domingo, 15 de janeiro de 2012

Casa

Não sabia muito bem por onde começar. Não encontrava a ponta, vasculhou, vasculhou e continuou confusa. Nisto despiu-se. Devagarinho, não fosse alguma peça ficar a meio do processo, e continuar a embrulhá-la com força e exactidão. Teve especial cuidado com o casaco que a tapara desde sempre do frio. Um agasalho quente e cuidadoso, merecedor de um trato adequado. Iniciou depois o processo inverso, não antes de se lavar cuidadosamente com óleos perfumados, a fim de se inundar de um cheiro doce que entrava pelo nariz delicado, e se aninhava dentro dos recantos da sua alma, mesmo dos mais recônditos, os que nem sabia que existiam. Tantos que eram. Olhou-se no espelho e quis fazer mais qualquer coisa. Não chegava o que tinha feito, precisava de mais. Iniciou então um processo mais sério de decomposição, primeiro as cores do cabelo, depois a moldura do rosto, depois os ganchos redondos que lhe seguravam as melenas birrentas. A pouco e pouco foi mudando tudo o que a circundava e que lhe estava ao alcance das mãos, desde a disposição das coisas às fotografias expostas, às flores que vivam nos vasos há anos sem fim. Dava-lhe fastio tudo aquilo. Uma realidade sempre igual que se mostrava por ora incómoda, traiçoeira, como se dela já nem fosse. Por vezes temos destas coisas assim. Pertences de sempre, amores de uma vida, que de repente parece que nos fugiram do corpo, e que se assumem como que um fardo tamanho que nos pesa nas costas, nas palavras que dizemos, nas mãos que ficam fracas. Sente tudo aquilo como um processo estranho, um sentimento de ingratidão para com toda a envolta, que sempre a acolheu com dedicação e carinho, e que de repente emana um cheiro pestilento, entre o mofo e o apodrecido, que por mais que esfregue continua sempre a entrar. Por isso avança e quase sem perceber, num embalo impelido pela vontade ensandecida, liberta-se de tudo o que lhe faz doer, esquecendo o dó e a piedade. O fardo mais pesado deixo-o para o fim. Pensou repensou e deixo-o ir, perfumar outras almas, outras vidas. No final de sua saída, findo o sentimento de vazio experimentado perante a ausência do que sempre foi seu, olhou em redor e estranhou tudo. Teve medo. Num desconforto excessivo e incompreendido, foi buscar as roupas velhas e colocou-as de novo no corpo com uma pressa tamanha, quase como se as pobres fugissem, mesmo mortas, inanimadas, se ela demorasse um segundo que fosse. Tingiu o cabelo ao de sempre, pegou nos ganchos velhos e arrumou-o todo igual outra vez. O malvado não cresce rápido e por ele esperou. Em cada dia passado, e esperando que o corte lhe voltasse a chegar aos ombros magros, foi recuperando o sossego e o conforto do que era seu. Afinal, cheirava tudo tão bem, era ali a casa dela. Nisto ordenou os retratos e as flores outra vez.

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