram que não querem sopa. E caem, e batem com a cabeça, e fazem galos de cortar a respiração. E esfolam os joelhos e comem terra. E fazem birras que querem doces, e são até capazes de se estenderem no chão por isso, e de espernear, e bater com os pés. E pregam-nos sustos quando de repente não estão bem. E por muito que seja giro, assim, a meses de distância, julgar que um filho é a melhor coisa do mundo, o que é a mais absoluta das verdades, também era bom que consciencializassem que tudo o que de melhor temos, tem a parte inversa, exactamente proporcional em tamanho. E que depois, nos contextos adversos, essa coisa do criar fica tão relativo com mais nada.
Faz-nos sempre muita falta alguém com quem contar, e que quanto mais não seja esteja ali, quando nós estamos prestes a desfalecer. E estamos, por vezes estamos. Quem pensar ao contrário está redondamente enganado/a.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

...

Assusta-me a ausência de expressão. Não tenho por hábito ler mentes, não consigo. Mas decifro expressões com alguma facilidade, salvando umas excepções que são as que refiro. Um semblante mais ou menos sempre igual que nos deixa em algum desconserto. Um não sabermos o que vai acontecer a seguir, que pode ser bom, mas que em caso extremo pode mesmo ser muito mau, e nós não conseguimos prever isso. Não é uma coisa interna na maioria das vezes. Exige esforço de quem assim se quer reservar com algum propósito definido. Mas em raríssimas excepções pode de facto vir de dentro, e assumir-se com uma naturalidade ainda mais assustadora.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Gaiola


Brian Cassey foi a Hong Kong fotografar gente que vive em gaiolas, no meio de riquezas incalculáveis. Sempre me chocaram grandes opostos inerentes às sociedades actuais, que conseguem amalgamar riqueza com pobreza, num convívio estranho e mesquinho. Gente que deambula em miséria e que ao redor tem a imensidão da abundância, do esbanjamento, da opulência. Não estou resignada a esta realidade, embora de nada me valha a minha indignação, ou a quem quer que seja. Mas o facto de naquele sítio a miséria vir dentro de uma gaiola, piora-me o cenário consideravelmente. Não gosto de gaiolas, é uma realidade de sempre. Não gosto de lá ver dentro pássaros, ou em outra escala e já em jaulas, leões, tigres, ou qualquer outro tipo de bichos. Nem sequer gosto de prisões, onde as pessoas pagam crimes cometidos, e pagam porque assim tem de ser, reconheço, mas não gosto. E não posso gostar de realidades que permitem que gente viva dentro de uma gaiola. Uma gaiola é por si só um nome estranho e obsoleto. E se não é obsoleto, deveria sê-lo, eu pelo menos gostaria que fosse.

...

Aqueles velhos ditos da saúde que por vezes se dizem e que soam a cliché, e àquela coisa do dizer isto para não estar calado, porque só com saúde também não vamos a lado nenhum, são muito lamechas de facto quando a temos. Se por alguma agrura do caminho a perdemos, passam a fazer todo o sentido do mundo, e passam a lembrar-nos que a vida, tal como dizem por aí, também desta feita em forma cliché, é para viver em cada dia como se do último se tratasse. Isto foram palavras ouvidas hoje da boca de Alberto. Eu não tenho por hábito desdenhar ditos sapientes. Mas ainda assim por vezes não lhes dou o devido valor. Desconfio deles, acho-os até um pouco chatos. As coisas ditas por quem sabe soam muitas vezes a isso mesmo, impertinência. Irrita-nos talvez a nossa ignorância. Ou então assanha-se a nossa vontade de assumir que somos fortes, diferentes, e imunes a estas chatices. Mas depois vai-se a ver e não somos.

Chico

Por vezes, cansa-se. Das corridas dos dias, do frio do Inverno. De contar com ela e com pouco mais do que ela. De olhar para a vida e não chegar para ela, e de fingir que chega. Tem de chegar, mas não chega. De se multiplicar por muitas e continuar sem chegar. De tentar alcançar os pedidos, acudir onde é precisa. De tanta solicitação por vezes esquece que existe e quando lembra faz esforço para se encontrar outra vez. Encontra-se, está no exacto local onde se deixou em tempos. Abranda o andar, vasculha-se por dentro, e procura-se até que não consegue mais, sob pena de falhar em algo. Os ombros alheios são quase desconhecidos, enquanto o seu se empresta ao mundo. Já torto, retorcido, mas sempre de todos. Tu não precisas, dizem-lhe por vezes. Sorri para dentro com algum orgulho e pensa para si que precisa, mas não diz. Primeiro porque é bom que a julguem forte, sente isso mesmo quando o dizem e necessita de o sentir. Um ciclo vicioso, que poucos entendem. E para alem disso, porque a dizer o contrário ninguém ia acreditar nela. Este mundo é um tanto ou quanto estranho, diria que desigual. A uns dá o fardo da carga, a outros a benesse do suporte. Entra no carro e resolve andar sem destino definido. Não se dá a esse luxo muitas vezes, há sempre um local para o qual tem mesmo de ir. Divaga um bocadinho, mas sente uma culpa estranha, como se não fosse por si só motivo suficiente para existir. Um erro crasso em que incorrem os que se dão em demasia. Um dia, uma hora, um instante, vão a ver e quase nem são gente, de tanto que se transbordam para fora de si. Quase parece que se deixaram ir inteiros, sempre em uma direcção, um local, uma pessoa. Nem nada nem tudo, tento dizer-lhe. Ouve-me com alguma atenção e diz que me compreende. Logo após diz-me que vai. Tem ali o Chico à espera. O Chico é o cão. A companhia dos dias, o único que abana o rabo na sua chegada, e que chora com ela quando ela está triste. O que acontece todos os dias, mais ou menos em horas iguais. Um dia, se ele morrer, morro com ele.
Não quero de todo acreditar nela, ninguém morre atrás de ninguém, e muito menos de um cão. Mas às vezes quase que acredito.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Fumo

Isto dos cigarros que agora anda na baila deve ter a ver com aquela imagem gira que encontro na porta das repartições públicas, bancos e escolas, onde os intervalos são ocupados por gente que dantes fumava dentro, e que agora, por obrigatoriedade de circunstância, tem de fumar fora. Vai daí e dada a imagem de degredo, generalizou-se a coisa e já não se pode fumar também na porta dos cafés, e deduzo que em porta alguma, porque o fumo pode entrar e ser prejudicial. E então se calhar o melhor era acabar também com o fumo enquanto se anda na rua, não vamos nós cruzar algum fumador distraído e levar com um bafo. Pode ser complicado. No andamento, já que estamos de embalo, proibíamos também a deambulação pública de determinada gente, que provavelmente não tem muito que fazer, e por isso metralha o País com ideias que não lembram nem ao menino jesus. Não vá a inteligência dessas pessoas pegar-se e isso é que era o cabo dos trabalhos.
Já por cá disse, não tenho nada contra ou a favor dos fumadores, mas aglomerados de gente que fuma enquanto eu espero em filas irrita-me. Mea culpa, desculpem lá qualquer coisita. Mas ainda assim, e afastando esta minha embirração pessoal e dotada de grande dose de mau feitio, não deixo de julgar exageros determinadas teorias sem fundamento. Cada um é livre e o exterior por enquanto também. Sempre ouvi dizer que a porta da rua é a serventia da casa.

Doces momentos

Quando me dão um doce, tenho por hábito guardá-lo para o meu filho. Não que ele precise, que como qualquer criança de sua idade come que chega e que sobra. Mas é um hábito, uma dedicação. Vem-me do crescimento, julgo poder dizê-lo. A minha mãe guardava sempre tudo para mim, embora numa escala muito mais reduzida. E não o fazia só nos doces, mas em tudo. Os tempos eram outros, e o carapau era só um, para mim e para ela. Eu comia os lombos, ela rapava os restos. Ser mãe também é isto. Ser pai também deve ser giro, mas julgo que não é bem a mesma coisa. Não quero com isso dizer que estamos certas e eles errados. Nem sequer que não existem as devidas excepções e particularidades. Simplesmente ser mãe tem incutido aquela coisa da excessiva protecção, do excessivo cuidado, da excessiva preocupação, do excessivo amor. Tudo em excessos e ao mesmo tempo, na exacta medida que devem ser dados. Existem coisas, que ainda que em demasia, nunca são verdadeiramente demais.

Sonho

Vera sonhava todas as noites com o seu casamento. Nesse dia sonhado acordava bem cedo. Lavava-se com água fresca, penteava os cabelos compridos, vestia a sua melhor combinação e por cima dispunha o vestido branco imaculado, bordado por sua mãe durante trinta dias a fio. Era um dia com muito sol, poucas ou nenhumas nuvens, o que lhe permitia ir a pé para a igreja, onde o noivo e o padre a esperavam. Perante uma assistência constituída por familiares de ambas as partes, dizia que sim ao amor da sua vida, aquele com quem iria partilhar todos os dias e noites dali em diante, na alegria, na tristeza, na saúde, na doença. Nunca lhe via a cara de forma nítida, sendo que no lugar da mesma se encontrava uma sombra nublada, envolta em cabelos escuros, onde só conseguia distinguir as orelhas, que se escoavam pelos lados, sendo assim extremamente perceptíveis. Eram grandes as orelhas, o que poderia querer dizer que serviriam bem a sua função, e que poderia contar ao seu marido tudo quanto a apoquentasse, e ainda todas as histórias que gostava de deitar para fora do corpo, guardadas anos sem fim, sem qualquer hipótese de serem escutadas. Para isso estava a depositar fé na enormidade das coisas, coisa que nem sempre é totalmente verdade, podendo aquelas enormes orelhas nada mais significar, do que isso mesmo, serem umas orelhas muito grandes, ouvintes iguais a quaisquer outras. E quase todas ouvem mal. As mãos, eram também elas consideráveis. Mais uma vez ali encontrava segurança, quase já sentia que a pegavam ao colo, lhe davam ninho, zelo e atenção. Enquanto lhe deslizava a aliança doirada no dedo, sentia cada dito a entrar-lhe no corpo, um a um, enquanto o anel escorregava devagarinho, numas mãos que não tinham mais fim, capazes de albergar tudo o que dizia, o que experimentava, o que temia. No final do casamento, chegada a altura do beijo, a imagem desvanecida iniciava forma lentamente, tornando-se mais nítida, mais perceptível, quase que já lhe conseguia ver os olhos. Porém, invariavelmente, era ali que acordava. Deixava-se então ficar mais um pouco, adormecer nem que fosse entregue ao sono leve, a fim de conseguir olhar para dentro de quem tanto a segurava. Nunca o conseguia, sendo que imaginava em cada manhã uma possibilidade, um rosto real e terno, condizente com tudo o que vivia. Passava o dia esperando a noite. Mal adormecia, sonhava tudo outra vez.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Casamento

O meu tio vai casar com a minha tia. A minha tia é já muito velha, coxa, e já foi casada há anos com este meu tio, que é o verdadeiro. Ela apenas o é por afinidade, ou melhor, foi, porque nos entremeios deixou de ser. Após anos de brigas feias, costas voltadas e papéis de divórcio, dá ideia que se encontraram numa esquina e se apaixonaram outra vez. Longe dos dois filhos já adultos que têm em comum, da casa, dos desarrumos da vida. Ele tem uma barba branca que rufia e é viajante. Ela usa óculos e chama-se Fernanda. Tem um coração enorme que agora ainda está maior, porque vai caber lá dentro o meu tio, que é um homem muito grande. E para além disso vai lá caber o que sempre lá coube, ou seja, toda a gente. Vive perto do castelo, numa rua estreita e calcetada, com elevador fechado a ferro. Tem vizinhas velhas e portas de madeira carunchosa, com um vidro quadrado fosco, através do qual não se vê nada senão os próprios desenhos de flores, que eu em tempos gostava de decalcar. Tem um gato grande e preto que não gosta nada de brincadeiras, o que provavelmente será um problema para o meu tio, que entretanto lhe invadirá o espaço, a casa, a dona. Ainda não sei onde será o casamento, mas parece que já estou convidada. Não sei se sabem mas cultivo um sentimento estranho em relação aos casamentos. Mas gosto de os presenciar, ao longe, e de ver as pessoas muito felizes naquele dia, a proferirem ditos que eu mesma já proferi, com todo o amor do mundo que estava cá dentro de mim. Era verdade tudo aquilo, tal como vão ser verdadeiros os votos dos meus tios. Desta feita, o feliz casal reúne na envolta filhos, netos, sobrinhos e compadres. Uma coisa inédita, nunca vivi nenhum igual, estou ansiosa. Até porque para além de tudo, Fernanda vai ser minha tia outra vez.

Facilidades

Por vezes sonho que o meu espírito tem a rapidez do meu corpo. Não um sonho verdadeiro, antes uma imaginação, um desejo é isso. Nesse sonho movo-me muito e rápido, tal e qual a vida me exige. Depois paro e penso. Uma vida onde o espírito nos permitisse tal adaptação era uma vida vazia, sem sentido e sem crescimento. Seríamos então um conjunto de gente caprichosa e sem qualquer tipo de interesse, um desconsolo. Mas era fácil e por vezes essa facilidade seduz-me.

Mulheres

Venho pelo caminho e escuto a rádio. Alguém arrisca dizer que na sequência de algo, irá conhecer melhor as mulheres. Bem sei que o profere em ligeireza, apenas por dizer, só pode, que o tenho por inteligente e como tal incapaz de imaginar possível, tal impossibilidade.
Somos estranhas, na nossa globalidade. E por estranhas não quero dizer absurdas, mas sim individuais, e por isso estranhas umas para as outras. Somos dotadas de um qualquer mecanismo interno muito próprio, que alterna entre o sensível e o robusto, capaz de amar e de odiar como nenhum homem consegue. Os nossos amores são sempre maiores, os nossos ódios sempre superiores. Gostamos muito de ser assim, mas por vezes invejamos a ausência, a leveza de carácter, o se não foi paciência. Empenhamos o nosso íntimos naquilo que queremos e vencemos todas as batalhas que ambicionamos. Há aqui até quem consiga para isso, ser desleal, mas nem todas, claro. E se não vencemos, por qualquer motivo que verdadeiramente nos transcende, ficamos revoltadas e todos dão por isso, nunca engolimos em seco, como se nada fosse, nem partimos para outra de ânimo leve. Percebemos onde falhamos e tentamos por isso melhorar. Não cometemos os mesmos erros, vezes sem conta, e se por ventura tal acontece, é porque não somos mesmo dotadas de capacidades para mais, e não por falta de compreensão sobre o que é certo e errado.
Podemos não ser tão leais como vocês, que nisso das amizades podem chegar a assemelhar-se a um cão, desde que o assunto não meta saias, que se tal for o caso, a coisa pode debandar. Nós não precisamos de calças para trapacear, mas se as houver, poderemos fazê-lo também. Só que pensamos um bocadinho mais sobre isso.
Somos detentoras de mecanismos que nos permitem lutar por sonhos indefinidamente, construindo castelos por dentro que ninguém vê senão nós, uns castelos fortes e dourados, daquelas que não há, porque não pode ser. Uma pena isso. Vocês controem coisas mais coerentes, que podem mesmo existir, de acordo com a nossa natureza. Frágeis na construção, mas aplicáveis a todos nós, que somos isso mesmo, frágeis.
Somos vaidosas ou não ligamos nenhuma a isso, depende.
Temos recantos obscuros que podemos esconder do mundo por uma vida inteira, sem ninguém nunca lá chegar, e podemos ter orgulho nisso. Deixamos escapar de quando em vez, uma réstia do sangue que nos escorre nas veias, longe dos olhos de todos. Só mesmo o que entendemos que devemos deixar passar, e normalmente fazê-mo-lo com um objectivo, que pode ser nobre ou nem por isso.
Utilizamos algum encanto próprio para vos tentar seduzir, e às vezes somos patetas. Mas como vocês são um bocadinho de nada mais, não há qualquer problema com isso. E os que não são, que também os há, fingem que são e é o que chega para nós, porque ficamos muito iludidas.
Vivemos por dentro, vocês vivem por fora. Por isso, e para além do que atrás refiro, vivemos milhares de mundos desconhecidos, vedados até ao mais perspicaz. Não nos podem nunca reduzir a um modelo de entendimento, não condiz connosco, somos muito mais do que isso. Centrem-se noutras coisas, a sério. Há tanto para compreender. Os animais, a evolução da sociedade, os dinossauros, os planetas, vidas depois da morte. Tudo isso, é muito mais entendível do que nós.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Levitações


Natsumi Hayashi parece levitar. Nada de anormal até aqui, que segundo consta a moça salta as vezes que forem necessárias, para conseguir que a imagem transmitida roce a naturalidade suficiente, para que pareça que levita mesmo. Que caminha no ar, que existe num patamar ligeiramente acima do normal. Um sonho de todos os quase esta ligeira superioridade que nos iria distinguir dos demais. Fez-me pensar que também eu gostaria por vezes de levitar. Não de corpo, que gosto do chão, mas de espírito. E deixar-me permanecer numa distância de segurança que me guardaria dos medos, das ansiedades, dos terrores e dos males do mundo. Uns centímetros acima da minha existência, não precisaria de mais.

Figos

Por de dentro da casa nascem uns arbustos verdes e espinhosos que escapam pelas janelas, pela porta, por uns buracos da parede, pedras que o tempo comeu. O tempo tem destas inerências, leva de arrasto coisas fortes, coisas fracas, mas chega a permitir que as ervas daninhas invadam espaços vazios, aquando da falta de zelo e cuidado. Por mor disso carecemos de empenho a cuidá-los. É estranho este tempo que nos escorre da vida, carregadinho de mistérios muito misteriosos, de acções previstas e imprevistas, de efeitos nefastos e extraordinários. Uma incógnita, uma imensidão. Mesmo ao lado da casa, um poço redondo está rodeado de ervas que quase o cobrem, mantendo-se a parte posterior a descoberto, tapada por uma placa de ferro, muito ferrugenta. Levanto-a, mando uma pedra e fico à escuta. Passados uns míseros segundos ouço o ploc tão esperado. Tem água lá dentro, coisa que me fez sorrir. Em tempos já idos, na fazenda, fugia da vista da minha avó e mandava pedras aos poços, num desafio constante e malandro que me perseguiu o crescimento. O som lá do fundo trazia-me um sorriso ao rosto, e eu mandava então outra, e depois mais outra. E escutava.
Mesmo defronte à casa encontra-se uma figueira muito velha carregadinha de frutos. Hesito entre comer e ir embora, mas a fruta colhida da árvore é coisa para me despertar sensações fortes e intensas, seja que fruta for. A banal maçã, por exemplo, é detentora de uns sucos frescos e adocicados, que se perdem no frio, nas caixas, nas vitrinas. Nada iguala a frescura de uma acabada de colher. Na minha boca água nasceu, e resolvi ceder aos figos, sentar-me e comer. Por fora eram de um verde muito forte e bonito, lá dentro tinham um recheio saboroso mas áspero, e deixavam cair do pé umas gostas transparentes, quase de mel. Comi uns quantos e vim embora. Não sei porquê, mas transportaram-me ao depósito de água, batido ao vento. Aquele que fica lá no alto. Provavelmente porque lá os comi em tempos. Ou então porque gosto de figos e gosto muito do depósito. O nosso corpo preza estas reuniões.

...

Logo após ter levado com um sapato na testa, enquanto tentava desalmadamente encontrar um 36 já extinto, oiço...
- Meu Deus, desculpe. Sabe que nós, mulheres, quando andamos aos saldos ficamos enlouquecidas...
( Por acaso não sabia disto, uma aprendizagem. Tenho um galo. Sapatos nada.)

Boas notícias que se espalham devagar

Parece que tenho colegas de profissão que aconselham banhos de mar em Janeiro, rezas diversas, lêem cartas. Felizmente chegaram normas que nos regem e que nos tornam passíveis de responder pelo nosso trabalho. Uma das coisas com que mais me debato desde há muito, é a falta de seriedade de determinados profissionais da área. O uso abusivo das fragilidades alheias que parecem servir para encher bolsos com dinheiro mal ganho. Dinheiro mal ganho é sempre dinheiro mal ganho. Dinheiro mal ganho por leviandade com o bem estar alheio, é dinheiro muito mal ganho. Recebi ontem o livrinho laranja da ordem, onde especifica tudo (bom, quase), o que devemos fazer, atender, e obedecer. Uma bíblia que muita falta nos fazia. Com a legislação e com o número de série, já não podemos ser ovelhas negras incógnitas. Ora façam o favor de serem atentos, em caso de necessidade.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Poesia

E dizia-me então inchada, que se pudesse escolher não morreria nunca. Pergunto-lhe se não se cansaria, responde-me que não, que viveria para sempre. A pergunta do onde caberíamos todos, ficou-lhe a magicar nas entranhas.
- Se calhar não cabíamos, acaba a proferir.
- E para que ficava?, insisto.
- Não sei, olhe, ficava.
- Buscava a perfeição?, pergunto-lhe sorrindo, lembrando o poeta.
- Não, a perfeição não existe.

E é por isto que carecemos tanto de poesia.

Bolo Rei

Conversavam enquanto a massa lhes envolvia os dedos, engrumada, a carecer de liquido que a humedecesse e a tornasse posteriormente leveda. O fermento azedo dava-lhe o dom do crescimento, enquanto as rezas proferidas por bocas antigas e crentes lhe permitia, junto ao calor da manta e do aconchego, crescer. Os frutos secos eram colocados em demasia, que o bolo tinha de representar fartura, para moléstia deixemos todo o ano, as horas magras, o resto dos dias de Inverno.
Enquanto descansava sentavam-se todas, e bebiam um chá ou café longo, que as horas careciam passar. Aproveitavam e deixavam-se ir, que os encontros nem sempre se podiam, escasseavam até. - O meu está crescido, já não cabe dentro das calças. - O meu está travesso, guarda pedras nos bolsos, esconde-as na cama. - O meu homem está longe por mor da venda, que por aqui estava fraca. - O meu sai de manhã e chega à noitinha, tenho de o cuidar bem. O pobre.
O chá e o café nascido na cafeteira encardida aquecia-lhes a alma e afogava-lhes algumas mágoas, enquanto os ouvidos alheios ajudavam. São bons os ouvidos alheios. Têm uma qualquer magia entranhada, que os faz escutarem-nos melhor do que os próprios que temos. E para além disso aliviam-nos. Aliás, chego a deparar-me com isto em outras partes do nosso corpo, sendo que encontro com frequências olhos exteriores a ver muito do que os nossos não conseguem ver. E sem óculos, sem lentes, ou qualquer um outro tipo de artefacto potenciador de um aumento que se veja.
Na hora de tender a massa estavam todas muito aliviadas e felizes. Por isso a tarefa desenrolava-se de feição, encarrilada nos minutos a que pertencia, tempos doces e acompanhados. Os enfeites de fruta coroavam o melhor bolo do ano, que entrava no forno quente para sair depois, dourado e estaladiço, com ar a fartura. Era a altura do adeus e da divisão. Limpava-se o forno, arrumaram-se as almas. A tradição, esta coisa longínqua e vincada, chega já a tremelicar. É a evolução do Homem, dizem até que já não é o que era.
Nem sei se já por cá disse, mas poderia muito bem ter sido pasteleira.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Atravessados há uns dias bons...

Do sorriso

Pediu-me quatro. Um mil folhas, uma bola de Berlim, um palmier coberto e um simples. As doenças que lhe entraram no corpo faz tempo, já nem recorda quando, deixaram-no entregue a uma boca amargosa, proibida de engolir doces. Poderia ser só esta a realidade, que somos adaptáveis e se não comemos, cheiramos, procuramos, andamos, vimos. Mas não. Penso que por vezes a vida parece escolher determinadas pessoas para se vingar, podem ter sido más em outras vindas, pode ser isso, que não encontro outra justificação que me acalente um pouco a alma, para as injustiças que encontro no mundo, a maior de todas as minhas incompreensões. Ainda ontem, anteontem, não importa, vejo num jornal uma foto de uma criança que apanha com um recipiente água lamacenta para seu governo e fico entorpecida das ideias. É tão frequente nos dias de hoje estas carências básicas que já não deveriam entrar em mim com esta força danada, mas entram, não lhes consigo ganhar resistência. Até hoje, não consegui.
Tem pouco mais de meia centena, não anda, usa uma fralda, incham-lhe os membros com o calor, e ferem, purgando uns líquidos aquosos, pestilentos e mal cheirosos. Todos os meses carece de avaliação da esclerose, uma doença de nome pomposo, que muitos desconhecem onde nos pode levar. Conheço muito bem duas delas, a múltipla, e a lateral amniotrófica, que em tempos deixou alguém que conheço aliviado. Era só lateral. A mais letal e rápida de todas, um engano para quem ouve um nome mais inofensivo do que a temível múltipla. Ambas são degenerativas. Ambas retiram a capacidade de andar, de sentir o corpo dividido em partes, aqui uma coisa, ali a outra, tudo se mistura porque nada nos responde. Com o tempo, as principais faculdade deixam de ser possíveis, o que começa pela perca das funções da marcha, do controlo de esfincteres, que podem chegar a ganhar processos infecciosos sérios, por não saberem quando expelir o que lhes sobra, sendo que entopem, ficam cheios, inchados, doentes. Mais ainda, como se possível fosse. O médico, curador do corpo torce o nariz à ingestão dos regalos pedidos. Eu negoceio.
- Todos no mesmo dia não, vamos faseando, pode ser?
- Pode, diz-me a sorrir, num sorriso baço e sem dentes. - Desde que acompanhados de um sorriso seu.
Sorri logo no instante, sem bolo, sem nada. É por estas e outras que amo o que faço.

Curiosidades...

A curiosidade é uma coisa muito bonita no crescimento. O cuidado que tenho de ter com o que ponho na mesa de cabeceira é uma realidade. Puta que os pariu, foi difícil, mas lá me arranjei. O que fica situado entre o Gonçalo e o Tavares e que começa por M, pode parecer mais fácil, mas está deveras complicado. Estive quase a dizer Manel, e a arrumar assim com o assunto. Palpites? Anda por aí e eu ainda não vi?

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Mulheres

A figura feminina há muito que deveria ser mais respeitada. Ninguém escolhe a forma que traz ao mundo, sendo que a mesma poderá ser sempre mais retocada, todas temos aspectos a melhorar, mesmo as abençoadas por Deus. Actualmente, e no seguimento dos implantes perigosos, assisto a uma onda de críticas generalizada, proferidas em tom de indignação e reparo, às mulheres que se apetrecham de tais artefactos. Não simpatizo com essas críticas. Pela minha parte, considero as cirurgias estéticas como uma coisa a não realizar, a não ser em casos realmente necessários, mas isso tem a ver com princípios meus, opiniões pessoais, e respeito perfeitamente outras opções. É importante não esquecer, quando se levantam as vozes que condenam, que na maioria das situações quem se sujeita a este tipo de intervenção, fá-lo com o intuito de agradar a uma sociedade demasiado exigente no quer toca ao culto do corpo. Aqui neste mundo, não podemos ser gordas, é chato isso. Não podemos ceder à lei da gravidade que ataca tudo quanto mexe, mas da qual somos quase obrigadas a escapar. Também não podemos ser demasiado magras, porque ao senão lembramos estados de anorexia e doença, seremos constituídas só por ossos, e não temos onde nos agarrem. E isso não tem graça nenhuma, especialmente em determinadas situações. As rugas que surgem com o tempo, a vida, o choro e o riso, também não são bem vindas, sendo sempre mais apetecível uma pele mais viçosa, mais elástica, menos engelhada. E por ai fora.
Não falando aqui de alguns exageros cometidos por questões distintas destas, julgo que a maioria se comete assim, pela dificuldade de aceitar um corpo que nasceu imperfeito, por parte de uma sociedade que gosta muito da perfeição. Mesmo que ela seja construída, falsa, manipulada, enfim, o que quiserem chamar. A vida neste campo é difícil para nós mulheres, que também não nos ajudamos nada umas às outras. Mais para algumas, por motivos diversos. E alguns homens, é pá perdoem-me lá, mas por vezes também não colaboram nadinha. Ok, é de vossa natureza. Tal como é da nossa o gostarmos de vos agradar (a maior fraqueza que todas temos no corpo).

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Hum, que delícia.
(E para além disso posso postar imagens outra vez)

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Engoli seis bolachas de água e sal que não me valeram por um biscoito de manteiga. Isto deve ser a prova provada de que quantidade não é qualidade, e ainda de que por vezes, mais vale pouco mas bom. Por isso agora vou comer a de manteiga. E isto é a prova provada de que quanto mais nos enganamos a nós próprios, mais erros cometemos.

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Não consigo encontrar em mim tamanho suficiente para viver uma dor de perder um filho por desaparecimento. Não consigo de resto conceber a perca de forma alguma, sinto-me pequena, enquanto o assunto trata sentires do mais profundo que conseguimos experimentar. Os filhos são sempre, e em situações normais, muito mais do que nós mesmos. Transformam-se na nossa razão, na nossa existência, na nossa ambição, no nosso sentido. Estou cansada de ler sobre o Rui Pedro, e sobre uma mãe que não encontra na vida mais razão alguma do que procurá-lo a ele, ou a razão do seu desaparecimento. São as razões que hoje possui. E estou cansada não dela, ou de lhe saber a dor, mas sim do seu sentimento sofrido, que nunca mais tem fim, e deveria. Penso nisto com alguma frequência, até porque o assunto continua na ordem do dia. Será por certo necessária alguma análise interna, para nos inteirarmos mais profundamente no que será esta ausência. Muitos especialistas já se debruçaram sobre estes factos, e já se inquiriram sobre o que será mais difícil, se uma dor definitiva de um fim fatal, se um desaparecimento no mundo, que pode ser um mundo grande ou ali do lado, um mundo bom ou um mundo mau, ainda que se possa manter a esperança. Há tanto mundo por ai. E o coração de uma mãe é sempre um coração aflito quando trata os filhos, um coração pessimista capaz de construir por dentro horrores, dúvidas, suposições. Somos tão fáceis de nos deixar embalar pelo mal. É uma realidade, uma fraqueza nossa. Todos nós experimentamos, em diversas circunstâncias, a preocupação de uma espera demorada, a angústia de um atraso infundado, que são na maioria das vezes nadas, obras do acaso, mas que são suficientes para nos amargurar os momentos que antecedem a chegada de quem esperamos. Ora agora então transportemos isto a uma vida, e a uma ausência de fundamento ou justificação, e pior, a uma duvida do que se possa ter passado com o nosso bem mais precioso. Não arrisco dizer que uma é melhor do que a outra, pois não existem coisas boas na desgraça. Ainda assim, um luto implica um fim e uma organização interna, um desaparecimento uma angústia eterna. As duas uma mágoa sem fim.

( E também era chegada a hora de deixarem de expor os rostos de sofrimento que o caso acarta, em revistas de rigor duvidoso, utilizadas pela mãe com o único objectivo de buscar ajuda, e que assim vendem um bocadinho mais.)

Queijo

A Maria João Abreu vem ao DN, e quem sabe também a mais sítios, apelar ao consumo de queijo nacional. Com o devido respeito que tenho pela senhora enquanto actriz, devo dizer que em matéria de queijos não estará por certo melhor documentada para deles falar, do que a minha própria pessoa, que se lambuza só com o cheiro. Bem sei que ninguém me conhece, e não traria qualquer mais valia aos lacticínios portugueses o meu depoimento, mas que sou documentada, sou. Arrisco dizer que nem haverá no mundo acepipe melhor do que este, seja ele confeccionado com leite de cabra, de vaca, de ovelha, ou uma completa mixórdia, daquelas que encontramos nas velhas praças, embrulhados em panos de lençol velho, muito amarelado, dentro de uma alguidar de barro envernizado. Existe uma praça que tem uns deliciosos, situada na praia da Nazaré, onde vou, invariavelmente, há trinta e cinco anos, sempre que é verão. Trinta e cinco certos poderá nem ser o caso, tendo em conta que não vos posso garantir com cem por cento de certezas, que palmilhei o dito sítio enquanto os meus pés ainda não tinham vontade própria, mas como provenho de uma família tradicional, com gostos tradicionais, e com interesse em praças de géneros viçosos, é bem provável que tenha começado cedo a inteirar-me dos cheiros destes locais, onde a fruta doce, o peixe intenso, as cenouras frescas e o queijo azedado, se misturam num sítio onde as mulheres usam avental e bigode. É uma questão de moda por lá. E dizia eu que existem naquele local uns deliciosos e artesanais, espalmados e redondos, uma mistura de ovelha e cabra, o que lhes dá um paladar característico muito forte e saboroso. Não me importa muito que me digam que as ditas senhoras os secam ao ar e à bicharada, não sou nada esquisita nestas coisas que me sabem sempre bem e nunca me causaram qualquer tipo de indigestão. Depois temos outros, mais populares, vindos das serras, de Serpa, de Castelo Branco, uns com colorau, outros amanteigados, que escorrem da faca e do pão, uns secos e muito mal cheirosos. Podemos ainda ir aos Açores e trincar um qualquer flamengo saloio, todos muito bons por sinal. Os frescos, ainda que mais simples, também me dão um gozo danado, desde o tradicional, ao Requeijão de Seia, adoçado com uma colher de doce, ou ao invés, salpicado com pimenta. Olhem enfim, há para todos os gostos e não saí do Pais, que a ter saído, poderia continuar a descrever a minha afeição sem limites. Mas agora que falo nisso, se calhar não era mau deixar aqui um cheirinho a Chévre, Francês. Cheira bem, a sério que sim.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

...

Perturbam-me sempre mentes sãs presas em corpos precocemente doentes. Tanto quanto o inverso, devo dizê-lo. A incongruência da vida perturba-me, é isso. Bem como as limitações vindas cedo demais.

Crise ( Ups, que palavra meu Deus)

Vi-a hoje como tantas vezes, logo de manhã. Na cabeça, um gorro de malha grosseiro de cor castanha, arruma-lhe os parcos cabelos e aquece-lhe as orelhas. Um casaco do mesmo tom abafa-lhe o resto de um corpo já velho, mas ainda muito ágil. Passeia-se pela cidade enquanto sorri a toda a gente, nos dias bons claro, virando a cara nos outros, que são alguns. No fundo aqui como em tudo, e não obstante a figura um tanto ou quanto caricata, e a mente significativamente desadaptada, é igual a todos nós (e quem sabe nisso também). Lá dentro do cérebro, vai sempre uma crise, que se verbaliza todos os dias, a todas as pessoas que encontra. - É a crise, é a crise!! A crise da boleia que lhe falta para ir à terra, a crise da mãe já velha que lhe cortou o telefone, a crise do frio, a crise de alguém que morreu antes do tempo. Natércia não tem disso conhecimento, mas cada vez mais tem mais razão na expressão que a acompanhou vida fora. Quem sabe até estamos na presença de algum ser premonitório, uma raridade na humanidade.
Estamos em crise (Juro? Juro!). De dinheiro, de valores, de ambições. Todos ou quase sofremos de pelo menos uma.

...

Abundam hoje em dia reflexões sobre os Portugueses e a sua conduta, eu própria já as tenho feito. Tenho dias em que quase chego a julgar, que a pensar e a diagnosticar somos mesmo muitíssimo bons. Falta talvez alguma ligação no caminho da acção. Ou isso ou qualquer outra coisa. Os diagnósticos por vezes têm destas inerências, a constatar também em outros lugares de destaque.

Vidas

A casa tinha um alpendre delicioso. Os alpendres são naturalmente deliciosos, funcionam como que um abrigo, que nos resguarda e ao mesmo tempo nos permite o desfrute da noite, do sol do dia, da chuva que cai mesmo ali ao lado. Chovia muito. Ouvia-se cair com força já há horas, e intensificou-se pela manhã morna de inverno. Saiu para fora com um chá quente nas mãos, e sentou-se a olhar a envolta. Ao longe o rio enchia devagarinho, gota a gota, apresentando hoje um verde muito escuro, quase negro, tal a força da água que o batia. Um barquito pequeno baloiçava descontroladamente, preso a uma corda na berma, forte o suficiente para que não conseguisse fugir e fazer-se ao mundo, um local grande demais para ele. Naquele exacto momento. O cão, dentro da casota que era sua, aninhava-se do tempo que lhe deixa os pelos molhados e hirtos, e correu para ela mal a viu. Ficaram os dois debaixo do alpendre enquanto as mãos dela o embalavam. O restolhar das árvores faziam um barulho intenso, quase assustador, cortado por pequenos períodos de acalmia enganosa, de imediato sacudida por algum vento mais forte. A casa rangia de medo, num queixume sentido que de nada lhe valia. Caiam folhas desmesuradamente, das poucas que ainda haviam, que voltariam a nascer na próxima primavera. Tal como cão correria, tal como o barco navegaria. Tal como ela viveria. Talvez até o inverno, continue a acabar sempre.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O Piano

(Texto originalmente escrito por mim em Julho do ano passado. Fez-me sentido postá-lo de novo aqui, até porque, e no ano de 2011, foi o que mais falou de mim, num sussurro precioso que poucos escutaram)

No meio da sala repousa um piano empoeirado, que denuncia a ausência de dedos a calcá-lo, tal e qual o corpo dela. Mesmo ao lado, um conjunto de pessoas conversam animadamente, no que lhe parece ser um aniversário de uma senhora, alta e roliça, que se pavoneia deliciada entre os convidados, envergando um vestido azul turquesa, muito curto e decotado. Os copos, tilintam numa orquestra sentida e ouvida, num movimento permanente de risos e de goles, uns doces, outros amargos, todos eles muito frescos. No tecto, inúmeros panos coloridos guardam um ambiente que se quer calmo e de cheiro forte, apenas perturbado por um ruído sombrio de vento, que entra nas frestas estreitas das janelas. Apetece-lhe sentar e tocar o piano. Ela, que nunca na vida tocou num. O banco, redondo e nivelado, parece-lhe de um conforto imensurável, no qual poderia por certo fechar os olhos, que ainda assim, sentiria e veria todas as teclas, unidas, lado a lado, mas tão particulares como nada mais. As mais graves, as mais agudas, as brancas, as pretas. Sente um desassossego. Passeia os olhos mais um pouco, na vã esperança de encontrar algo ou alguém, com mais intenso chamamento, temendo acabar por ceder, que o seu fraco corpo, dirige-se com força para aquele imenso objecto musical, numa ausência de vontade nunca vista. Perde-se um pouco no terraço, onde uma chuva miúda e teimosa fustiga uns candeeiros acesos, que abanam ao vento. O fogo da fogueira arde devagarinho, quase a sumir-se na agrura do inverno, que por vezes julgamos dormente, mas que sempre se encontra no exacto local onde deve estar. Volta com o olhar para o piano, e leva-lhe o corpo também. Afasta a flor que o enfeita, senta-se, e inicia uma melodia doce, e ao mesmo tempo intensa e muito ritmada, como se sempre se tivessem pertencido. Na envolta, ninguém a ouve, continuando o cenário centrado na loira viçosa que sorri. O piano, por sua vez, e sedento de toque, escorrega-lhe nos dedos. Fundem-se num tempo impreciso, de companhia perfeita, num instante infinito. No final da noite, deixam-se. Ela, abraçada por ele, como se das entranhas lhe tivessem nascido mãos, braços, e todo um corpo, ao invés de música. Ele, crivado de dedos pequenos e magros, no meio da densa poeira que o cobria.

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Tá lá o nome, mas com pena minha, não dá acesso directo. O blogger anda contra mim, é isso. Agora pelas coisas, aguenta-me em outro.

Nascimento

http://umamulhernaochoradois.blogspot.com/

Nasceu hoje, e é de minha autoria. Tal como lá explica, pretende dar respostas a questões que por vezes surgem, nas quais talvez eu possa ajudar. É ir, e perguntar.

Modernices

Na mesa eles eram quatro. Mais ou menos todos da mesma idade, mais coisa, menos coisa, o meu um pouco mais velho. Ficaram sentados à parte, numa mesa perto da nossa. Enquanto a noite corria ao som de conversas já antigas, vivência idas e saudosas que sempre surgem quando nos juntamos, das bocas dos pequenos saltavam considerações sobre isto ou aquilo, enquanto trincavam gulodices de chocolate. Na televisão, a casa dos segredos, e não, não consegui evitá-la, perante a vontade geral dos intervenientes. De repente, levantei-me e escutei um dos mais pequenos, vociferar qualquer coisa como, fulano fez sexo à força com cicrana. Arregalei os olhos, olhei para o meu que me fixou com um olhar curioso, e balbuciei qualquer coisa a ver se os distraía. Não me considero nada retrógrada, a sério que não. Percebo que hoje os putos aprendem aos dez o que eu aprendia aos doze, mas também acho que isto terá de ter um limite, ao senão, daqui a uns anos, as bebedeiras que a minha geração apanhou aos catorze e aos quinze, vão saltar para o primeiro ciclo, coisa que me parece de gravidade considerável. E partindo do mesmo raciocínio, chegamos ao que aprendemos precocemente. Bem sei que as vivências de cada um estão cercadas do que cada um vive e experimenta, do que lhe é ensinado e dado a aprender, e muitas horas a ver determinados programas, tem de dar nisto. Mas ainda assim, e mesmo admitindo estes factos, um fedelho de oito a falar de sexo, e ainda para mais à força, perto do pai e de uma mesa de gente adulta, como se de uma coisa banal se tratasse é coisa para me deixar preocupada. Mas onde é que andam as consolas, os bakugans, os jogos, e outras coisas inofensivas que a rapaziada deveria fazer? E os limites, do dizer o quê, onde e ao pé de quem? Julgo que existem por aí pais que devem andar distraídos. Atarefados, absorvidos, pode ser isso. Temo porém onde isto nos poderá levar. Encarando as teorias do desenvolvimento, e nas mais diversas vertentes, o mesmo deverá ser feito de forma faseada, por etapas, arrumações, sempre tendo em conta o que a criança poderá albergar e digerir. E aos oito parece-me altura de ainda corarem ao ver um beijo na boca, ou quando muito, de acharem graça à coisa e até quererem experimentar. Longe dos olhos indiscretos, com a amiguinha de saia rosa, muito coquete. Aquilo até parece que é bom.
E também é boa a aprendizagem feita amiúde, com a magia certa na hora certa. Julgo tratar-se também disso mesmo, sendo que a magia do crescimento, parece-me muito abalada. E não sei o que será do futuro sem ela.

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